segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Resenha literária: Manifesto canibal


            Então você se acha uma pessoa descolada e crítica, que crê que o cinema nacional começou com Dois filhos de Francisco e Se eu fosse você? Tem andado por aí dizendo que só tem sangue safadeza nos filmes brasileiros, mas não se importa de ir ao cinema assistir filmes americanizados cujos heróis, homens lindos e viris, vencem por meio da força e violência? Reclama da falta de incentivo aos artistas nacionais, porém só acompanha os lançamentos ligados ao circuito comercial e a globo filmes? Insulta as novelas, mas adora a Sessão da tarde e seus filmes imbecis? Pensa que Tropa de elite II é o melhor filme brasileiro de todos os tempos? Acha tudo isso normal e coerente, e não tem nenhuma vergonha na cara?
            Pois bem, saiba que o Café com Tripas estava esperando por você, caro leitor abobalhado. Nesta semana em que discutiremos a arte marginal, realizamos a primeira resenha literária deste blog abordando um dos homens mais cavernosos do cinema tupiniquim e seu Manifesto canibal, discutindo filmes, técnicas, sabotagens e revolta contra a hegemonia na arte. Portanto, sinta-se provocado!





Título original: Manifesto canibal Uma declaração de guerra dos que nada tem e tudo fazem contra os que tudo tem e nada fazem.
Autor: Petter Baiestorf e Cesar Souza
Lançamento: 2007 (Achiamé)
Páginas: 77




Manifesto canibal
Som, sangue e fúria no cinema brasileiro


Manifesto canibal, um livro que certamente você não encontrará na lista dos mais lidos dos jornalões, foi editado inicialmente como fanzine e ganhou uma edição em livro em dois mil e quatro. Um de seus autores, Petter Baiestorf, é um tipo de ícone da cena underground brasileira ligada ao cinema trash, logo, uma pessoa de quem jamais ouviremos falar se não procurarmos especificamente por ela nos becos escuros da internet. Para ser bem franco, estou abordando aqui uma obra que não é e nunca será popular ou reconhecida pelos meios tradicionais, tanto porque expressa uma ideologia a qual pouca gente irá aderir, quanto porque faz questão de se situar à margem desse reconhecimento. Sendo assim, esqueçam Kurosawa, Lynch, Glauber e toda essa galera que faz bonito mencionar num jantar com gente intelectualizada e bem vestida. Manifesto canibal nunca cairá no vestibular também, se foi por isso que você veio aqui. Com efeito, se apesar de todos esses fatores, mesmo assim te interessa saber desse livro, sinta-se acolhido pelo mundo bizarro do cinema trash brasileiro. 

O que é que é?

Minimamente, trata-se de um manifesto contra a maneira pela qual o cinema nacional tem sido feito, apoiando meramente produções comerciais que só servem ao mercado e à manutenção dos monopólios dominantes, a igreja, o estado e o capital. Contra isso, os autores promovem uma apologia do cinema popular contrário aos valores e instituições dominantes.
Ele é composto por vinte textos diferentes que abordam desde a proposta conceitual do manifesto, críticas ao cinema comercial, modos de sabotar festivais de cinema, até alguns macetes a propósito da direção de filmes sem qualquer dinheiro e pouco equipamento.



O subtítulo do Manifesto é bastante preciso quanto a tornar explícito o tema da obra, trata-se mesmo de “Uma declaração de guerra” de certo grupo marginalizado contra outro privilegiado. Quem são esses dois grupos é algo que vamos problematizar no correr do texto, no entanto, independentemente disso é importante notar que o livro tem esse caráter de brado, de revolta contra os apoiadores de certo tipo de ideologia e estrutura. Assim, ele zomba todo o tempo de seus adversários para ressaltar sua própria identidade e proposta, além de exaltar aquilo que pode ajudar a compor a proposta intelectual defendida. No geral, isso lhe dá uma aura toda singular e acaba por tornar sua leitura leve e divertida ao invés de carregada de conceitos e discussões estéticas complicadas (coisa comum em manifestos), todavia, serve igualmente como uma amostra de como é possível manter uma comunicação franca com o espectador a qual, dizendo coisas importantes, não as banalize ou trate com pedantismo, aliás, uma característica do tipo de cinema que desejam propor.

Obviamente, esse formato acessível não implica numa falta de proposta por detrás das linhas engraçadas do manifesto, mas apenas que é preciso cavar a superficialidade da exposição e cobrar o livro além daquilo que ele exibe se quisermos realmente entender as posições dos autores e não apenas lê-las. Pessoalmente, acho que eles não gostariam desse tipo de abordagem e argumentariam que o livro é exatamente aquilo exposto lá e nada mais que isso, sendo que, ao seguirmos por esse caminho, estaríamos nos aproximando dos intelectuais chatos que eles combatem e traindo a proposta do manifesto. Todavia, como bem sabem os leitores deste blog, a tradição do Café com Tripas é justamente investigar aquilo que parece não ter nada por revelar, cavando a lama suja até que dela surja um tesouro... Ou defunto. Ademais, uma resenha não é um endossamento das propostas da obra analisada, porém uma investigação e explanação dela. Por isso, seremos chatos e seguiremos aqui essa via sinuosa mesmo assim – vambora!

