Todos sabem que o Café
é um bloguinho especializado em cinema trash, bizarro e doentio, mas nem por
isso os seus criadores (os gênios que vos escrevem) sobrevivem apenas de
sangue, peitchinhos e escatologias... sim, isso é 90% dos nossos dias, mas
ainda sobra um 10% pra fingirmos que somos intelectuais e “cool” (seja lá o que
essa merda signifique). Então na postagem de hoje deixaremos um pouco a
trasheira de lado mas não trairemos as nossas raízes da loucura e do bizarro.
Porque pela primeira vez na historia desse blog, creio eu, resenharemos um
filme realmente bom. Sim, vocês leram certo, um filme BOM.
Na resenha de hoje
contaremos com a presença ilustríssima de Ingmar Bergman, no auge da sua
loucura. Sei que ele tem uma fama de chato e que nunca chegara aos pés de Lloyd
Kaufman, mas vamos dar uma chance pra ele. Afinal, já diria bonde do role:
“noiz é tipo bem Jesus, todo mundo a gente ama.”
Tome seus remédios
e fique acordado, porque nem todos sobrevivem a hora do lobo...
Título
original: Vargtimmen
Lançamento:
1968 (Suécia)
Duração:
81 minutos
Direção:
Ingmar Bergman
Nunca se isole... dá merda
O artista Johan e
sua esposa Alma se mudam para uma ilha isolada com objetivo de conseguir
inspiração para seus futuros quadros. O inicio da vida do casal na ilha é
tranqüilo e agradável para ambos, entretanto, com o passar do tempo, os
habitantes da ilha começam a interferir no relacionamento dos personagens e,
também, intensificar o medo e a insônia de Johan.
Nem começou e já não sei quem é quem
O filme inicia com
textos dizendo que o artista Johan sumiu misteriosamente, na ilha em que
morava, alguns anos atrás, e que o filme a seguir tem como base as informações
obtidas a partir do diário de Johan, cedidos pela esposa, além do seu relato.
Após essas informações iniciais, o filme mantém a tela preta e começa a passar
os créditos, paralelamente a isso o áudio e as falas dão a entender que eles
estão montando um set de filmagem. A partir disso podemos, ou não, pensar no
filme como uma metalinguagem, ou seja, os personagens que aparecem no filme
podem não ser os personagens reais da historia, mas sim atores representando os
personagens.
Homem pássaro, homem aranha, mas nada de
heróis...
A primeira cena de
fato tem como cenário a frente da casa onde o casal morava e Alma em primeiro
plano contando sobre sua vida ali com Johan, falando do inicio feliz mas com a
intensificação do seu medo com o passar do tempo. Após essa cena começamos a
ver a historia dos dois.
Desde o inicio é
possível perceber que Alma é a pessoa que quebra a quietude das cenas, Johan,
ao contrario de sua mulher, é mais introspectivo, expressando suas emoções e
vontades através da sua arte, as falas dele são pontuais e somente quando
necessário. Há apenas uma cena em que observamos os dois como um casal
apaixonado e que expressam prazer de estarem juntos, ao passo em que todas as
outras observamos Johan inquieto e distante enquanto Alma tenta fingir que está
tudo bem, na esperança de trazer a atenção de seu marido pra realidade deles,
sem mergulhar de fato em seus delírios e medos.
Apesar de Johan
sempre aparentar distancia e medo, começamos a perceber o que se passa com ele
quando ele conta um dos seus pesadelos a Alma, no qual ele descreve ver um
homem pássaro, um homem aranha, uma velha que perde o rosto ao tirar o chapéu
entre outras coisas, esse pesadelo faz com que ele evite dormir antes do
amanhecer, mantendo-se acordado para não lidar com os pesadelos.
Logo após Johan
contar seu pesadelo, há uma cena em que a primeira moradora da vila aparece.
Uma senhora, com roupas brancas que destoam do ambiente, aparece enquanto alma
estende as roupas no varal e lhe diz onde Johan esconde o diário e seu caderno
de desenho. A partir disso novos personagens vão aparecendo e tornando a vida
do casal, e o filme, cada vez mais confusa e surreal. Esses novos habitantes da
ilha causam conflitos e agitação, como se a presença deles escondessem e
revelassem coisas obscuras em relação ao passado dos mesmos.
