segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Resenha: A hora do lobo (vargtimmen)


Todos sabem que o Café é um bloguinho especializado em cinema trash, bizarro e doentio, mas nem por isso os seus criadores (os gênios que vos escrevem) sobrevivem apenas de sangue, peitchinhos e escatologias... sim, isso é 90% dos nossos dias, mas ainda sobra um 10% pra fingirmos que somos intelectuais e “cool” (seja lá o que essa merda signifique). Então na postagem de hoje deixaremos um pouco a trasheira de lado mas não trairemos as nossas raízes da loucura e do bizarro. Porque pela primeira vez na historia desse blog, creio eu, resenharemos um filme realmente bom. Sim, vocês leram certo, um filme BOM.
Na resenha de hoje contaremos com a presença ilustríssima de Ingmar Bergman, no auge da sua loucura. Sei que ele tem uma fama de chato e que nunca chegara aos pés de Lloyd Kaufman, mas vamos dar uma chance pra ele. Afinal, já diria bonde do role: “noiz é tipo bem Jesus, todo mundo a gente ama.”
Tome seus remédios e fique acordado, porque nem todos sobrevivem a hora do lobo...





Título original: Vargtimmen
Lançamento: 1968 (Suécia)
Duração: 81 minutos
Direção: Ingmar Bergman




Nunca se isole... dá merda

O artista Johan e sua esposa Alma se mudam para uma ilha isolada com objetivo de conseguir inspiração para seus futuros quadros. O inicio da vida do casal na ilha é tranqüilo e agradável para ambos, entretanto, com o passar do tempo, os habitantes da ilha começam a interferir no relacionamento dos personagens e, também, intensificar o medo e a insônia de Johan.

Nem começou e já não sei quem é quem


O filme inicia com textos dizendo que o artista Johan sumiu misteriosamente, na ilha em que morava, alguns anos atrás, e que o filme a seguir tem como base as informações obtidas a partir do diário de Johan, cedidos pela esposa, além do seu relato. Após essas informações iniciais, o filme mantém a tela preta e começa a passar os créditos, paralelamente a isso o áudio e as falas dão a entender que eles estão montando um set de filmagem. A partir disso podemos, ou não, pensar no filme como uma metalinguagem, ou seja, os personagens que aparecem no filme podem não ser os personagens reais da historia, mas sim atores representando os personagens.

Homem pássaro, homem aranha, mas nada de heróis...

A primeira cena de fato tem como cenário a frente da casa onde o casal morava e Alma em primeiro plano contando sobre sua vida ali com Johan, falando do inicio feliz mas com a intensificação do seu medo com o passar do tempo. Após essa cena começamos a ver a historia dos dois.
Desde o inicio é possível perceber que Alma é a pessoa que quebra a quietude das cenas, Johan, ao contrario de sua mulher, é mais introspectivo, expressando suas emoções e vontades através da sua arte, as falas dele são pontuais e somente quando necessário. Há apenas uma cena em que observamos os dois como um casal apaixonado e que expressam prazer de estarem juntos, ao passo em que todas as outras observamos Johan inquieto e distante enquanto Alma tenta fingir que está tudo bem, na esperança de trazer a atenção de seu marido pra realidade deles, sem mergulhar de fato em seus delírios e medos.
Apesar de Johan sempre aparentar distancia e medo, começamos a perceber o que se passa com ele quando ele conta um dos seus pesadelos a Alma, no qual ele descreve ver um homem pássaro, um homem aranha, uma velha que perde o rosto ao tirar o chapéu entre outras coisas, esse pesadelo faz com que ele evite dormir antes do amanhecer, mantendo-se acordado para não lidar com os pesadelos.
Logo após Johan contar seu pesadelo, há uma cena em que a primeira moradora da vila aparece. Uma senhora, com roupas brancas que destoam do ambiente, aparece enquanto alma estende as roupas no varal e lhe diz onde Johan esconde o diário e seu caderno de desenho. A partir disso novos personagens vão aparecendo e tornando a vida do casal, e o filme, cada vez mais confusa e surreal. Esses novos habitantes da ilha causam conflitos e agitação, como se a presença deles escondessem e revelassem coisas obscuras em relação ao passado dos mesmos.

