
Depois de ver filmes sobre massacres, eletrodomésticos assassinos,
fantasmas, lobisomens, ateus homicidas, e tantas coisas mais, vocês, leitores,
se acostumaram finalmente aos conteúdos deste blog malvado. Sangue, café,
filosofia, dentes arrancados, literatura, serras elétricas e risadas malignas;
hoje, tudo isso faz parte de suas vidas.
Título original: Lua
de cristal
Lançamento: 1990 (Brasil)
Duração: 90 minutos
Direção: Tizuka Yamasaki
Lua de
cristal
Apesar de
tudo, buscando a sorte e sendo feliz
Você aí, leitor
do Café com Tripas, certamente deve
estar a dois passos do serviço de atendimento ao cliente do blog se perguntando
como ele pôde decair tanto. Eu te entendo. Juro. Todavia, como já tínhamos dito
na resenha de Ernest: o bobo e a fera e vou repetir: nós
do Café entendemos o trash como um
elemento, uma característica existente em vários tipos de filmes, inclusive
aqueles infantis; além disso, filmes para crianças carregam várias ideologias
que, dado o fato de que são dirigidas a um público “inocente”, muitas vezes não
são percebidas ou tidas como importantes de se decifrar. Assim, escolhemos
abordar obras inusitadas, não dirigidas somente ao público amante do
trash-tripas-morte-nojeira tentando descobrir o que é que elas escondem por
detrás de um rosto bonitinho, ainda que seja o rosto da Xuxa.
M de quê?
Maria, moça
simples do interior, muito parecida com certa apresentadora de TV, vai à cidade
grande em busca de seu sonho: tornar-se cantora. Para conseguir o que almeja
ela tem que enfrentar situações difíceis - como uma família que a despreza, uma
cidade hostil - e descobrir como se harmonizar com num novo mundo, que poderá
lhe dar tudo o que quiser e, talvez, até um grande amor.
Advertência
a você, leitor depravado
Ok, pessoas, eu sei o que se passa nas cabecinhas borbulhantes
de vocês: estranho amor, adolescência, fantasias, Xuxa e Exu, lindas
pernas, sexo, disco girando ao contrário, Satanás. Sei de tudo isso e,
certamente, iremos o futuro acertar nossas contas com esses assuntos, aliás,
Amor estranho amor - o tal do filme “de sexo” da Xuxa, caso você tenha chegado
no Brasil a cinco minutos ou seja simplesmente alheio ao mundo – é uma obra
que, por mais de uma vez, quase virou assunto do dia aqui no Café. Porém, hoje não é esse dia, o que significa que vamos mesmo
falar de Lua de cristal, ou seja, especificamente de um filme e não de toda a
mitologia que envolve sua protagonista. Não me venham com choradeiras então.
Sociedade,
infância e urbanismo
Lua de cristal,
por mais incrível que pareça, é um filme muito bem executado. Ainda que seja
vergonhosa a lembrança que temos dele, reassisti-lo foi bem surpreendente para
mim que não esperava encontrar uma técnica tão bem executada. Mais tarde
descobri que já tinha visto outros trabalhos de sua diretora, todos
muito bons, o que me ajudou a entender a qualidade do filme. Obviamente, quando
digo que é um filme de qualidade, não estou forçando nossas amizades, amigos
leitores, sugerindo que vocês devam trocar uma sessão do último filme do David
Lynch para ver Xuxa na TV - não é isso; o que quero colocar é que, sendo um
filme infantil estranho, Lua de cristal tem uma ótima execução técnica. Isso
não muda o fato de que se trata de um filme infantil da Xuxa, logo, pode ter
efeitos nocivos sobre seu bom gosto.
Com tudo isso, a
obra tem alguns aspectos bem interessantes para quem se liga na relação “arte e
representação de contexto histórico”, por exemplo. Ela é infantil, mas não
disfarça as conotações sexuais das cenas, a constante ameaça de estupro
pairando sobre a protagonista, não deixa de ter golpes que fazem a vítima
cuspir sangue, entre outras coisas. Se, de um lado, podemos pensar nisso como
sendo uma marca negativa do filme, dizendo que se trata de uma obra sem
vergonha que desvirtua as crianças desde cedo, podemos também, de outro,
conceber que haja uma mudança substancial do conceito de infancia tido na
década de noventa e o de hoje. Quando vejo certos filmes infantis da
atualidade, sejam aqueles vindo dos farrapos dos Trapalhões ou até da própria
Xuxa, sinto que algo se perdeu de lá pra cá e que, hoje, parecemos considerar
nossas crianças mais burras que naquele tempo.