Eu sou normal e todo mundo é louco ou eu sou
louco e todo mundo é normal?
Durante todo o
longa, a linha que separa o real e a alucinação acaba se apagando, todos os
acontecimentos acabam gerando certa confusão no espectador. Ao se isolar na
ilha os personagens acabam se isolando psicologicamente, ou seja, o afastamento
da sociedade e das pessoas fazem com que os pensamentos se tornem cada vez mais
fortes e concretos. Apesar do filme, de certo modo, dar a entender que Johan é
a pessoa que de fato enlouqueceu, não dá pra negar a possibilidade de Alma ser
a pessoa que está fantasiando tudo, ou até mesmo ambos, pois em uma de suas
falas ela diz sobre as pessoas começarem a compartilhar características e
semelhanças devido ao tempo de convivência entre eles.
Além disso, devido
a falta de informações concretas, é impossível de dizer em que momento as
alucinações de fato começam (se é que elas ocorrem). Não é possível saber se já
está desde o principio no qual Alma existe apenas na imaginação de Johan (ou
Johan exista apenas na imaginação de Alma). Ou se Johan acaba trazendo pra
realidade traumas e desejos pra realidade devido ao isolamento. Também há a
possibilidade de Alma fantasiar toda a historia com base em pesadelos que Johan
contou para ela, afinal, apesar de estar na ilha com o marido, ela passa boa
parte do tempo sozinha em casa, fantasiando a historia devido a solidão e o
tédio. De todo modo, assim como os personagens perdem a noção de realidade, o
espectador do filme entra na mesma atmosfera por não conseguir distinguir o que
é real e o que é imaginação.
Em certo momento,
Johan se encontra com um morador da ilha que se apresenta como psiquiatra, em
pouco tempo de conversa ele se irrita e dá um tapa no homem. Independente do
homem ser real ou não, é possível pensar na cena como uma metáfora para o
rompimento da lucidez. O homem fica no chão com o nariz sangrando assim como a
referencia de realidade e fantasia também é abalada.
A aparição dos
outros personagens se dão após a visita da senhora de roupa branca a Alma, que
revela o local onde está escondido o diário. Desde modo, o diário pode ser um
dos principais princípios para tudo que ocorre. Mas sua origem também é uma
grande incógnita. A senhora diz ser o diário de Johan, entretanto, se a senhora
é uma projeção criada por Alma, a loucura antecede ao diário. No mais, também é
possível pensar que Alma sempre morou sozinha e que a solidão fez com que ela
criasse personagens para compensar o vazio e a solidão. Além da loucura, por
ser um filme que propõe muito mais perguntas do que respostas é, também,
possível pensar na senhora como um elemento sobrenatural.
A capa do diário
lido por Alma é cheia de rasuras e a escrita transmite uma ideia de algo feito
por uma criança. É difícil pensar que aquele diário pertence a um artista com
certo renome e prestigio, e as cenas de Johan acontecem enquanto o diário é
lido por Alma. É como se tudo acontecesse em sua imaginação, pois, desde o
inicio do filme, tudo acontece através de sua percepção, já que Johan está
desaparecido e a história se baseia em suas memórias e em informações do
diário, que têm uma origem duvidosa.
Vargtimmen?
Na metade do filme,
surge uma tela preta com apenas a palavra Vargtimmen escrita, como se Bergman
dividisse o filme, dando a entender que a partir daquele momento o filme
tomaria outro rumo. A palavra na tela é explicada pelo personagem momentos
depois. A palavra faz referencia a uma lenda que diz que a “hora do lobo” é o
período antes do amanhecer em que a escuridão domina a alma, e os pesadelos se
tornam mais presentes e profundos, a hora em que muitas pessoas morrem e muitas
nascem.
Na segunda metade
do filme é perceptível uma mudança de narrativa, mas, além disso, também existe
uma edição diferente. Na primeira parte o filme é apresentado como uma espécie
de diário e conjunto de memórias, ou seja, as cenas nunca se completam, elas
sempre são interrompidas por um fechamento de tela, como se a leitura fosse
interrompida ou o pensamento voltasse pro presente.
