Preparam-se,
amigos do Café, agarrem suas esperanças e crucifixos, pois a
resenha de hoje tratará de algo intensamente sombrio e, ao mesmo tempo,
fascinante.... Aquele cujo nome nem Você-Sabe-Quem pronunciaria. Ele, que
trouxe à humanidade o conhecimento do bem e do mal, espalhou a música, a arte e
a corrupção entre nós, separando nossos espíritos de deus e nos fazendo viver
uma existência de sofrimentos miseráveis... Ele, nosso velho conhecido... O
progresso.
Título original: Sssssss
Lançamento: 1973 (EUA)
Duração: 99 minutos]
Direção: Bernard L. Kowalski
Sssssss
Atrocidades
pelo bem do progresso
Dizendo em poucas
linhas, “Sssssss” é um suspense super decente feito lá nos anos setenta, com um
roteiro bacaninha que não surpreende muito, mas também não entedia. Ele conta
uma história quase familiar sobre dois cientistas, suas ocupações e seus
relacionamentos, enquanto, no meio disso, desenvolve uma trama paralela a
respeito do homem cobra e seu surgimento. Tudo bastante gradual e paciente (por
sinal, até demais), convergente para um final meio maluco que tenta resolver
toda a trama acumulada num curto período. Não é uma obra prima, caso eu não
tenha deixado claro o suficiente. Também não é outra monstruosidade trash,
aliás, seus elementos trashs estão mais restritos as condições técnicas do
filme que a uma intencionalidade, isto é, ele não tenta ser
tosco-grosseiro-exagerado, porém consegue isso em vários momentos devido à
grana e à precariedade dos recursos técnicos.
Considerando ser
esse um filme bem mais ou menos, você deve estar aí se perguntando o que deve
existir de interessante nele, e se há mesmo algum bom motivo para assisti-lo
que não seja aquela minha conversa mole de sempre: “filmes trash merecem ser
vistos”. Vou tentar desdobrar esse ponto durante a resenha e, ao fim dela,
discutirei um pouco se o filme vale o tempo dispendido.
Sssssssigam-me os
bons.
Sssssss?
David Blake, um ingênuo estudante universitário, é convidado
para servir como assistente de um grande especialista em serpentes,
passando a conviver com o cientista e sua filha, sem perceber que ele próprio é
o novo experimento desse homem.
A cobra (não) vai fumar
De maneira
resumida, “O homem cobra” se concentra em mostrar a vida de Blake e seu mentor,
mostrando o relacionamento entre os dois e Kris (a filha), o trabalho que
desenvolvem com os répteis e assim por diante.

Caso eu não tenha
sido suficientemente claro, o que quero dizer é o seguinte: se você está pensando em ver o filme para ver a cobra fumar desde o início, com sangue
jorrando na parede, homens cobras matando à vontade e coisas semelhantes,
desista, pois não é esse o intento do filme. O que ele deseja ser é um bom
suspense com elementos de ficção científica e nada mais. O fato de que ele, por
vezes, exprime elementos do trash (e até do terror) é meramente acidental.
Assim, feche sua
boquinha engolidora de vidas e guarde essas presas venenosas para mais tarde,
pois essa não é a ocasião para usá-las.
Lúcifer e
a serpente
Não é preciso ser
muito esperto para notar as várias simbologias as quais se ligam a serpente.
Ela nos faz pensar em traição dado o seu comportamento imprevisível e nocivo,
mas também em Satanás por conta da serpente bíblica que convenceu Eva a comer a
tal da maçã e condenar a todos nós a um mundo onde existem injustiças, guerras,
fome, Ivete Zangalo e sertanejo universitário. Pior para nós. Ocorre que, seja
qual dessas associações simbólicas estejam atreladas à serpente, ela nunca é
vista como um bichinho qualquer, ao contrário de, por exemplo, um pardal ou uma
pulga. O filme se apropria desses signos de uma maneira bem sutil, isto é, sem
nos dizer exatamente o que está fazendo.