Eu sou normal e todo mundo é louco ou eu sou louco e todo mundo é normal?

Durante todo o longa, a linha que separa o real e a alucinação acaba se apagando, todos os acontecimentos acabam gerando certa confusão no espectador. Ao se isolar na ilha os personagens acabam se isolando psicologicamente, ou seja, o afastamento da sociedade e das pessoas fazem com que os pensamentos se tornem cada vez mais fortes e concretos. Apesar do filme, de certo modo, dar a entender que Johan é a pessoa que de fato enlouqueceu, não dá pra negar a possibilidade de Alma ser a pessoa que está fantasiando tudo, ou até mesmo ambos, pois em uma de suas falas ela diz sobre as pessoas começarem a compartilhar características e semelhanças devido ao tempo de convivência entre eles.
Além disso, devido a falta de informações concretas, é impossível de dizer em que momento as alucinações de fato começam (se é que elas ocorrem). Não é possível saber se já está desde o principio no qual Alma existe apenas na imaginação de Johan (ou Johan exista apenas na imaginação de Alma). Ou se Johan acaba trazendo pra realidade traumas e desejos pra realidade devido ao isolamento. Também há a possibilidade de Alma fantasiar toda a historia com base em pesadelos que Johan contou para ela, afinal, apesar de estar na ilha com o marido, ela passa boa parte do tempo sozinha em casa, fantasiando a historia devido a solidão e o tédio. De todo modo, assim como os personagens perdem a noção de realidade, o espectador do filme entra na mesma atmosfera por não conseguir distinguir o que é real e o que é imaginação.
Em certo momento, Johan se encontra com um morador da ilha que se apresenta como psiquiatra, em pouco tempo de conversa ele se irrita e dá um tapa no homem. Independente do homem ser real ou não, é possível pensar na cena como uma metáfora para o rompimento da lucidez. O homem fica no chão com o nariz sangrando assim como a referencia de realidade e fantasia também é abalada.
A aparição dos outros personagens se dão após a visita da senhora de roupa branca a Alma, que revela o local onde está escondido o diário. Desde modo, o diário pode ser um dos principais princípios para tudo que ocorre. Mas sua origem também é uma grande incógnita. A senhora diz ser o diário de Johan, entretanto, se a senhora é uma projeção criada por Alma, a loucura antecede ao diário. No mais, também é possível pensar que Alma sempre morou sozinha e que a solidão fez com que ela criasse personagens para compensar o vazio e a solidão. Além da loucura, por ser um filme que propõe muito mais perguntas do que respostas é, também, possível pensar na senhora como um elemento sobrenatural.
A capa do diário lido por Alma é cheia de rasuras e a escrita transmite uma ideia de algo feito por uma criança. É difícil pensar que aquele diário pertence a um artista com certo renome e prestigio, e as cenas de Johan acontecem enquanto o diário é lido por Alma. É como se tudo acontecesse em sua imaginação, pois, desde o inicio do filme, tudo acontece através de sua percepção, já que Johan está desaparecido e a história se baseia em suas memórias e em informações do diário, que têm uma origem duvidosa.

Vargtimmen?


Na metade do filme, surge uma tela preta com apenas a palavra Vargtimmen escrita, como se Bergman dividisse o filme, dando a entender que a partir daquele momento o filme tomaria outro rumo. A palavra na tela é explicada pelo personagem momentos depois. A palavra faz referencia a uma lenda que diz que a “hora do lobo” é o período antes do amanhecer em que a escuridão domina a alma, e os pesadelos se tornam mais presentes e profundos, a hora em que muitas pessoas morrem e muitas nascem.
Na segunda metade do filme é perceptível uma mudança de narrativa, mas, além disso, também existe uma edição diferente. Na primeira parte o filme é apresentado como uma espécie de diário e conjunto de memórias, ou seja, as cenas nunca se completam, elas sempre são interrompidas por um fechamento de tela, como se a leitura fosse interrompida ou o pensamento voltasse pro presente.
Assim que Vargtimmen surge na tela é como se a hora do lobo também ocorresse com o próprio filme, todos os resquícios de sanidade vão embora e o mundo real é corrompido. Na primeira cena após a frase na tela preta, Johan conta um episodio de sua infância para Alma, no qual ele foi trancado no armário e apanhou do pai, mostrando que existe um trauma que ainda o assombra. Além disso, Johan também revela o assassinato de um garoto enquanto pescava.

