O que é a vida?
O que é a morte?
O que é a existência?
Por que estou fazendo essas perguntas?
Descubra aqui,
ou, caso já saiba, leia a resenha com a certeza que esta noite encarnarei no
teu cadáver.

Título original: Esta noite encarnarei no teu cadáver
Lançamento: 1967 (Brasil)
Duração: 108 minutos
Direção: José Mojica Marins
Esta noite encarnarei no teu cadáver
O peso de escolher ser livre
Você esperou e nós trouxemos finalmente a
segunda parte da trilogia de José Mojica. “Esta noite encarnarei no teu
cadáver” narra a continuidade da história de Zé do caixão logo depois de seu
torpor no cemitério no fim do filme anterior.
Conceitualmente a obra não traz grandes
novidades à filosofia do personagem e segue mais ou menos a estrutura narrativa
do filme anterior: Zé é apresentado, causa muitos problemas, reina absoluto em
suas maldades e, derradeiramente, é atingido pelas consequencias de suas ações
tendo seus objetivos ameaçados. Apesar disso, o filme dá um bom desenvolvimento
à história e reaproveita os elementos tradicionais do personagem de uma maneira
que, aqui e ali, traz pontos aludidos, mas não explorados de Josefel Zanatas, sem se colocar abaixo de seu
antecessor.
Do ponto de vista da resenha aqui do Café sobre o filme anterior, a história de
Zé acaba sendo, em certa medida, uma grande discussão sobre a servidão através
da religião e da superstição, mas igualmente sobre como o personagem escapa
disso negando Deus e os valores impostos por outros - os únicos valores os
quais ele é capaz de respeitar são aqueles construídos por e para si mesmo. Zé
é um homem livre vivendo num mundo servil. Tudo isso foi explicado na resenha
anterior, então não retomarei diretamente esses assuntos, entretanto tentarei
os expandir conforme o filme nos dê meios para tal. Tanto quanto eu puder,
evitarei dizer coisas que somente quem já viu a obra anterior conheça, no
entanto, nem por isso deixe de ler a resenha e ver o primeiro filme. Agora
vamos adiante.
De que tumba veio isso?
O primeiro filme da trilogia “À meia noite
levarei sua alma” contava a história do coveiro Zé do caixão, um homem niilista
e sem qualquer moralidade, que buscava perpetuar sua existência concebendo um
filho.
Já “Esta noite encarnarei no teu cadáver” narra a
continuidade da vida de Zé, que quase morreu no fim do filme anterior. Agora,
recuperado, ele causa uma série
de tormentos na cidade e sequestra mulheres, passando a testá-las a fim de
descobrir qual será aquela digna de herdar sua linhagem.
Mais Nietzsche, mais Zé:
a tipologia do fraco e do forte
Como já tínhamos afirmado (aliás, não só nós), há grande semelhança entre as ideias
propagadas pelo coveiro Zé e pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Se antes aludimos aquela da ligação
cristianismo com a desvalorização do mundo real para a valorização daquele
ideal, agora veremos outra que ajudará a nortear esta resenha doravante. Não se preocupe caso o nome filosofia
te assuste, pois não é nada excessivamente pedante ou teórico. Apenas fique
firme, pois será divertido.
Repare no cartum do Quino aí acima, ele ilustra
bem a tipologia que desejamos esclarecer. Vemos dois personagens contrapostos,
em conflito e prestes a duelar, porém, mais que isso, há uma disparidade de
forças; um deles é maior, mais bem armado e, por isso, aparenta ser mais forte
e propenso a vencer; o outro é menor e sequer pode ver por cima de seu escudo.
Quando olhamos seus brasões isso se torna mais explícito, pois enquanto o fraco
um exibe uma representação de família, um valor praticamente moral, o forte
mostra um leão, como uma espécie de representação da força que usa contra seus
adversários. Moral e força, tenham em mente essa contraposição.

Em linhas bastante resumidas (e inspiradas nesse video)
essa é para Nietzsche a tipologia do fraco e do forte. Não se trata de uma descrição
da realidade nua e crua, mas de um tipo de percepção de um norte histórico
existente até então.
Voltemos agora ao filme.
