Nós, criaturas do lodo e da noite,
sabemos que o mundo maravilhoso dos filmes trash tem diversas ramificações, ele
vai do slasher mais sangrento ao pornô mais safado; tanto num caso quanto no outro
temos a impressão de que esse é um tipo de cinema que não é para qualquer um, e
que, sobretudo, é algo para adultos bem resolvidos e sem neuras com assuntos
delicados. Quem é muito dogmático, decente ou simplesmente são não consegue
apreciar bem o trash, pois ele faz sátira e heresia com tudo o que essas
pessoas valorizam, em outras palavras, ele esculhamba com um monte de coisas as
quais, se você louvar muito, vai se ofender assistindo uma obra que manga
delas.
Todas essas coisas são muito
verdadeiras, mas hoje vou precisar um limite para isso. Embora o trash seja sórdido,
feio e tantas coisas mais, ele não é, necessariamente, feito para se restringir
a um público adulto específico. O que quero dizer com isso? Bem, é simples: se
há filmes ruins, feitos para que sejam ruins, direcionados para o público
adulto, há igualmente filmes ruins, feitos para que sejam ruins, direcionados
para crianças.
Não, não faça essa carinha feia de
quem viu muita magia disney quando pirralho(a), pois garanto que você já
assistiu pelo menos uma dúzia de filmes infantis que tinham de tudo para
estragar sua vida – talvez até tenham conseguido!
Título original: Ernest
scared stupid
Lançamento: 1991
(EUA)
Duração: 89 minutos
Direção: John
R. Cherry
Ernest o bobo e a fera
Nosso amor hipócrita
Nós aqui no Café não
gostamos muito de pensar que exista um gênero de filmes chamado “trash” e o
motivo disso é que, se fizéssemos tal suposição, esse gênero teria que abarcar
desde o pornô (como Papacu) até ficção científica (como Do além), o que nos parece incoerente.
Assim, ao invés de considerarmos o trash como um gênero, preferimos concebê-lo
enquanto uma característica que pode existir em filmes de quaisquer gêneros,
incluindo-se-aí o infantil.
É nesse sentido que podemos trazer um
filme para crianças (ou adultos retardados) aqui para o blog sem medo de
desvirtuá-lo, tratando-o como trash quando ele não é. Um segundo viés seria
nossa crença de que é um erro achar que um filme infantil é desprovido de
ideologias e propostas temáticas porque seu público-alvo é inocente para
percebe-las. O cinema pode muito bem ser usado como educação, ideologia e
promoção de uma cultura, e esse é mais um motivo para analisarmos o filme de
hoje.
Dito isso, vamos lá!
Quem é o bobo e qual é a fera?
Ernest, um besta que trabalha como
motorista do caminhão de lixo, resuscita um antigo mal, um troll aprisionado
por um antepassado seu. A fera parte em busca de almas de crianças para recriar
sua raça e vencer os humanos.
O jardim de Ernest
Basicamente, “O bobo e a fera” expõe
uma trama na qual importa mais a ação - o correr dos personagens de lá para cá,
as piadas e coisas que irão nos entreter - que aquelas que nos conduziriam a
alguma forma de introspecção, em outras palavras, o filme tem uma história
bobinha e pouco importante já que tenciona mesmo vender ingressos e passar uma
lição de moral que justifique o dinheiro gasto. Partindo disso, vamos analisar aqui as
contradições da “mensagem” da obra, tentando explicitar o que ela esconde
debaixo dessa superfície polida.
Embora quase a totalidade
da trama seja debruçada sobre Ernest e sua tentativa presente de vencer o
troll e impedir que ele refunde a raça ao custo da vida de crianças, todo o
filme acontece tendo por base um passado histórico, quase mítico, cuja
influência determinaria em grande parte o curso dos acontecimentos atuais. Relembremos:
qual o motivo dessa guerra toda? O fato de que, num pretérito remoto, após uma
briga com o troll, um antepassado de Ernest o aprisionou, além disso, como
vingança a fera amaldiçoou seu algoz fazendo com que seus descendentes ficassem
gradativamente mais burros, o que explica a condição de Ernest. Do mesmo modo
como o protagonista tem que lutar uma guerra que não é sua, vivendo num mundo
condenado por algo que corre em seu sangue, mas não tem origem em si, ele mesmo
enquanto indivíduo está determinado por um passado esdrúxulo que o ultrapassa e
faz com que seja como é.
