A origem



Foi lá pela décima terceira noite do apocalipse que percebemos em que enrascada estávamos metidos. Zumbis, sangue e gritos. Trocas de tiro nas tardes e, nas noites, comida enlatada. Passamos por duas cidades e atropelamos pelo menos duas dúzias de mordedores. Foi preciso tanto esforço que vários dos nossos se perderam no caminho. Sinceramente, não sinto a falta deles. Gritavam demais. É triste perceber que as pessoas vivem simplesmente e não se preparam para o fim do mundo. Tudo bem que, nessas horas, ninguém saiba direito qual fim vai acontecer primeiro - o dos maias, o dos físicos, o da bíblia ou o de Hollywood, mas sequer considerar o assunto... Isso indica sérios problemas de prioridade.
Seja como for, meu instinto nos levou a um grande casarão em que o relampejar fazia com que víssemos morcegos ao redor dele. Senti que estava num filme de terror a observar uma mansão gótica. Decidimos descansar antes de explorá-la. Susy nos retiramos e...
- Como assim? Tá errado.
- Tá errado o que?
- Tudo. A gente chegou lá por acaso e o estilo da casa não é gótico. Deve ter sido de algum barão de café. Não tem nada de gótico. Estamos no Brasil, lembra? Não é Romênia, não tem gótico aqui.
- Mas...
- (interrompe) E que negócio é esse de “meu instinto”? Você dirigiu três quilômetros na contra mão e ficamos sem gasolina.
- Você tá estragando a história. Isso é detalhe. Deixe criar um clima.
- E que diabos é Susy?
- Bem, é... Bom... Você sabe...
- Quem?
- (sussurra)
- Diga mais alto.
- (sussurra)
- Mais alto, caramba!
- (sussurra)
- A das espinhas? O nome dela é Suely.
- Mas Susy é o apelido... É como chamam na América.
- Que America, rapaz? Ela nunca saiu do Brasil, não sabe nem escrever direito quanto mais ganhar apelido gringo.
- Mas, mas...
- E que fofoca é essa de vocês irem dormir? Que eu saiba, ela foi ao banheiro e você foi atrás. Só isso.
- Ah, mas... Você está maltratando a poesia da coisa... É uma metáfora.
- E zumbis... Que zumbis? Tudo bem que Guarulhos é meio ermo, muita gente feia, mas...
- (interrompendo) Bom, o fato é que Susy sumiu e batemos na porta...
- Suely.
- da mansão para encontrar a... Suely.

Um senhor pálido nos atendeu com um sorriso largo e canino. Parece que um tipo de reunião acontecia lá dentro, congregando diversas pessoas. Ele ouviu nossa história e nos convidou a entrar para que a procurássemos dentre os convidados. Relutamos um pouco, pois não é conveniente incomodar os outros tarde da noite, mesmo no fim do mundo. Percebendo isso, ele acrescentou, com sorriso sincero e olhar faiscante, que o jantar logo seria servido. Entramos. Não se deve dispensar a gentileza do anfitrião, mesmo no fim do mundo.
Devo dizer que o lugar era espaçoso e belo. A iluminação provinha de castiçais acoplados à parede e as pessoas se vestiam de modo antigo e esdrúxulo, de modo que tudo parecendo ter surgido muito antes do mundo em que vivemos vir a nascer. Um tapete vermelho recobria o chão e mesas estavam dispostas em torno de um grande espaço vazio, provavelmente usado para dança. Havia muitos convidados de diversas procedências: um era peludo, com grandes músculos e dentes; o outro parecia sofrer de alguma queimadura, pois tinha faixas brancas recobrindo todo o seu corpo, sem me esquecer de mencionar, é claro, os anões, os homens que pareciam mágicos e até mesmo um e outro animal de estimação bastante peculiar.
Não tenho certeza sobre o tipo de bebida que foi servida. Taças vermelhas com um líquido odor metálico (devia ser vinho caro - coisa de ricos). Também não sei como conseguiram fazer uma réplica humana tão perfeita posta sobre a mesa de jantar, como se fosse um corpo morto sendo servido em pequenos pedaços. Até que estava bom. O fato é que alguns dos que estavam conosco se misturaram rapidamente àquele ambiente exótico, passando a festejar e beber, esquecendo Susy.
- Suely.
- Ok. Suely.

E num primeiro momento pensamos que a diversidade fazia o lugar desajustado e confuso, e que era preciso restabelecer a paz, pois o anfitrião (que era o senhor da porta) fazia discursos a que não eram dedicadas muitas atenções. Contudo, depois de algum tempo nos unimos à farra e...
- (interrompe rindo) E você fez dancinha.
- Que dancinha?
- Não lembra? Com a cintura assim ó, ó (imita).
- Não, não fiz dancinha.
- Fez sim, poxa. Assim ó (imita de novo). A Suely tirou uma foto...
- A Suely tirou?
- Ah, até que enfim acertou o nome.
- (respira fundo) Vamos lidar com isso depois. Não precisamos dos detalhes...
- Mas foi tão engraçado... Aliás, o que tinha naquele chá?