Para Zé a moral é a arma dos derrotados, é fruto
direto da fraqueza daqueles que só podem se defender dos mais fortes os inserindo
numa relação de bem e mal. Através dela os desvalidos criam uma força que
reside justamente no fato de que são fracos. Bons são os pobres, os doentes, os
misericordiosos, em suma, os derrotados. Pensando dessa maneira podemos
facilmente compreender o motivo do desprezo do personagem por todos aqueles que
se ligam a religião, a moralidade, aos sentimentos ditos nobres e coisas do
gênero. Zé não é mau, mas forte. Ele sabe perfeitamente qual é o jogo dos
miseráveis e escolhe se colocar fora dele e exercer sua força sobre os demais
sem se importar com o modo pelo qual eles o representarão. A associação de Zé
com o ateísmo, portanto, não é relativa a uma escolha pela mal, no entanto de
uma escolha pela imoralidade, isto é, pela falta de uma referência moral pré
estabelecida, posta por outros e aceita impensadamente como uma arapuca, Zé
escolhe o ateísmo porque deseja viver na liberdade e não na servidão.
A partir disso é possível explicar duas coisas
que surgem no filme: a valorização das crianças e o rapto das moças.
Comecemos pelas crianças. Para o personagem elas
são as representantes de um valor que ele – e não a religião ou a sociedade –
elenca como supremo: a continuidade do sangue, ou seja, a possibilidade de que
a vida humana se extenda indefinidamente por meio da produção de outras. Além
disso, representam também o estado em que estamos ligados ao instinto e, com
isso, isentos dos preconceitos e das superstições do mundo adulto que nos
submeterão a poderes externos, de tal modo que nossa capacidade de agir no
mundo fica determinada por eles, ao invés de determiná-los. A infância, então,
é dos raros momentos de liberdade que temos na vida.
Com isso, podemos entender os objetivos do personagem ao raptar as
moças: Zé quer a imortalidade através da continuidade de seu sangue, em outras
palavras, quer um filho; no entanto, há agravante nisso: ao invés de
simplesmente engravidar uma mulher qualquer, o personagem procura por uma
mulher específica, por aquela que seja tão extraordinária quanto ele e que, por
conta disso, seja capaz de produzir uma linhagem superior, fundada em pais
superiores. Em termos nietzschianos seria como se Zé tentasse criar uma descendência
de fortes que jamais se tornarão fracos e morais (obviamente, o filósofo não
concordaria com isso, podem dizer, mas estamos falando de Zé e não de
Nietzsche).
Para conseguir essa façanha o personagem rapta
várias mulheres e passa a testá-las, o que em termos práticos significa que ele
deseja descobrir se as moças são fracas (morais, boas) ou fortes (vitoriosas no
jogo de forças). Aquela que se mostrar a altura dele, a mulher superior, será
“agraciada” por Zé com o benefício de ser a mãe de seu filho, entretanto, as
demais... Bem... Veja o filme e descubra. O importante nesse aspecto é que o
coveiro não deseja torturar ninguém, tampouco causar mal as moças, mas
descobrir se, por detrás da casca de civilidade que cada uma veste, existe uma
pessoa miserável ou extraordinária, se, num momento de fragilidade, elas apelam
ou não para as superstições e tolices, para as crenças primitivas que irão
limitar sua potência e a de seus filhos. Por isso, o teste de Zé é brutal e
chocante, ele verifica o extremo do ser humano e não sua superfície. A mulher
superior não pode fraquejar diante do sofrimento e do absurdo do mundo.
“Sadismo não, ciência”, diz o personagem a certa altura, quer dizer, o que ele
traz não é uma tortura vazia, mas um método extremo que faz com que os fatos
apareçam claramente,. Nesse sentido Zé é uma espécie de cientista da natureza
humana que faz surgir o conhecimento da verdade.
O estranho mundo...
Há no mundo de “Esta noite encarnarei no teu
cadáver” duas maneiras de agir: aquela dada dentro do livre arbítrio, em que
podemos escolher entre as opções permitidas pela moral (e por Deus) ou seremos
repreendidos por nós e por nossos semelhantes; além dela, há também a via da
liberdade, em que qualquer ação é possível porque nada nos constrageria
internamente a uma forma específica de agir. É fácil notar que a humanidade
está de um lado e Zé do outro, o que tem diversas conseqüências importantes na
trama. Uma delas é que o protagonista será julgado todo o tempo – pelo “povo
ignorante” do filme, mas igualmente por nós – como uma espécie de monstro.
Outra seria que ele está praticamente sozinho contra todo um mundo de imbecis,
aliás, um bom motivo para buscar criar um filho. Por isso, nos momentos em que
os objetivos de Zé podem ser comprometidos, ele não irá se confrontar
propriamente com outras pessoas, mas consigo mesmo, o único capaz de entender
suas ações e de se responsabilizar por elas (inclusive, naquela cena vermelha
maravilhosa que não irei aludir), além disso, a relação do coveiro com as
outras pessoas acaba, quase sempre, sendo uma relação de choque ou de assombro,
pois ele é tudo o que os outros não são e não podem ser. Zé tanto pode ser
temido quanto admirado, entretanto raramente entendido. O mundo o condena sem o
compreender.