Passando para
outro lado da discussão, o filme mostra claramente o reflexo de uma sociedade
em que a classe média começa a ganhar poder e a desejar expressar essa
distinção social através de seus grandes poderes: o de trabalhar e o de
consumir. Consequentemente, a trama está repleta de menções a cultura vigente
no período, a das lanchonetes e shopings que passavam a pipocar nas capitais,
onde jovens brancos se encontram para tomar milk shakes, sanduíches, paquerar e
conversar sobre coisas da moda, em suma, tudo aquilo que era transmitido pela
televisão e cinema da época como sendo jovem e, consequentemente, legal. Se num
filme como Cinderela
baiana (por sinal, com
outra loira) há uma propagação de valores bem populares, retratando-se a
pobreza como uma espécie de estado digno do ser humano, que se torna ainda mais
elevado conforme as pessoas se “dignificam” ainda mais através da labuta; em
Lua de cristal, o trabalho não é uma espécie de via da elevação moral, mas um
caminho para que cada tenha o dinheirinho que lhe permitirá alcançar seu sonho,
a casa própria, o carrinho popular, ou mesmo a carreira de cantora. As questões
dessa obra, portanto, são bem mais urbanas e midiáticas que aquelas de Carlinha,
rainha não dos baixinhos, mas dos axézeiros.
Maria das
Graças ou Xuxa?
Logo na primeira
cena vemos que a mãe de Maria, mesmo sendo uma velhinha pobre e sem recursos,
dá à filha grana para que ela inicie a vida na cidade grande. Aliás, essa é uma
cena ótima que, com poucos enquadramentos de câmera, consegue explicitar ao telespectador
qual é a história que ele verá em seguida. Para nós, que, no entanto, vemos
mais longe que isso, ela traz alguns elementos extras.
Primeiramente, o
nome da protagonista é o mesmo da “atora” que interpreta a protagonista, ou
seja, somos induzidos a pensar que a história é, em algum grau, a biografia da
moça, o que faz com que estimemos a personagem com a mesma simpatia que temos
pela cantora e vice e versa; mais que isso, o nome Maria não é só o nome
oficial da Xuxa, mas também o nome de 98% das mulheres com nomes em português
ou espanhol (os outros dois devem ser Carolina e Ana), quer dizer, qualquer
mocinha – Maria Eduarda, Ana Maria, Maria Dolores - pode facilmente se
identificar com a protagonista já pelo nome
Em segundo lugar,
temos uma alusão a condição dos despatriados - estrangeiros, imigrantes, enfim,
daqueles que estão fora de sua terra tentando conseguir algum reconhecimento -
usada de maneira a ganhar nosso coração. A mensagem é a seguinte: a
protagonista é uma coitadinha, olhe que triste ela se separando da mãe e
vivendo sozinha num mundo hostil, tenha pena dela, espectador, pois ela está
fazendo um grande sacrifício para ser reconhecida, reconheça-a, torça por ela.
Por fim, a cena
dá um horizonte de progressão para o filme, em outras palavras, ele diz a nós
qual é a aléia pela qual a protagonista irá caminhar. Maria - qualquer uma
delas - tem um sonho e a trama narrará sua vida até a realização dele. Se já
temos alguma compaixão pela personagem dados os itens anteriores, esse elemento
derradeiro nos fará querer saber, afinal, se ela vai conseguir ou não o que
quer. Esse talvez seja um dos aspectos principais do filme, vou me demorar um
pouco mais nele.
Mensagens
Repetidamente
Maria tem um sonho em que está na floresta encantada se divertindo com seres
mágicos (não, não cabe malícia nessa frase). Numa dessas viagens, um velho -
que mais tarde saberemos ser seu professor de canto - diz a ela que os seres
mágicos, embora pareçam não existir mais no mundo, continuam por aí disfarçados
entre gente comum, e que, se procurados atentamente, podem ser reconhecidos.
A ideia aqui é
que há algo de bom para além da aparencia simples das coisas, que há mistério e
magia neste nosso mundo cinza, que o cotidiano chato em que vivemos pode ser
ultrapassado para adentrarmos no fantastíco, no onírico, que podemos vencer uma
situação adversa e conseguir nosso final feliz, o que tem tudo que ver com a
situação da moça. Se, de um lado, Maria tem um desejo, de outro, o mundo parece
querer nega-lo. É aí que entra a tal da lua de cristal e, efetivamente, a
grande mensagem do filme. Quando Maria está vulnerável por ter sido pisada e
atingida, a lua bonitona lá no céu surge como uma espécie de horizonte feliz
que ela pode admirar, notando nele uma beleza distante que, tanto a inspira a
continuar, quanto a suportar o que há de ruim na vida. É a representação da
força que impede que Maria desista da vida apesar de tudo o que há de
complicado nela. A moça conversa com a lua como quem dialoga com deus em tempos
sombrios, vendo nela um tipo de luz que brilha apesar de toda a escuridão do
mundo (paguem um pau pra minha retórica). É como se ela sempre mantivesse um
tipo de espaço para a fantasia que ajudasse a manter vivo seu sonho enquanto a
vida está uma droga. Basicamente, é essa a mensagem do filme e também da letra
que o anima.