Essa coisa toda tem uma carinha de pecado original que não está
ali por acaso, inclusive, em certo momento o troll diz a ele: “vai pagar
pelos pecados de seus antepassados”, como um tipo de condenação ancestral ou
mito do éden que determinaria sua condição presente. Malgrado isso, Ernest nem
parece muito preocupado com o questionamento ou compreensão de sua conjuntura,
na verdade, ele assume um papel no conflito sem se perguntar se poderia ser
diferente ou se há ou não razão no que faz; seus motivos imediatos (ainda que
possam ter uma origem histórica) são suficientes para fazê-lo se assumir
enquanto caçador de monstros, por isso, se seu ancestral teve motivos
para prender a fera, se ela é má por escolha, se foram os humanos quem
deram motivos para que os trolls os caçassem, nada disso importa ao estúpido
Ernest, distante da altivez de seus avós e bizavós, muito emburrecido por
um sangue poluído para entender ou querer entender o que está acontecendo. A
guerra é tudo e o que interessa não é a verdade, mas a vitória.
Na guerra até Ernest tem valor
Eu diria que essa questão da alienação
quanto ao passado condenatório é um dos primeiros aspectos relevantes
do filme, um segundo seria a questão da discriminação ou, caso você
prefira, do bullyng. Esse é um dos pontos positivos do filme do ponto de vista
de uma obra infantil, ele aborda a diferença de poder entre as pessoas que as
separam na forma de relações sociais. Trocando em miúdos, quero dizer que as
diferenças de poder entre as pessoas acaba gerando pensamentos separatistas
entre elas. Nas crianças isso é bem óbvio já que elas não estão muito
preocupadas em fingir que são boas - quando um menino não gosta de outro, seja
por seu cabelo, sua roupa, porque o inveja ou qualquer coisa, ele pode
humilhá-lo muito mais facilmento que um adulto numa situação semelhante. Nós, rapazes e meninas crescidinhos, ao invés de sairmos por aí batendo e cuspindo
uns nos outros, usamos formas linguísticas mais sutis para substituir essa
violência que não podemos mais praticar, seja mostrando o dedo, usando ironia,
rotulando ou qualquer coisa semelhante. No filme, enquanto as crianças entram
facilmente em conflito umas com as outras por meios físicos, e assim
estabelecem os dominantes e os dominados, no núcleo “adulto ou quase isso”, por
sua vez, a discriminação é bem mais sutil: Ernest é o motorista do caminhão de
lixo porque é claramente diferente dos outros, sendo por isso tratado como um
imbecil ao qual não se pode atribuir muita confiança. De um jeito e de outro o
resultado é o mesmo: quem vencer na luta de forças ganha o “direito” de se
sobrepor ao outro, podendo construir seu ninho no topo da hierarquia da
dominação.
Pois bem, façamos agora um cálculo
singelo: somemos aquele primeiro aspecto - da alienação de Ernest ao seu
passado determinante - a esse segundo aspecto - da hierarquia de poderes dada
pela discriminação - e assim poderemos concluir o resultado mesmo sem
ver o filme: há uma guerra acontecendo e a maneira pela qual as pessoas se
inserirão nela dependerá de sua posição na hierarquia social. As crianças
discriminadas e Ernest estão situadas lá na parte baixa do sistema, reduzidos a
condição de dependentes inconsequentes, enquanto os “adultos” tomam a decisão
por eles e escolhem o que fazer. Não bastasse isso, os mais velhos não
conseguem vencer o troll, entender a situação ou impedir o avanço dos planos da
fera; suas tentativas de controlar a situação falha, de maneira que acaba
ficando nas mãos dos desprezados resolver o conflito, entretanto, quando isso
acontece e são eles que descobrem como vencer o troll, seu estatuto diante dos
demais muda, eles passam a ser reconhecidos. Quem estava lá embaixo para a ficar junto a quem estava em cima.
O filme não se debruça nessa grande
hipocrisia, mas podemos ressaltá-la aqui: as pessoas se odeiam e estão
separadas por diferenças que criam hierarquias de dominação; uma criança pisa a outra, os
adultos se sentem no direito de tratar Ernest como alguém inferior e
desprezível por conta de suas características, entre outras coisas, contudo, na guerra tais
diferenças vão desvanecendo conforme fica claro que, nesse momento de urgência, até
um bobo como Ernest ou as crianças podem pegar em
armas e enfrentar inimigos que ameaçam a todos. É como se a guerra
unificasse as pessoas ao ponto em que, até a pior delas, passa a
ganhar valor desde que enfrente o inimigo que condena o
modo de vida coletivo. Um dado interessante a esse respeito é que na
guerra do Iraque, dada a escassez de soldados, os EUA passaram a aceitar
ex-criminosos em suas fileiras, dando a eles, portanto, um reconhecimento
público de seu valor numa situação de emergência. A questão mais
intrigante seria se depois da guerra as distinções anteriores a ela voltariam
ou se os desprezados continuariam sendo valorizados por aquilo
que fizeram no momento de guerra.
Amai uns aos outros exceto...
