Título original: Elvira, Mistress of the dark
Lançamento: 1988 (EUA)
Duração: 96 minutos
Direção: James Signorelli
Elvira a rainha das trevas
Eu e o outro
“Eu é um outro”
(Rimbaud)
Seja
lá quem for você, leitor, provavelmente já viu esse filme mais vezes do que fez
aniversário. Elvira é um clássico que ninguém esquece. Todos nos lembramos do
peitocóptero, do cãozinho satânico Gonk e tudo o mais. Obivamente, vamos
rememorar um pouquinho essas coisas durante a resenha, contudo, aqui no Café
nossa intenção não é adular os filmes que amamos (mentira, é sim), mas analisá-los
e descobrir o tipo de argumentos e ideias que sustentam. Assim, abordaremos
menos o filme que as ideologias sustentadas nele. Vamos lá.
Quem?
Na
remota hipótese de que você seja uma alma infeliz e amargurada que nunca viu esse
filme, a sinopse é a seguinte: Elvira, uma estrela decadente de filmes B vai a
uma pequena cidade receber uma herança vinda de sua tia falecida. Ela espera
usar o dinheiro para estrear seu próprio espetáculo em Las Vegas, mas acaba
descobrindo verdades estranhas sobre seu passado que vão alterar seu caminho.
O eu e o outro
A
trama se desenvolve a partir da entrada de Elvira na cidadezinha e dos efeitos
que sua presença causa ali. Iremos discutir tais efeitos, mas comecemos pela
causa. O aspecto mais interessante do filme é com certeza sua personagem
principal, a própria Elvira. Tudo o que ocorre nele se dá (diretamente ou
indiretamente) por conta da existência dela e de sua interação com outros
personagens. E o que ela tem de mais para provocar tantas coisas? Bom,
resumidamente, é uma mulher linda e independente que faz o que gosta e é feliz.
E o que tem isso de mais? Bem, e a resposta é: nada... Absolutamente nada. Ao
menos, não deveria haver nada de extraordinário na existência de uma mulher
linda, personalista e independente, mas há e vamos discutir por quê. Na
verdade, Elvira se torna muito interessante quando confrontamos sua figura com a
situação em que ela está inserida, aliás, a situação a qual de certa maneira estamos
todos inseridos.
Fallwell,
o pequeno mundinho em que Elvira vai buscar sua herança, é um tipo de cidade
fechada em torno de seus valores e habitantes. Pouca novidade acontece ali: as
pessoas são sempre as mesmas, frequentam os lugares de sempre e veem normalmente
as mesmas coisas (tipo Guarulhos). Um tédio danado. Entretanto, essa modorra não
significa uma constância só da maneira pela qual as pessoas vivem, mas de seus
próprios valores que, sem ter nada com o que confrontar-se, se mantém os mesmos.
Em outras palavras, sem o diferente, as pessoas tendem a se conservar as mesmas.
Todavia, tudo muda com o surgimento dessa morena peituda e solteira que se
sente livre para transar com quem quiser e não ligar muito para valores ou para
a manutenção de um modo de vida. Ela deseja somente aproveitar a vida e que se
dane o resto. Elvira é o completo oposto do tipo de pessoa que vive em Fallwell:
seus referenciais são outros (ela gosta de cinema B, enquanto os habitantes só assistem
filmes de censura livre), sua origem é singular (ela é órfã, já os outros estão
ligados a famílias tradicionais), entre outras coisas.
O
encontro entre um mundo que vive fechado em si mesmo e de uma personagem que
está totalmente aberta ao novo e não precisa de uma convenção para justificar
suas vontades e ações - podendo transar sem casar, brigar por vingança e não
para defender-se, desfrutar de cultura que vá contra ou a favor de seus valores
-, tem consequências graves tanto para um quanto para o outro. Ambos se
machucam no embate com o outro. Contudo, não se trata de uma relação de puro
antagonismo, mas de algo bem mais complexo. Não é que Elvira passe a detestar
toda a cidade e que toda a cidade passe a detestá-la. O que a morena representa
ali é o outro, o diferente, aquilo que não é eu, isto é, que diverge da
identidade arraigada cujas pessoas de Fallwell possuem. Se por anos eles
contemplaram somente aquilo que era semelhante a si, com Elvira encontram algo
radicalmente diferente disso.
O
interessante é que a personagem é tanto um objeto de adoração quanto de ódio.