Bom, como ia dizendo, nos unimos à festa e esquecemos... A menina. Aproveitamos o ambiente e interagimos, por algum tempo, com quem estava lá. Entretanto, a folia logo cansou e sentamos para acompanhar o discurso do anfitrião, esperando que terminasse logo para que o jantar fosse servido. Por sinal, não somente nós, mas toda a festa parecia estar faminta, lançando olhares de concordância em nossa direção.
Pegamos o discurso do meio:
- (...) O comum, amigos, a ordem, o banal, é aí que se encontra a verdadeira adversidade – parou um minuto e tomou de um só gole o vinho esquisito, deixando que uma gota escorresse do queixo ao pescoço. E continuou:
- Antes dos próximos eventos devo adverti-los. Estivemos por toda à noite rodeados pelo pior da existência, o clichê. Na forma de sangue, casebres e, até, vampiros.
E por algum motivo todos riram. Ri também.
- Somos criados desde a mais tenra idade para adorar esse ser horrendo, como se o clichê fizesse parte da natureza das coisas e reclamar o novo nos fizesse recusar um bem comum. Não querem o novo, querem a ordem, cenas de espelho do banheiro e um roteiro previsível, como se viver fosse usar num novo corpo as velhas roupas de nossos ancestrais – e limpou com a palma da mão o vinho que já escorria até o pescoço. Lambeu a palma e voltou a fala:
- Mas eu lhes direi, amigos. Não nos daremos por vencidos. Não deixaremos que o clichê nos engula. Não seremos engolidos pela ordem! Os zumbis são apenas o primeiro passo. Uma radicalização. Eles apenas levam as últimas consequências o que as pessoas já faziam antes deles: destruir o que outras construíram. Os zumbis não são os inimigos!
E os convidados o saudaram efusivamente, com palavras confusas e em mais de um idioma. Fui me apequenando, temendo que o que ele dizia pudesse ser verdade.
            - Mas o último não foi clichê. Eles me colocaram brilhante no último filme! – um senhor de capa vermelha interrompeu. Muitos assentiram tristes. Sua dor nos comovia e o anfitrião parou para ouvi-lo. Não entendi completamente o que ocorria, apenas fui solícito em meus sentimentos.
- O último não foi... Como eu posso assustar uma vítima se ela acha que eu brilho no sol? Como fica minha moral se uma mulher me aponta uma lanterna “pra ver o que acontece”? Como posso carregar essa capa vermelha se... – e desatou a chorar. Todos começaram a falar ao mesmo tempo, ecoando a indignação do homem. Muitas palavras angustiadas foram proferidas. O anfitrião sorrira. Fez um gesto para que todos se acalmassem:
- Creio que depois dessa fala, todos nós reconhecemos que “eles” tem nos tratado muito mal – começou.
- Muito mal – repetiram e alguns olharam para nossa mesa. Não entendi.
- E que quando nos retratam sem o clichê, pintam nossa imagem com muitos preconceitos e invenções ridículas... – parou um pouco, meneando a cabeça – Calúnia! – gritou – Quando não se valem do clichê, se valem da calúnia!
Vieram muitos aplausos fortes.
- Não somos vampiros brilhantes, nem assombrações banais que não sabem assustar. Não precisamos de mansões mal-assombradas ou das trevas da noite, podemos espalhar o medo e o terror sem precisar de um clichê sequer, sem brilhar a luz do sol! – e encerrou - Somos monstros!
E todos aplaudiram e gritaram, batendo os pés nos chãos e as mãos nas mesas. O clima foi se tornando pouco ameno. Os olhares se voltavam para nós com mais freqüência e menos carinho.
- E lhes pergunto: o que devemos fazer, amigos? Nos conformar com vampiros que não matam e lobisomens que não lutam? Ou, de outro lado, aceitar as histórias ruins de sempre? Jamais! Devemos criar zumbis piores, queimar templos, beber e dançar sobre os destroços da velha ordem. Precisamos destruir o mundo da segurança, da banalidade e do clichê, e ao mesmo tempo impedir toda calúnia dita usando nosso nome. É necessário mostrar ao mundo mortal que ninguém pode nos domar, pois terror é o nosso nome!
Alguns indivíduos se levantaram e vieram devagar em nossa direção. Não pareciam garçons, mas senti que o jantar seria servido. Lembrei da Suely. Os convidados avançaram mais, porém o anfitrião se adiantou e chegou antes deles.
- Creio, contudo, que pode haver uma saída para vocês, mortais... – disse se colocando entre os outros e nós. Olhei em volta procurando Suely. Mas, em seguida, vi um homem com um machado e a esqueci. O anfitrião continuou:
- Talvez possamos usá-los na guerra contra a calúnia e o clichê. Talvez vocês possam espalhar as novidades... O que acham?
Assentimos sem conseguir responder qualquer coisa inteligível.
- Como tencionam espalhar a palavra? O que fazem em suas vidas mortais?
- Ah, ah...
- A gente, coisas...
- O quê?
- A, a gente estuda coisas...
- Então são sábios? Poderão então escrever livros e pergaminhos, repletos de histórias terríveis e de conhecimento oculto que tratará de corromper a mente daqueles que lerem... Suas perícias serão muito úteis em...
- (interrompe) Não, você não entendeu. A gente não é escritor, nem sábios também. Somos só estudantes.
- Então são discípulos de um grande mestre? Creio que podemos esperar que terminem seu treinamento. Entrementes, lhes daremos nós, os monstros, outros ensinamentos sombrios para que se tornem...
- (interrompe) Não, não, a gente não quer ser sábio não, moço. Dá muito trabalho e não ganha bem. A gente só quer se formar mesmo.
- Estudam para, ao fim, não se tornar sábios?
- Sim – respondemos, mas ele pareceu confuso.
- Então para quê estudam, para que usam o conhecimento, ó estranhos mortais?
- Arrumar emprego e ganhar dinheiro. Se rolar umas gatas na facul, melhor.