Assim que
Vargtimmen surge na tela é como se a hora do lobo também ocorresse com o
próprio filme, todos os resquícios de sanidade vão embora e o mundo real é
corrompido. Na primeira cena após a frase na tela preta, Johan conta um
episodio de sua infância para Alma, no qual ele foi trancado no armário e
apanhou do pai, mostrando que existe um trauma que ainda o assombra. Além
disso, Johan também revela o assassinato de um garoto enquanto pescava.
Is this real
life? Is this just fantasy?
*spoilers*
Da cena do
assassinato em diante Johan mergulha no abismo de seus traumas e pesadelos, o
tempo e o espaço se confundem na cabeça do protagonista e a insanidade toma
conta do mesmo. Ao voltar pro castelo o personagem emerge em um percurso de
personagens e diálogos peculiares que se misturam a atmosfera absurda e intensa
da segunda parte do longa.
A sequência final
mostra a busca de Johan por uma mulher chamada Verônica, ao que tudo indica, é
um caso passado do artista mas que deixou traumas, desejos e lembrança. Essa
busca mantém um ritmo intenso pelos cômodos do castelo, e junto a isso os
personagens se mostram cada vez mais estranhos. Nesses 20 minutos finais o
diretor apresenta diversas situações que brincam com a dualidade dos eventos,
as cenas conseguem ser repulsivas e atraentes, cômicas e serias ao mesmo tempo.
Há, inclusive, uma cena na qual Johan é maquiado por um outro homem e em nenhum
momento ele se coloca contra a situação; é como se aceitasse que o irreal
tomasse conta de suas ações, não existindo mais luta contra a loucura.
Ao encontrar
Verônica, Johan reflete sobre a sua situação, entretanto sua fala deixa em
aberto se ele se dá conta de sua loucura ou se é um momento de libertação no
qual ele se entrega aos traumas e desejos e decide viver a loucura e abandonar
a realidade.
Além do próprio
roteiro e atuações, existem elementos no filme que funcionam como metáforas
para os sentimentos dos personagens. A água, por exemplo, se mostra um elemento
importante na construção da insanidade de Johan, tanto que ela está presente em
momentos críticos do filme, ela se mostra como um elemento opressor. Também
existe a questão da ilha, que além do espaço físico também pode ser visto como
o inconsciente do personagem, que devido aos traumas ficou aprisionado em um
local onde não há como sair, pois está rodeado de água, ou seja, medos.
O filme inicia e
termina da mesma forma, com Alma narrando, em tom documental, os
acontecimentos, ela reflete novamente sobre a ideia de que pessoas que passam
muito tempo juntas compartilham das mesmas características, fazendo com que
fiquem ainda mais parecidas.
Comecei a ver pessoas estranhas, o que eu faço?
Antes de tudo quero
adiantar que a culpa não é do Café,
então nada de nos responsabilizar por suas loucuras. Não iremos pagar o
psicólogo; culpem o Bergman. Mas se você começou a ver pessoas novas eu
recomendo que você faça amizades – nada melhor que amiguinhos novos, não? Mas
se esses amiguinhos começarem a sugerir coisas estranhas, tipo assassinato,
acho melhor você fugir.
A hora do lobo é um
filme perturbador que leva o espectador ao abismo dos personagens, mantendo
duvidas e inquietação durante todo o tempo. A realidade e a ficção são frágeis,
elas se quebram e se misturam a todo o momento, a insegurança toma conta
durante todo o filme, porque nunca é possível saber até que ponto aquilo que
foi visto é pura ficção ou realidade. O longa é a própria hora do lobo pra quem
assiste.
Trailer
que resenha maravilhosa! exclareceu muitas respostas, de muitas perguntas que o filme arranca!! muito obrigado e parabéns ao blog!!
ResponderExcluirque resenha maravilhosa! exclareceu muitas respostas, de muitas perguntas que o filme arranca!! muito obrigado e parabéns ao blog!!
ResponderExcluirBela resenha!
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