Se vocês
considerarem isso por um lado mais social, verão que esse tipo de ideologia
combina bem com o pensamento de um povo que, vivendo uma vida desgracenta,
espera conseguir o que deseja pelo trabalho e esforço, mesmo que para isso
tenha que enfrentar de uma repetição insatisfatória de labuta, stress e
desencanto com as pessoas. Se bem me lembro, Lua de cristal foi um sucesso
danado, não é?
O fato de
sabermos desde o princípio do filme que Maria vai conseguir o que quer e se
tornar cantora (tá, não uma graaaaaande cantora, mas ainda assim uma cantora de
sucesso) só faz com que nos compadeçamos ainda mais de sua situação triste.
Ninguém quer a Xuxa sofrendo, afinal.
A partir desse
ponto podemos problematizar algo que o filme não se preocupa muito em
considerar: por que somente Maria tem sonhos, e mais, por que só ela consegue
atingi-lo?
Não vou me
estender muito nisso porque seria colocar teoria social num filme que,
evidentemente, não está preocupado com isso, mas nesse aspecto a mensagem
principal do filme de que sua protagonista representa algo que pode ser
vivenciado por todos (e que, na verdade, é a representação do sonho de todos)
fica um tanto prejudicada dependendo da maneira como é considerada. Vou
explicar melhor, mas para isso é preciso falar de outra coisa e em seguida
volta a esse assunto. Façamos isso.
Para falarmos do
motivo pelo qual Maria é especial, quer dizer, por que ela sonha e consegue o
que deseja enquanto os outros apenas se contentam em viver dentro de seus
cotidianos, é preciso ressaltar que a personagem é constantemente elogiada como
uma espécie de princesa Disney. Maria é uma princesa, o que no universo de
qualquer menina que tenha crescido depois da segunda guerra mundial é um grande
elogio. Ao chegar na cidade, por exemplo, ela esbarra em ninguém menos que
Sergio Malandro, aqui disfarçado com o nome de Bob. No encontrão, o rapaz
(nesse tempo ele era mesmo um rapaz) acaba ficando com o tênis da moça, uma
espécie de alusão à cinderela, o que imediatamente sugere que ela seja a
princesa e – yeah, yeah, é isso mesmo que você pensou – ele o príncipe. Mais
tarde temos também referências a maçã dada à branca de neve, seu sono que é
quebrado pelo beijo do amor verdadeiro, espelho espelho meu e coisas mais. No
geral, tudo isso converge para que acreditemos que a vida da Xuxa – ou seja,
Maria, ou seja, toda moça que esteja vendo o filme - é um conto de fadas do
qual ela própria é a protagonista. O que nos leva a conclusão de que a
protagonista é mesmo alguém especial, destacada, diferente das demais.
Nesse ponto
podemos voltar a questão que antes coloquei, quer dizer, por que só Maria sonha
e consegue as coisas? Podemos, de início, responder que a moça é especial e que
por isso só ela tem esses ímpetos, porém, essa seria uma resposta bastante
aristocrática do filme e prejudicaria sua apologia do “quem quer consegue”.
Talvez não haja uma boa resposta para isso, mas, de qualquer modo, arriscarei
uma: só Maria vai longe porque só ela tem ingenuidade o bastante para não notar
o quão repressor é o mundo, pois, se notasse isso, desistiria e passaria a
viver como todos os demais, quem sabe sendo apenas uma garçonete, uma cantora de churrascaria, uma atriz
fracassada com alguns longas ruins no currículo... Enfim, eu não sei, se
tiverem sugestões, coloquem aí nos comentários.
Devo abrir
a janela e olhar a lua de cristal brilhando no céu?
Agora falando
efetivamente da experiência de assisti-lo, dizer que Lua de cristal é bom ao
ponto de merecer ser revisto seria algo maluco até para um blog como este,
porém, naquilo que ele pretende ser (uma obra infantil da Xuxa), o filme é
ótimo, ou, para ser bem preciso, é competente, por mais brega que sejam seus
clichês, sua história e tudo o mais.
No geral,
trata-se de um filme de mensagem, digamos assim, ele sacrifica a coerência e
insere o absurdo na história a fim de melhor expressar o que quer: as cenas
ganham importância não por si mesmas, mas porque transmitem uma ideologia que o
telespectador rapidamente capta, há cortes de tempo que constroem sequencias
incoerentes temporalmente (como aquela que, mostrando uma única tarde, Maria
passa pela experiência de vários empregos), mas que, dentro do universo do
filme, fazem todo sentido e, mesmo os personagens enquanto indivíduos
singulares são submetidos a isso, havendo quem seja nomeado meramente por sua
função na história, como o Mauricinho, o rato, o professor de canto chamado
Uirapuru... Vocês entenderam.
Se você gostar
muito desse tipo de mensagem, curtir muito a Xuxa ou amar de verdade sua
infância, talvez queira revisitar esse filme como eu fiz, porém a todos os
demais tipos de pessoas eu recomendo o seguinte: atualmente, nenhum ser humano
tem a necessidade (se é que um dia essa necessidade existiu) de assistir
qualquer coisa da Xuxa. Vivam bem sem ela e sejam felizes.
Trailer
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