E a partir daquilo os monstros pareceram estarrecidos com nossas pretensões, respondendo com muitas interjeições que não posso escrever:

- Hereges! Usam o conhecimento para o mal!
- Parasitas! Subversivos!
- Que valores horrendos!
- Blasfêmia! Aproveitadores malditos!
- Monstros!

E, de repente, eles pareciam não nos ver mais como comida, mas como seres estranhos. Foi difícil acalmá-los, cabendo ao ancião retomar a ordem:
- Amigos, creio que encontramos um tipo raro de mortal, nem sábios, nem tolos. Eles habitam o seio de suas sociedades e a parasitam, em busca de poder e conhecimento não edificante...
- (interrompe) E das gatas.
- Sim, não se esqueça das gatas.
- Tudo bem, “as gatas” – assentiu desgostoso - Creio que talvez vocês não sejam tão diferentes de nós vampiros, que nos alimentamos da vida de outros mortais ou dos zumbis, que desejam a carne todo o tempo. Um tipo intermediário, talvez – e parou um instante. Acho que não sabia como continuar. Interferimos:
- Ô, senhor vampiro, eu posso falar?
- Pois que fale...
- A gente não é grande coisa pra escrever livros, mas podíamos fazer um blog pra espalhar a boa nova. Sabe, acho que é um bom jeito de o senhor deixar a gente sair vivo daqui. Colocamos um layout bonitinho. Um blog é um mecanismo virtual em que...
- Me trata por ignorante, mortal?
- Não senhor. Por quê?
- Não é evidente?
- A gente só queria explicar que um blog é...
- (interrompe) É evidente que sei o que é um blog.
- É?
- Óbvio.
- Poxa, pensei que vampiros não...
- Que vampiros são anacrônicos e não sabem usar tecnologia? Pensou que não comemos alho também? Que não atravessamos água corrente ou que brilhamos no sol?
- Bem, é que...
- (interrompe com um lamento) Ah, os clichês e as calúnias. Ó fardo maldito que carregamos!
Os outros pareceram desapontados conosco. Alguns menearam a cabeça, outros deram os ombros. “Estúpidos”, alguém disse. A raiva anterior sumira e se transformara em condescendência.
- É por isso que precisamos de vocês, mortais. É necessário que os mortais sejam reeducados para nos temer. Alguém precisa fazer com que a humanidade volte a fugir dos monstros. Nós continuaremos com o apocalipse e vocês hão de ser parte do braço armado dessa investida. Façam como prometido, criem o blog, espalhem palavras pervertidas das trevas da noite e corrompam a todos. Aterrorizem! Aterrorizem!
Naquele momento a as portas se abriram e as janelas bateram com um vento súbito vindo de lugar nenhum. As palavras do monstro ecoaram por todos os cantos como uma maldição que nos acompanharia por toda a vida e descendência. Os monstros sorriam.
- (sussurros) Diz você.
- (sussurros) Não, diz você.
- (sussurros) Pergunta aí, mano.
- O que estão dizer, mortais? – ele questionou impaciente.
- Sabe, é que...
- É, é que...
- Digam de uma vez! - rosnou.
- A gente meio que queria saber...
- É. A gente só queria saber mesmo... Não é nada de mais.
- O que querem?
- Sabe... Não rola uma graninha aí não, seu vampiro?

O monstro se enfureceu e num movimento abrupto jogou sua capa negra sobre nós. O mundo desapareceu naquela escuridão sem lua e estrelas.
Acordamos na manhã seguinte, vindo a descobrir que o apocalipse nunca ocorrera, que nossos colegas ainda viviam e que eu nunca pegara a Susy.
- Suely.
- Ok, Suely.
No entanto, ao ligarmos nossos computadores soubemos que o blog já estava pronto. Éramos seus criadores e mantenedores. O nome: “Café com Tripas”.
Medo.
E por via das dúvidas decidimos não ignorar nossa experiência e dar prosseguimento ao plano do vampiro, corrompendo o mundo com filmes sanguinários e segredos assustadores. Ó leitores, que os céus nos protejam do apocalipse virá, pois esta história não há de ter final feliz!