quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Resenha: Motel hell


Depois dos ensinamentos desta semana você já se sente iniciado nos descaminhos do dogmatismo? Não? Pois então vinde a mim, pobre ovelha desgarrada, o Café com Tripas te mostrará os passos da fé. A porta é estreita, há canibais, hipócritas, policiais, homicidas, inocentes, serras elétricas e uma banda de rock bloqueando, mas faremos você atravessar. Aleluia!




Título original: Motel Hell
Lançamento: 1980 (EUA)
Duração: 102 minutos
Direção: Kevin Connor







Motel Hell
Saboroso e sustentável
  
Motel em 666 metros


            Um fazendeiro, dono de um hotel numa pequena cidade, é conhecido por fazer os melhores presuntos e carne seca da região. Mas ninguém imagina que ele utiliza de carne humana para produzir suas iguarias.

Os caminhos do senhor são misteriosos

            Vincent é o típico fazendeiro estadunidense do interior que estamos acostumados a ver nos filmes americanos: usa macacão jeans, camisa xadrez, chapéu, caminhonete e, principalmente, é um conservador e religioso.
O filme começa com Vincent indo caçar, porém, não veados ou pássaros, mas pessoas. Durante a noite ele coloca “armadilhas” na estrada, de modo a causar acidentes e assim possa pegar suas vitimas. Porém, após uma moto cair em sua armadilha, deixando uma garota e um homem feridos, o fazendeiro leva a moça pra casa, pois vê nela uma vontade de Deus; alguém que não deveria cair em sua arapuca e que não merece morrer. Após se recuperar e se ver sem ter pra onde ir, a garota começa a viver no hotel junto com ele e Ida (uma mulher estranha que não sabemos se é filha, irmã, empregada ou o quê do fazendeiro), pois vê Vincent como o herói que salvou sua vida, sendo influenciada por ele e pela religião. Se ela está ali é porque Deus quis. Assim, Terry, a senhorita ingênua, começa a se acostumar com a vida do campo e desfrutar de toda a tranquilidade, sem saber que seus anfitriões possuem uma plantação humana perto dali.

Carne é carne, e o homem precisa comer!


            “Motel Hell”, de certa maneira, retoma a mesma discussão que já tivemos em “Cannibal Holocaust” e “A noite dos coelhos”: por que comer certos animais é certo enquanto outros é algo extremamente errado? Entretanto, “Motel” vai um pouco mais longe - porque não comer os próprios humanos?

- Mas Café, já comi varias garotas e nunca vi problema nenhum...

            Não nesse sentido, caro leitor tranzão. No filme, Vincent tem uma plantação humana. Se você não tem uma dessas em casa, deixe-me explicar: ele enterra as pessoas só com a cabeça para fora, corta suas cordas vocais para que não possam gritar, e alimenta-as por um tubo para que possa engorda-las. Em seguida, quando prontos, vão para o abate... E assim preparar as deliciosas carnes do Vincent. Quer um teco?
            Com isso, retomo a pergunta: se podemos comer porcos, vacas, frangos... Por que não podemos comer os próprios humanos? Afinal, muitos deles valem muito menos que alguns desses animais. De fato, o homem só come os animais que julga inferiores (e que não criam afeto consigo) ou, em outras palavras, é legal comer tudo aquilo que o homem julga desnecessário ou indiferente – cachorros, gatos e derivados não comemos porque são animais que interferem na vida humana; no entanto, comer qualquer outro é permitido (porcos, bois e, até mesmo, baratas); as pessoas vão te achar nojento, mas ninguém vai sequer se lembrar da vida da barata.  
Vincent pode ser visto facilmente dentro dessa ótica. Qualquer humano que se mostre indiferente a ele (seja algum que considere inferior ou que não tenha relação de afeto consigo) pode ser morto para um bem maior: alimentar aqueles que compartilham os mesmos valores. Por sinal, em certo momento o próprio fazendeiro diz que é uma forma de acabarem com a fome e com a superpopulação ao mesmo tempo; dois problemas que o mundo contemporâneo enfrenta. Ou seja, Vincent mata humanos por acreditar que está fazendo o bem, assim como criamos mais e mais justificativas pra comer carne, mesmo que seja algo desnecessário... Porém delicioso.