A associação mais
feita e repetida na história é aquela entre a serpente e Lúcifer. Blake ouve do
cientista - num papo casual durante o dejejum - que o capeta, ao tentar nos conduzir ao conhecimento do bem e do mal - ou
seja, a provar a tal da maçã - tencionava
ajudar a humanidade e não prejudicá-la; ele
queria nos ver progredindo. Bem.
Que tipo de progresso haveria em sair do Éden para ter uma vida marcada pelo
pecado, tendo conhecimento, mas, além disso, sendo um pária aos olhos de deus,
faria de nós pessoas mais avançadas é algo que, todavia, ele não explica. Vamos
guardar nosso senso crítico numa tapauer por enquanto e fingir que não
percebemos isso, já que independentemente dessas questões, essa simbologia do Éden estará presente em todo o filme dali
por diante de um jeito bem sutil e elegante que vou tentar explicitar aqui. É
como se, a partir desse ponto da história (o
café da manhã onde se dá a conversa), pudéssemos
passar a ver a trama por uma perspectiva bíblica para
entender as relações entre os personagens e os acontecimentos do filme. Em
parte acho que isso dá certo, em parte acho que não. De qualquer modo, farei um
esforço para tentar ler o filme dessa maneira que ele deseja ser lido,
apontando incoerências somente quando não der mesmo e seu corpo conceitual
parecer falhar. Avancemos.
Certo. Antes de
tratarmos propriamente do coisa-ruim em forma de réptil, abordemos
primeiramente a ideia de Éden. Fugindo de uma leitura da bíblia e me
concentrando apenas na imagem popular do lugar, o jardim é uma espécie de
instância na qual os seres humanos estavam em contato direto com o deus
bíblico, percebendo-o sem a mediação da religião, outras pessoas ou de um livro
sagrado. Lá eles viveriam em perfeita harmonia com os bichinhos e consigo
mesmos, sendo Adão nascido para Eva e ela para ele, não tendo conhecimento do
bem e do mal, sem sequer desconfiar que a monogamia era uma furada.
O desenrolar
dessa história todos sabemos: a serpente seduz Eva que, seguindo os passos de
Pandora, sua vizinha de mitologia, decide abrir a caixa, ops, provar o fruto
proibido, consequentemente, deus fica emputecido, expulsa ambos e amaldiçoa
seus trilhões de filhos que nada tem que ver como a história, cria tsunamis,
terremotos, doenças, a dor do parto, meteoros, abortos espontâneos, o trabalho,
secas, furacões... E nos dá a chance de nos religarmos ao seu “amor” através de
certa atitude existencial.
Hum... Mais
pensamentos para nossa tapauer. Prossigamos.
No filme, Blake e
Kris (a filha do cientista que, esqueci de dizer, é também cientista) são
representados como equivalentes a Adão e Eva: ambos vivem praticamente isolados
e cercados de uma natureza que não irá feri-los graças a intervenção de um ser
mais capaz; não desejam nada senão uma vida feliz e pacífica em que possam amar
as mesmas coisas; e se encontram num estado de inocência quanto a um mal
próximo que, em breve, lhes atingirá. Certa vez, inclusive, Blake convida Kris
para um banho nú no lago sem que a cena nos sugira uma conotação puramente
sexual, é como se ambos estivesse descobrindo o amor verdadeiro e não o
alfabeto do MC Catra:
“- Que tal
nadarmos um pouco?
- Está
louco, não viemos preparados.
- Eu não
me importo se você não (…)
- Vamos, Kris, você é naturalista, não?
E o que poderia ser mais natural que nós dois nadarmos no lago?”