Is this real life? Is this just fantasy?
*spoilers*


Da cena do assassinato em diante Johan mergulha no abismo de seus traumas e pesadelos, o tempo e o espaço se confundem na cabeça do protagonista e a insanidade toma conta do mesmo. Ao voltar pro castelo o personagem emerge em um percurso de personagens e diálogos peculiares que se misturam a atmosfera absurda e intensa da segunda parte do longa.
A sequência final mostra a busca de Johan por uma mulher chamada Verônica, ao que tudo indica, é um caso passado do artista mas que deixou traumas, desejos e lembrança. Essa busca mantém um ritmo intenso pelos cômodos do castelo, e junto a isso os personagens se mostram cada vez mais estranhos. Nesses 20 minutos finais o diretor apresenta diversas situações que brincam com a dualidade dos eventos, as cenas conseguem ser repulsivas e atraentes, cômicas e serias ao mesmo tempo. Há, inclusive, uma cena na qual Johan é maquiado por um outro homem e em nenhum momento ele se coloca contra a situação; é como se aceitasse que o irreal tomasse conta de suas ações, não existindo mais luta contra a loucura.
Ao encontrar Verônica, Johan reflete sobre a sua situação, entretanto sua fala deixa em aberto se ele se dá conta de sua loucura ou se é um momento de libertação no qual ele se entrega aos traumas e desejos e decide viver a loucura e abandonar a realidade.
Além do próprio roteiro e atuações, existem elementos no filme que funcionam como metáforas para os sentimentos dos personagens. A água, por exemplo, se mostra um elemento importante na construção da insanidade de Johan, tanto que ela está presente em momentos críticos do filme, ela se mostra como um elemento opressor. Também existe a questão da ilha, que além do espaço físico também pode ser visto como o inconsciente do personagem, que devido aos traumas ficou aprisionado em um local onde não há como sair, pois está rodeado de água, ou seja, medos.
O filme inicia e termina da mesma forma, com Alma narrando, em tom documental, os acontecimentos, ela reflete novamente sobre a ideia de que pessoas que passam muito tempo juntas compartilham das mesmas características, fazendo com que fiquem ainda mais parecidas.

Comecei a ver pessoas estranhas, o que eu faço?


Antes de tudo quero adiantar que a culpa não é do Café, então nada de nos responsabilizar por suas loucuras. Não iremos pagar o psicólogo; culpem o Bergman. Mas se você começou a ver pessoas novas eu recomendo que você faça amizades – nada melhor que amiguinhos novos, não? Mas se esses amiguinhos começarem a sugerir coisas estranhas, tipo assassinato, acho melhor você fugir.
A hora do lobo é um filme perturbador que leva o espectador ao abismo dos personagens, mantendo duvidas e inquietação durante todo o tempo. A realidade e a ficção são frágeis, elas se quebram e se misturam a todo o momento, a insegurança toma conta durante todo o filme, porque nunca é possível saber até que ponto aquilo que foi visto é pura ficção ou realidade. O longa é a própria hora do lobo pra quem assiste.


Trailer

3 comentários:

  1. que resenha maravilhosa! exclareceu muitas respostas, de muitas perguntas que o filme arranca!! muito obrigado e parabéns ao blog!!

    ResponderExcluir
  2. que resenha maravilhosa! exclareceu muitas respostas, de muitas perguntas que o filme arranca!! muito obrigado e parabéns ao blog!!

    ResponderExcluir