Aqueles que se sentem aprisionados no eu que mantém, encontram nela uma forma
de ter contato com o outro, de se tornarem outros, de interagirem com o
diferente e assim sair da vida boboca que possuem. Porém, aqueles que estão
resignados às peles que vestem ou que já passaram do tempo em que podiam mudar
suas vidas, encontram na moça uma ameaça aos seus modos de vida. Elvira é ruim
para eles, pois o que ela traz é sedutor e desejável, despertando nessas
pessoas a vontade de se arrepender das escolhas que fizeram e viver de outra
maneira, algo que já não podem mais fazer. Com isso, os velhos, que querem se
convencer de que viver segundo suas crenças foi bom, passam a detestar Elvira e
a desejar ferrá-la. É o tal do ódio por aquilo que se ama: detesto o tipo de
pessoa que eu desejaria ser e não sou. Triste, mas bem comum. Todavia, diferentemente
deles, os jovens, que ainda tem todo um percurso para percorrer e não desejam
ser como seus pais, veem nela um símbolo da mudança que almejam. E assim se
instaura o caos que leva a trama adiante.
Moralidade
É curioso ver que a personagem é, durante boa parte do
filme, tida como um objeto pelas pessoas ao seu redor. Suas inimigas são tias
gordas que se reúnem no “Clube da moralidade” (é sério) e encontram nela uma
ameaça ao seu modo de vida, tomando-a como um objeto de ódio. Além disso, tais
mulheres são apoiadas por seus maridos hipócritas que, ao passo que desprezam Elvira
em público, sonham com a moça às escondidas, tendo nela um objeto de
desejo. A morena é tudo o que querem, mas que, por seus modos de vida
antiquados, não são capazes de ter. São casados que sonham com a traição e
defendem a monogamia (confesse: você já viu muitos assim, não é?). Mesmo os jovens encontram em Elvira algo a se almejar ou que pode levá-los a uma existência
diferente. De um modo ou de outro, ela é um instrumento de liberdade, de ódio
ou de gozo, porém nunca uma pessoa, sendo que demora um tantinho até que se deixe,
segundo esse olhar externo, de vê-la como uma coisa que ameaça seu modo de vida
e não como um ser humano. Não é de se estranhar, portanto, que quando os habitantes de
Fallwell se refiram a Elvira se valham de estereótipos clássicos como: “pessoa
de vida fácil”, “vadia”, “indecente”, etc.
Por
sinal, o filme leva esse sarcasmo ao patamar da obviedade. A certa altura, por
exemplo, as pessoas decidem condenar a moça por bruxaria, com direito à
fogueira, camponeses armados com enxadas, caras malvadas e tudo o que essa
festa católica tradicional requer. A referência, obviamente, é a inquisição, expressão
máxima da naturalização de certa visão de mundo. Os caipiras de Fallwell não só
temem o diferente, o outro, mas vão defender sua identidade - sua visão de
mundo, seu eu - dessas pessoas nem que seja as matando. A cordialidade e
aparente superioridade que demonstravam quando estavam entre si desaparece completamente
no contato com o outro. A partir disso podemos notar que o que a fogueira traz
de aterrorizante não é a morte de pessoas, pois gente morre todo o tempo de
maneiras cruéis, mas a morte de pessoas em nome de uma moralidade, de um bem, que
é algo que deveria justamente impedir a humanidade de ceder à barbárie
completa. Quando a chama de cadáver terminar de queimar e a cinza se espalha, os
inquisidores não vão se sentir culpados ou com medo de uma represália, pois assim
como o público irão para casa com a sensação de dever cumprido. Um herege a
menos. Como diria o Bush depois de um belo massacre: “O dia amanheceu mais
bonito hoje”. Com efeito, a condenação do outro por meio dessa forma extremada
se torna ainda mais terrível do que mero assassinato. O clube da moralidade (o
do filme e o da vida real) condena o mal se apropriando dele, combatendo o mal
com o mal, se tornando exatamente aquilo que abomina.
Por
isso, amigos leitores, eu conclamo todos vocês a me acompanharem no seguinte
pensamento: viva Elvira e dane-se a moral!
Devo assistir a dança do peitocóptero?
“Elvira” é uma obra que transforma todos os defeitos que possui
(como quando vemos que tamancadas são mais potentes que tiros de bazuca) em
qualidades. Sua trilha sonora é ruim, suas atuações são ruins, seus efeitos são
ruins, mas todas essas coisas funcionam maravilhosamente bem. Em nenhum momento
esperamos que qualquer detalhe fosse diferente.
Este
é um filme capaz de curar depressão, sífilis, mau-humor, esquizofrenia, chulé e
até essa sua feiura. Juro. Funcionou comigo, vai funcionar contigo também.
Assista.
Trailer:
Recomendadérrimo! Esse filme vale muito a pena, e fez parte importante do fim de minha adolescência.
ResponderExcluirAlém do que, ver Cassandra Peterson com aquele modelito e peitoral ajudou a acabar com qualquer resquício que eu tinha de infância na alma, ainda.
Grande postagem e bom gosto de vocês. Abração. 8)
Eu achei que ele ia perder muita qualidade depois que eu o visse agora já mais velho, por isso fiquei muito feliz em descobrir que o filme era bom e ainda é muito bom.
ResponderExcluir