Sinceramente não
sei como são as cantadas lá no habitat dos biólogos e qual é o grau de
efetividade desse argumento: “você é naturalista, nadar no lago é natural, logo,
vamos transar, quer dizer, nadar pelados”, contudo, já que essa conversa mole
vingou no filme, talvez funcione também na vida real. Tentem vocês e me digam
se deu certo. Substituam os termos pelas profissões de suas respectivas
paqueras: “você é rica, quero ser rico, logo, case comigo” ou: “você acredita
em deus, eu também, por isso, cresçamos e multipliquemos”, ou ainda: “você é
modelo, minha mãe diz que eu sou bonito, então, que se faça a putaria!”. Não
custa nada tentar.
*

Assim, tal como
na historieta sobre o canhoto, Stoner tem como objetivo fazer com que os seres
humanos progridam. Buscando isso ele atrai David com a proposta de emprego, a
vida tranquila de estudioso e cuidador de cobras, sem adivinhar que, mais
tarde, o jovem irá se engraçar com sua filha e botar tudo a perder. O
expediente do progresso é bem simples: atraio um idiota para o meu laboratório
e injeto nele drogas perigosas até que o rapaz atinja um estado em que
sobreviverá ao que lhe é nocivo atualmente, mudando para algo completamente
diverso. Essa nova condição seria semelhante aquela das cobras: seres
plenamente adaptados ao ambiente e que sobrevivem: “à poluição, ao holocausto,
às penúrias e às pragas”. Stoner crê que graças ao seu ideal (aparentemente)
nobre são justificáveis suas ações bizarras. Ele é “um grande homem” como é
dito logo na primeira cena.
O filme,
entretanto, nos fornece muitos elementos para que desconfiemos das boas
intenções do doutor. Desde o começo são feitas várias insinuações - por parte
de outros personagens - a propósito de seu caráter, ademais, ele mesmo faz
coisas que, se não se mostram más logo de início, soam suspeitas e contrárias à
boa conduta que encena perante a filha e o aprendiz. A sugestão é que os ideias
alegados pelo cientista podem não ser mais que interesse disfarçado ou,
simplesmente, loucura. O pai da mentira poderia estar seduzindo Eva por puro
capricho, porque é um tolo, porque não viu as coisas claramente, porque desejava
a queda da humanidade, enfim, por um motivo diferente daquele que ele próprio
alega para respaldar sua decisão. Há pessoas más por aí, leitores e leitoras do Café, que não enxergam
os monstros que trazem dentro de si, por isso, se você também não os notar,
poderá acabar sendo engolido por eles, ou pior: transformando-se numa aberração
igual. Podem até alegar que demo não quis causar o mal que causou, porém, é
inegável que ele jamais soube o que, de fato, era o bem.
Progresso
Um dos pontos
altos do filme é mostrar um personagem bom (ou aparentemente bom) que comunga
ideais com todos nós, mas que, no fundo, é a besta-fera encarnada. É como se
ele nos convidasse a gostar do cientista só para, mais tarde, revelar que
podemos apoiar nossos semelhantes só por conta dessa semelhança,
supervalorizando o que nos une e ignorando o que nos separa. Frequentemente,
ajudamos pessoas que pensam como nós ou que representam coisas com que nos
identificamos, desculpando suas faltas e até sendo coniventes com elas de
maneira que jamais seríamos com outros. Se Stone fosse simplesmente uma espécie
de Robotinik nós o rejeitaríamos desde o princípio, todavia, ele é um velhinho
simpático, um bom pai e um especiaista num assunto exótico que deseja o bem da
humanidade, o que nos impede de hostilizá-lo como inimigo durante um bom tempo,
período largo o bastante para que suas ações surtam efeito e já não possamos
mais evitar o resultado delas.
Stoner é a
própria noção de progresso megalomaníaco, a vinda inexorável do futuro a trazer
coisas desejáveis por um preço incalculável. Ele dá a humanidade um maior
conhecimento tanto do bem, possibitando que outras pessoas se aproveitem de
suas pesquisas, quanto do mal, traumatizando sua própria filha e aqueles que
acompanharam os horrores do homem-cobra. Qual é a verdadeira face desse
progresso? Quão poderoso ele realmente é? Em
tempo: estaremos dispostos a pagar por isso?