Apesar disso, o coveiro afirma que a verdade irá
aparecer e, de fato, ela aparece, mesmo que as pessoas sejam burras demais para
a reconhecer. Vou explicar melhor.
No princípio da história Zé está sendo julgado
pelos crimes do filme anterior (assassinato, estupro, tortura, enfim) e, como é
óbvio (ou não haveria história), está também sendo inocentado deles. Apesar
disso, o homem é culpado de cada uma das acusações até o último fio de cabelo,
como bem sabemos. Logo, a justiça falhou. Anotem isso e prossigamos. No correr
da trama vemos que Zé comete um monte de outros crimes sem que pague por eles,
porém, mais que isso, o bandido tenta manipular a justiça para que ela sirva
aos seus objetivos, em outras palavras, além de promover um terror enorme na
cidade e cometer vários crimes, Zé ainda tenta usar a lei para ajuda-lo nisso.
Não é algo muito diferente do que vemos ocorrer hoje em várias esferas da vida
política, todavia, para o filme isso tem um significado maior que meramente
expor um personagem cretino. Sendo o protagonista um fascínora ou não, o fato é
que no universo de “Esta noite” a lei é uma espécie de poder cego que pode ser
direcionado para qualquer um desde que se aplique o impulso necessário sobre
ela. Colocando em outros termos, a espada da lei pode ser brandida contra
qualquer pessoa, inclusive inocente, desde que venhamos a manipula-la do jeito
adequado.
Para aqueles que vivem dentro do livre-abítrio
isso é nefasto, já que nem o mecanismo que assegura o nosso modo de vida
consegue garantir que ele exista segundo nossa concepção. Nossa justiça, essa
coisa em que acreditamos para justificar nossa maneira de viver, pode ser mais
ou menos justa de acordo com a força que se aplica nela, ou seja, ela é burra e
cega, inapta para aquilo que existe. Então para que serve? Zé do caixão nos
dirá: para garantir nossa servidão. E por que ela continua existindo? Zé também
responderá: porque somos bovinos, ignorantes e inferiores.
Assim, quando o personagem começa a forçar o
mundo a agir como ele acha conveniente, acaba também revelando a superstição, a
tolice dos seres humanos. A partir disso, o que as pessoas farão não é tentar
sair de sua condição ridícula, aprendendo com a verdade que se torna mais
nítida, mas é tentar destruir o coveiro para que a paz da servidão volte a
reinar. Pare de me dizer essas verdades e morra, em nome de Deus. Obviamente,
as pessoas não conseguem enxergar o que está se dando, pois sequer são capazes
disso, elas apenas notam que Zé trouxe problemas e, com isso, deduzem que ele é
a origem deles. Reúnem-se em bando, como uma multidão de bois e vacas prestes a
enfrentar um moedor de carne, e vão “fazer justiça”.
Devo morrer para ver se alguém encarna no meu
cadáver?

Tentei aqui apenas esboçar os conceitos que
estavam por detrás da obra e as complementações que o filme faz em relação a
mitologia do personagem Zé do caixão que já conhecíamos. Por isso, deixei de
fora, tanto por conta do tamanho da resenha quanto para não “explicar o filme”
ao invés de mapeá-lo, uma série de coisas as quais você poderá ter o prazer
de ver por si mesmo e sem spoilers.
Apesar de simplório em vários aspectos, o filme
não tem uma proposta trash, nem uma falta de proposta que o faria trash, embora
seja considerado por muita gente desse modo. Mojica não gosta que o classifique
assim e está correto: sua filmografia é pobre de grana, mas rica de uma
criatividade absurda que vence essas carências e não se dobra a elas. Sempre
será possível falar de elementos trash, obviamente, mas o principal motivo de o
resenharmos é que ele inicia o terror, a liberdade de cada um fazer arte como
achar que deve, o confronto aos monopólios do cinema e, claro, porque é um
filme sensacional que faz qualquer franquia de hoje em dia corar de vergonha.
Por fim, dizendo o óbvio, o final de “Esta noite”, como é bem
conhecido, foi estragado pela ditadura, infelizmente. Inseriram lá umas
baboseiras que só mostram como os censores eram um bando de analfabetos
cretinos. Todavia, isso não apaga os milhares de méritos do filme que merecem
mais ser assistidos que descritos, portanto, não perca tempo e veja já.
Trailer
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