Não mato pessoas; contribuo para um mundo melhor!


            A formação conservadora e religiosa de Vincent o impede de ver as suas próprias ações; ele acredita estar fazendo o bem, mesmo quando vai contra todas as leis socialmente pré-estabelecidas. Com isso, o homenzinho se sente capaz de julgar o que é certo ou errado e assim agir conforme esse julgamento.  Quanto a isso, algo curioso de se notar é que boa parte das vitimas do fazendeiro são pessoas que geralmente são “discriminadas” pela igreja: uma banda de rock, um homem mais velho com uma garota mais nova, um casal que está em busca de outro pra swing. Entretanto, quando Vincent vê a garota não a toma (ao contrario dos outros) como comida, mas como um ser humano, passando então a cuidar dela.
            A figura do fazendeiro representa o dogmatismo religioso, no qual ele captura pessoas das quais ele não compartilha os mesmos princípios e as impede de falar e ver, ou seja, ignora qualquer informação que possa ir contra suas crenças. Em alguns casos, mesmo sabendo que está errado, ele se convence de que está agindo para um bem maior.
            Essa verdade absoluta tomada por muitos religiosos acaba sendo algo que dificulta qualquer discussão. Assim como Vincent não permite que suas vítimas falem, algumas pessoas simplesmente ignoram qualquer opinião divergente a das suas verdades absolutas, além disso, essas verdades impedem que pensem sobre suas próprias ações. Sendo assim, ficam presas em ideias pré-estabelecidas de décadas passadas que não as permitem “evoluir”. O pior de tudo é que isso não reflete apenas na vida das pessoas que compartilham dessas ideias, mas acaba impactando na vida de toda a sociedade.

- Como assim?

            Eu lhe repondo, jovem desconfiado. Quantas pessoas as quais estão no poder e que movem esse país (e o mundo) não tem visões ultrapassadas de mundo e sequer tentam compreender novas ideias?
            O fato é que grande parte da população se prende naquilo que é mais conveniente para elas e se negam a compreender uma visão diferente, por isso, diariamente vemos mais e mais noticias absurdas – gente falando que a ditadura era boa, que pessoas sem religião são criminosos, que a palavra homossexualidade deveria sequer existir no dicionário, pois só existe homem e mulher, entre outras tristes perolas desse país.
            Pois é, amiguinhos, enquanto ficarmos presos em nossas próprias ideologias sem tentar compreender outras, continuaremos na merda.

Compre seu lugar no céu


            Esses dogmas são frequentemente utilizados por muitos “líderes religiosos” como uma forma de conseguir aquilo que desejam: dinheiro na maioria das vezes. A certa altura do filme aparece um pastor na TV falando: “Se houver ai alguém aí com US$ 1 mil, eu sei que tem alguém aí. O senhor escolhe doadores. Não precisa fazer a decisão. O senhor já sabe quem quer dar. E há gente agora mesmo que quer dar.”
Ou seja, não pense, apenas contribua com seu dinheiro.
Com pessoas alienadas e com verdades absolutas em suas mentes é muito fácil de manipulá-las, pois elas acreditam em algo que dificilmente será mudado, então se ela aprendeu e aceita que Deus gosta de doadores, por mais que a verdade esteja em sua frente, ela sempre irá se convencer de que aquilo que ela acredita é verdade, e nada irá mudar sua concepção.
A grande verdade é que grande parte dos lideres que são tratados como mensageiros de Deus, muitas vezes, não acreditam naquilo que pregam: “faça o que falo, não faça o que faço”. Tem uma cena, aliás, que exemplifica muito bem isso, nela o policial está vendo uma revista de “mulé pelada” no carro quando, de repente, o pastor vê, da uma lição de moral no cara e confisca a revista para “queimar”... E é só o policial sair para ele dar uma bela conferida nas fotos “artísticas”.
Pondo claramente, dogmas são verdades criadas com objetivo de criar consenso comum entre pessoas para que assim seja mais fácil de tirar proveito. Não estou dizendo que as pessoas devam largar tudo que acreditam, mas serem flexíveis a todo tipo de opinião, pois existem milhões de pessoas que acreditam que suas crenças sejam uma verdade, entretanto, se só pode existir uma verdade, a maioria está errada, e você pode ser uma delas.