Contra

            Pois bem, de início podemos nos perguntar: esse é um manifesto contra o quê e pelo quê? Em outras palavras, qual é o conflito o qual ele identifica e propõe resolver através da ideologia que defende?
            Basicamente, já respondemos isso: ele se opõe ao cinema comercial, ao monopólio da arte cinematográfica e as hegemonias no poder. É um velho e bem conhecido problema do cinema brasileiro: quem tem grana para produzir filmes é também quem está confortável com os problemas do país, produzindo um cinema comercial e alienado que nada atacada, nada propõe, nada transforma e só reproduz. Por isso, só restaria ao artista tupiniquim - diretor, roteirista, ator, o que for – submeter-se a esse sistema deprimente, ou tentar produzir arte sem dinheiro, incentivos ou meios para tal. Os submissos estão aí desfilando ricos e sorridentes para quem quiser ver, com filmes em cartazes, sendo anunciados nos cadernos de culturas dos jornais, tendo suas obras divulgadas por meio de entrevistas em programas de grande circulação e coisas assim. Os insubmissos e todos aqueles que não conseguiram uma vaguinha nessa indústria, por sua vez, são pouco conhecidos e valorizados em todo o país independentemente do mérito de suas obras. Sejam bons, ótimos ou irrelevantes o destino é o mesmo, ostracismo.
Claro, olhando de perto, tudo é muito mais complexo que isso. Não se trata de uma divisão de tipos de pessoas - aquelas que produzem mercadorias e as que criam arte - já que tanto o cinema comercial quanto o marginal criam coisas ruins e boas, mas de modos de se situar dentro da sétima arte no Brasil atualmente. Você quer produzir um filme? Tem muito dinheiro ou meios para conseguir isso? Não? Oh, que pena...
E não, leitor, não é assim e pronto. Quer um exemplo? Nos anos sessenta, a França se via sendo afligida pelo cinema estadunidense, feito em larga escala e com fins comerciais que o conduziam ao monopólio. O risco de que os filmes franceses perdessem audiência e, com isso, dinheiro para que continuassem a ser produzidos, era bem grande. O que fizeram então nossos amiguinhos gauleses? Respondo: taxaram o cinema estrangeiro e usaram a grana do imposto para financiar o próprio cinema francês que, aliás, continua forte e influente até hoje.
Não é o caso, portanto, de se criar outra hegemonia a qual confronte de igual para igual o cinema comercial. Ninguém quer outra Hollywood para nos vender mais Malboros, Jack Daniels e Harley Davidsons. Trata-se de produzir alternativas ao cinema hegemônico as quais não se submetam aos mesmos operadores que ele. Que cada criança possa ver sua bobagem Disney, porém, que possa também ver filmes de outros tipos, quiçá melhores, mas, sobretudo, diferentes, seja na forma de composição (técnica) ou mesmo nos valores os quais são propagados ali. Que haja todas as obras que normalmente esperamos encontrar no cinema, mas que haja também outras, inesperadas, com propostas completamente diferentes do usual.
De modo resumido, é nesse campo que se situa a discussão do Manifesto canibal, é pelo cinema mais democrático e menos burguês que ele grita.

Por um cinema do mundo cão


Soltemos nossos urros de revolta!!! Construamos nossos próprios filmes e que sejam feios, sujos e malvados, alucinados, aleijados, bêbados, contestadores, e transgressores, dos valores sociais!!!