Devo
provar essa fruta, quer dizer, fruto?

“Acho que podia
mudar e viver com os animais. Eles são tão arrojados e reservados. Eu paro e
olhos para eles por muito tempo. Eles não se lamentam pro sua condição. Não
ficam acordados no escuro, chorando por seus pecados. Eles não me enojam
discutindo seus deveres a Deus. Nenhum deles está descontente. Nenhum se
preocupa com a mania de possuir coisas. Nenhum se ajoelha para o outro. Nem
para a sua espécie que viveu há milhares de anos. Nenhum deles é respeitável ou
infeliz sobre toda a Terra.”
Trailer:
Pois eu gostei do filme e da sua resenha, meu caro Bruno. Tanto o filme como a resenha são doidos. Rsrsrs. No bom sentido, e com todo o respeito, OK.
ResponderExcluirEsse filme só não é melhor porque realmente a grana estava curta quando foi produzido, com certeza. Ele daria um filme muito melhor. Mas valeu a intenção, pois eu gostei da atuação de todos os personagens, principalmente a do simpático mas traiçoeiro Dr. Stoner, que sem dúvida é a alma do filme.
Realmente, nasce um otário a cada minuto, como alguém já diz no próprio filme. Rsrsrs. E os otários são a filha do doutor e o assistente dele. Rsrsrs. Dois palermas, coitados, que não imaginavam a verdadeira cobra coral pra quem estavam trabalhando!
Adorei também sua resenha, Bruno! Espelha realmente o que esse filme representa!
É um filme que quase gorou devido à grana curta de seus produtores, que podia ter sido muito melhor, mas que não deixou de ser um filme muito interessante assim mesmo! Ele é um filme interessante até mesmo devido às falhas toscas também! Rsrsrs! Também é um filme clássico devido à intenção grandiosa do tema, e que apesar de ter todos os elementos de um filme trash, está longe de ser trash, na verdade!
Valeu, Bruno! Beleza, cara! Gostei demais de sua visão sobre esse estranho, grotesco e subestimado filme! Quase ninguém se propõe a discorrer sobre obras assim, mas você entrou de bola e tudo no assunto, e ficou super mesmo, cara!
Eu não sou Deus nem sou ninguém, mas estou aqui lendo sua resenha porque sou um DOIDO mesmo e todo DOIDO é altamente curioso, e fiquei curioso demais pra saber mais sobre esse filme que é tão interessante mas que está relegado à categoria de trash, sem o ser nem um pouco, apesar das aparências!
Uma das coisas que mais me chamou a atenção no filme é o Dr. Stoner acreditar mesmo nas profecias dele próprio! Ele disse que dentro de 50 anos as condições energéticas do planeta se deteriorarão de tal modo que só seres vivos de sangue frio poderão sobreviver!
Eu me pergunto se isso não está acontecendo já atualmente! O seres humanos estão realmente cada vez mais agindo como répteis, apesar de a temperatura do corpo deles permanecer em 36,5 graus centígrados!
O progresso tecnológico está fazendo as pessoas ficarem mesmo cada vez mais insensíveis, e me pergunto onde é que isso vai dar!
Nem precisa o ser humano se transformar em cobra, pois nosso mundo cada vez mais digital está nos tornando cada vez mais frios, de verdade! E começo a crer que as palavras do Dr. Stoner não são tão desprovidas de sentido assim, pois quanto mais tecnologia existir, mais reservas energéticas ficarão indisponíveis e se degradarão! Isso sem dúvida causa um impacto enorme sobre o comportamento das pessoas! Impacto que já estamos notando nas crianças de hoje e até em muitos adultos, cada vez mais enredados no mundo virtual digital!
Eu assisti a esse filme quando era adolescente e hoje vi de novo. Depois de assistir fui procurar uma crítica e adorei a sua. Parabéns, você escreve bem e definiu bem o sentido do filme.
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