Eu sou a lei


            Se olharmos essa coisa toda de um modo mais amplo veremos que esse dogmatismo não se aplica apenas aos religiosos. No filme, o irmão de Vincent é um policial, não demonstra fé como seu irmão, mas sua posição de agente da lei faz com que ele sinta-se no direito de aplicar seus princípios sobre os outros, mesmo de maneira hipócrita. Em certo momento ele convida Terry para ir ao Drive-In (não esse que você está pensando) assistir a um filme, ela aceita, mas ele acaba levando-a para um lugar em que vários casais vão com seu carro para se divertirem (se é que você me entende). Aquela cena típica de filme de anos 80 no qual você vê vários carros parados em uma montanha, ou na beira de um lago, ou perto de uma floresta, enfim. Quando chegam lá, o policial utiliza de sua posição e bota todo mundo pra correr, para que possa ficar sozinho com a bela garota. Ele tira um par de binóculos, capta a transmissão do filme em seu rádio e passa a assistir clandestinamente ao filme que estava passando em um lugar próximo dali. Ademais, aos poucos começa a tentar algo a mais com a jovem.

            - Opa, peraí. Mas ele não deu um chega pra lá nos jovens justamente por que estavam fazendo isso?

            Pois é, justamente aí que eu queria chegar. Muitas pessoas, quando possuem uma posição social diferenciada - seja economicamente ou no papel que exerce - consideram-se acima de qualquer regra, e mesmo fazendo tudo aquilo que eles mesmos criticam, não acreditam que estão errados. Nesse contexto, podemos ver que não existem diferenças entre a figura do religioso e do policial no filme; ambos praticam atos que vão contra os seus princípios, mas encontra maneiras de justificá-los e tornando-os legais.
            Obviamente, esse dogmatismo está presente em todos nós. Claro que alguns são mais intensos que os outros. Em outra cena, o mesmo policial descobre que Terry irá se casar com Vincent e logo pensa que ele deve ter ameaçado ela ou qualquer coisa do tipo; em nenhum momento considera que Terry o queira de fato. Por sinal, quantas vezes não julgamos alguma coisa antes mesmo de tentar entendê-las? Seguindo a ideia do filme, por que sempre desconfiamos quando vemos um velho casando com uma nova? Porque sempre pensamos em diversas coisas e nunca acreditamos que está se casando por amor e não interesse?
Enfim, de certo modo, todos nós (religiosos, ateus, ricos, pobres...) carregamos algumas verdades e aplicamos em um mundo caótico, mesmo que ela não seja condizente com a situação.

Devo me hospedar nesse hotel e comer um presunto humano?


            “Motel” é um filme terrível, fotografia escura, atuações pouco convincentes (apenas a do Vincent que se destaca), trilha sonora que parece de seriados de aventura dos anos 80, entre outras coisas. Contudo o roteiro é criativo e todas as bizarrices o tornam um filme divertidíssimo. Temos uma luta de serras elétricas, plantações humanas, cenas de comédia pastelão, pessoas que parecem zumbis, gente com cabeça de porco, peitinhos, critica sutil a religião, enfim, tudo que um filme trash merece.
            É a típica obra péssima que acaba tornando-se boa. Então, sim, hospede-se nesse hotel e deguste suas iguarias, mas cuidado para não ir contra os princípios do anfitrião e virar um pedaço de presunto você mesmo.

Trailer:
            

2 comentários:

  1. Vocês devem ser telepatas. Ainda semana passada estava pensado em rever esse filme. Muito bom. 8)

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  2. hahahah, cabeças geniais pensam igualmente!

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