Dadas essas coisas vamos às propostas.
Como o cinema canibal pretende atingir o cinema hegemônico e promover aquele que é marginal?
Basicamente, de duas maneiras: pela sabotagem do cinema hegemônico e pela promoção do cinema marginal. No manifesto há vários textos tanto sobre um assunto quanto outro. Por sabotagem não entendam nada como terrorismo, por favor, não se trata disso, mas de formas de exibição do ridículo do cinema hegemônico, por exemplo, criando situações constrangedoras em festivais de cinema e coisas do tipo. A idéia é menos ferir e mais atingir. Quanto à promoção, o manifesto fornece várias dicas sobre como, sem recursos e meios, produzir um filme, seja aproveitando equipamentos, lugares, até como lidar com pessoas e coisas assim.
Não vou abordar esses aspectos aqui porque eles importam mesmo para quem quer produzir filmes segundo o método exposto lá e pouco para uma resenha. No entanto, desejo ressaltar o viés ideológico dessa proposta que é muitíssimo interessante, embora controverso.
O Manifesto canibal não apresenta somente uma oposição ao arranjo econômico que se construiu sobre o cinema, promovendo assim uma ideologia política libertária, porém, adota também posições existenciais bem específicas as quais, aqueles que desejam produzir cinema, não concordariam necessariamente. É nesse ponto que o leitor começa a desconfiar da proposta da obra e a pensar em que medida ela espera ser adotada completamente. Vou explicar melhor.
No livro há posições metafísicas e sociais bem definidas as quais os autores identificam no cinema hegemônico e desejam combater. Uma delas, por exemplo, é a crença em deus, outra seria o apoio a idéia de Estado. O cinema canibal é ateísta e anarquista - e não apenas isso. Há muitas outras posições as quais ele apóia (como a negação do financiamento público de filmes), sendo que, embora o livro propague tais ideologias em bloco, como se existissem necessariamente juntas como conseqüência umas das outras, todos nós sabemos que cada uma compõe um tijolinho que poderia muito bem não estar ali. Mas está. Faz parte da visão pessoal dos autores.
Assim, conforme o livro avança, acumulam-se discordâncias e questões sutis em relação ao que é exposto ali, ao passo que o leitor acabará mais se inspirando no método kanibaru que o adotando, suponho, já que ele assume posições muito específicas das quais o leitor pode muito bem discordar e ainda assim manter o restante, ou grande parte pelo menos. Não sei em que medida os autores prevêem que isso seja feito, melhor dizendo, o quanto tencionavam inspirar pessoas ao invés de lhes dar diretrizes as quais elas adotariam piamente. Parte dessa questão, imagino, advenha do fato de que o livro é uma reunião de artigos publicados em fanzine, isto é, que estavam direcionados para um público específico o qual já compartilhava várias das idéias dos autores e não precisava ser muito convencido, ao contrário do público de livros que não tem necessariamente familiaridade com o cinema promovido ali.
A propósito disso, penso, por exemplo, no fato de que o cinema marginal pode muito bem estar embebido dos valores populares e assim acabar por produzir coisas as quais os autores do abominariam fervorosamente. Apoiar o cinema popular significa apoiar todo e qualquer cinema feito pelo povo? Se sim, isso significa apoiar, inclusive aquele religioso (por que não?) dada à religiosidade do povo, por exemplo? Significa apoiar aquele que expressa os preconceitos e as relações de poder as quais o povo se submete e usa para se representar sem perceber? Nesse ponto, a relação entre cinema marginal contra cinema de monopólio se torna mais cinzenta na medida em que o monopólio engole o popular e o popular se representa dentro do monopólio, sendo que um pode estar muito próximo do outro sem perceber.
Dizendo francamente: o Manifesto é uma apologia do cinema popular que já pressupõe uma idéia de cinema popular bem definida, portanto, inquiro: poderíamos discordar dela e ainda assim adotar o sistema? Particularmente, acho que sim, mas é apenas a minha interpretação. Eis uma questão para você, futuro cineasta canibal, responder.

Devo começar a devorar seres humanos nas minhas refeições?
 



Manifesto canibal é um livro bem gostoso de ler na medida em que os raciocínios apresentados não são muito complexos ou teóricos, mas bem intuitivos. Aliás, com certas reservas aos seus exageros, é muito fácil comprar várias das premissas dele - todos nós concordamos que o cinema nacional deveria ser mais democrático e estimular mais as produções populares, que há uma enorme hegemonia tanto de idéias quanto do que é considerado bom dentro da área, entre outras coisas. No entanto, o livro não se resume a isso, tendo uma proposta radical que vai bem adiante dessa superfície ilusoriamente inocente, e é aí que o bicho pega e tudo se torna realmente interessante.
Vale à pena ler tanto como uma fonte de inspiração para o cinema alternativo, quanto também como um tipo de amostra das formas de resistência as formas de dominação usuais, que parecem ser tão grandes a ponto de engolir tudo, inclusive a esperança de se fazer algo contra elas. Nesse sentido o livro mostra que não: sempre há o que fazer; com criatividade e algum senso coletivo nós criaremos meios de enfrentar esses gigantes famintos que o capital cria, ainda que não possamos derrotá-los.
Por isso, a obra merece uma indicação aqui do Café com Tripas (uau). Leia! Leia! Leia!

4 comentários:

  1. Ora, mas que desfaçatez! Quer dizer então que os senhores, quando eu não julgava mais ser possível descer ainda mais o nível deste lugar infame e cheio de pústulas, decidem dar espaço a uma obra (e remeto a palavra “obra” neste caso àquelas que fazemos nas retretes do mundo) totalmente subversiva, de péssimo gosto e que vá contra tudo que a boa sociedade e os comentários do Jô Soares pregam?

    Estou indignado! Enfurecido! Estupefato!

    E preciso encontrar esse livro rápido pra ler, porque depois dessa resenha ele se tornou indispensável.

    Que Ana Maria braga amaldiçoe a todos vocês. 8)

    ResponderExcluir
  2. hahaha, valeu, pensador. Procura na estante virtual, acho que tem por uns cinco reais mais ou menos. É um livro cutrinho e gostoso de ler. Logo mais vamos pegar filmes deles também pra pôr aqui.

    ResponderExcluir