Bom, eu disse um monte de coisas
cruciais do filme, porém agora me voltarei para a sua “mensagem” mais forte, a
do amor incondicional. Lá pelo fim da história tentam nos dizer que o amor
incondicional é um modo de se derrotar os monstros e impedir que sua raça
ressurja. Por mais estranho que pareça é assim mesmo: ame seu inimigo, pois
assim você irá matá-lo e também os seus iguais. Como o filme adere à visão do
Ernest, ou seja, não olha criticamente para nada, também não consegue perceber
um tom perverso nessa mensagem feita para ser bonitinha. Vamos explorar mais.
Na superfície nos é dito que um gesto
de amor incondicional seria capaz de vencer uma criatura má, como um tipo de
aceitação ou perdão dela a qual a fera não suportaria dada sua natureza. Com
efeito, o amor incondicional seria uma espécie de sentimento superior ao mal
que o venceria sempre, constituindo-se a maior potência existente contra ele.
As crianças, dada sua ingenuidade, teriam em si a capacidade para o amor
incondicional, o que as tornaria, talvez, mais aptas para vencer as feras que
os adultos. Ernest, por sua vez, como é um tipo que nunca se desenvolveu
enquanto adulto, tem o mesmo potencial que a molecada, por isso, também poderia
vencer o troll. Assim, quando isso finalmente acontece, somos atingidos pelo
amor incondicional do bobo e passamos a atribuir-lhe o valor que lhe tinha sido
negado até então. Uma grande apologia do amor como forma de união entre as
pessoas e superação da iniquidade, portanto. Ao menos, é disso que o filme
tenta nos convencer.
Tomando alguma distância dessa
baboseira toda vemos que não passa de uma superfície ilusória para uma
realidade mais obscena. Na prática tal amor não vai além de um embelezamente de
vários interesses convergentes. Desconsiderando que Ernest não tenta descobrir
porque o troll é como é ou porque deveria se colocar contra ele como se coloca,
temos um filme no qual sistematicamente o protagonista enfrenta seu inimigo de
diversas maneiras bem violentas. O troll não consegue suportar amor, o
que parece sugerir que ele seja uma criatura desprezível, no entanto podemos
notar que amor de Ernest não lhe impediu de, durante ação do filme, distribuir pontapés na
fera, atropela-la repetidamente com uma caminhonete, jogá-la de
um veículo em movimento e coisas mais. Quem suportaria um amor desses? Friamente,
o sentimento “incondicional” do protagonista não passa de um disfarce hipócrita
para sua vontade de terminar com o problema, ele existe mais para
solucionar uma situação pontual que para criar uma harmonia verdadeira entre o
troll e o humano, afinal, se fosse mesmo amor, por que precisaria se
atrelar aos interesses imediatos do personagem? O amor não seria
incondicional justamente por existir independentemente do que a fera faça?
Da mesma maneira a ideia de que as
pessoas seriam contagiadas pelo amor do bobo e assim aprenderiam a ama-lo fica
prejudicada. Ernest ganha valor somente depois que combate
trolls, virando uma espécie de guerreiro ou caçador, passando a
ser “amado” não porque as pessoas aprenderam a gostar do que ele é, todavia porque notaram
outro aspecto seu (o de guerreiro) o qual é muito conveniente para
elas, fazendo com que reconsiderassem seus sentimentos quanto a ele. Dizendo
bem claramente: as pessoas passam a “amar” Ernest somente quando
ele se torna útil a elas. Santo amor. Aliás, o mesmo se dá com as
crianças desprezadas, passando a ser respeitadas pelos adultos a
partir do instante em que se mostram úteis e deixam de ser meros
dependentes. Segundo essa noção de amor um guerreiro ou um cachorro bravo
que enfrente e vença o adversário, no fim das contas, vale mais que qualquer
ser humano.
Devo entrar em guerra com os trolls?
Não, trolls são legais demais para
que sejam combatidos.
Quanto ao filme, creio que também não
há um bom motivo para assisti-lo que não seja saudosismo da infância (se é que
é possível alguém sentir falta dos filmes do Ernest nesse mundo). Não é o caso
de eu vir aqui jogar o imenso prestígio da franquia Ernest na lama dizendo que
o filme é uma porcaria completa, inclusive porque, se você tem ao menos uns
dois neurônios, já sabe disso, porém de meramente dizer: essa fase da vida
passou, foi bonitinha, nos fez felizes, rimos, torcemos pelo bobo ou pela fera,
mas passou, e agora que já revivemos isso através desta resenha vamos abandonar
o passado sem medo de crescer.
Trailer:
Nossa, eu adorava os filmes desse cara quando era criança.
ResponderExcluirEu acho que vi vários dele, mas não lembro quais exatamente.
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