Depois dos ensinamentos desta semana você já se
sente iniciado nos descaminhos do dogmatismo? Não? Pois então vinde a mim,
pobre ovelha desgarrada, o Café com Tripas te
mostrará os passos da fé. A porta é estreita, há canibais, hipócritas,
policiais, homicidas, inocentes, serras elétricas e uma banda de rock
bloqueando, mas faremos você atravessar. Aleluia!
Título original: Motel
Hell
Lançamento: 1980 (EUA)
Duração: 102 minutos
Direção: Kevin Connor
Lançamento: 1980 (EUA)
Duração: 102 minutos
Direção: Kevin Connor
Motel Hell
Saboroso e sustentável
Motel em 666 metros
Os caminhos do senhor são misteriosos
Vincent
é o típico fazendeiro estadunidense do interior que estamos acostumados a ver
nos filmes americanos: usa macacão jeans, camisa xadrez, chapéu, caminhonete e,
principalmente, é um conservador e religioso.
O filme começa com Vincent indo
caçar, porém, não veados ou pássaros, mas pessoas. Durante a noite ele coloca
“armadilhas” na estrada, de modo a causar acidentes e assim possa pegar suas
vitimas. Porém, após uma moto cair em sua armadilha, deixando uma garota
e um homem feridos, o fazendeiro leva a moça pra casa, pois vê nela uma vontade
de Deus; alguém que não deveria cair em sua arapuca e que não merece morrer.
Após se recuperar e se ver sem ter pra onde ir, a garota começa a viver no
hotel junto com ele e Ida (uma mulher estranha que não sabemos se é filha,
irmã, empregada ou o quê do fazendeiro), pois vê Vincent como o herói que
salvou sua vida, sendo influenciada por ele e pela religião. Se ela está ali é
porque Deus quis. Assim, Terry, a senhorita ingênua, começa a se acostumar com
a vida do campo e desfrutar de toda a tranquilidade, sem saber que seus
anfitriões possuem uma plantação humana perto dali.
Carne é carne, e o homem precisa
comer!
“Motel
Hell”, de certa maneira, retoma a mesma discussão que já tivemos em “Cannibal Holocaust”
e “A noite dos coelhos”:
por que comer certos animais é certo enquanto outros é algo extremamente
errado? Entretanto, “Motel” vai um pouco mais longe - porque não comer os
próprios humanos?
- Mas Café, já
comi varias garotas e nunca vi problema nenhum...
Não
nesse sentido, caro leitor tranzão. No filme, Vincent tem uma plantação humana.
Se você não tem uma dessas em casa, deixe-me explicar: ele enterra as pessoas
só com a cabeça para fora, corta suas cordas vocais para que não possam gritar,
e alimenta-as por um tubo para que possa engorda-las. Em seguida, quando
prontos, vão para o abate... E assim preparar as deliciosas carnes do Vincent.
Quer um teco?
Com
isso, retomo a pergunta: se podemos comer porcos, vacas, frangos... Por que não
podemos comer os próprios humanos? Afinal, muitos deles valem muito menos que
alguns desses animais. De fato, o homem só come os animais que julga inferiores
(e que não criam afeto consigo) ou, em outras palavras, é legal comer tudo
aquilo que o homem julga desnecessário ou indiferente – cachorros, gatos e
derivados não comemos porque são animais que interferem na vida humana; no
entanto, comer qualquer outro é permitido (porcos, bois e, até mesmo, baratas);
as pessoas vão te achar nojento, mas ninguém vai sequer se lembrar da vida da
barata.
Vincent pode ser visto facilmente
dentro dessa ótica. Qualquer humano que se mostre indiferente a ele (seja algum
que considere inferior ou que não tenha relação de afeto consigo) pode ser
morto para um bem maior: alimentar aqueles que compartilham os mesmos valores.
Por sinal, em certo momento o próprio fazendeiro diz que é uma forma de
acabarem com a fome e com a superpopulação ao mesmo tempo; dois problemas que o
mundo contemporâneo enfrenta. Ou seja, Vincent mata humanos por acreditar que
está fazendo o bem, assim como criamos mais e mais justificativas pra comer
carne, mesmo que seja algo desnecessário... Porém delicioso.
Não mato pessoas; contribuo para um
mundo melhor!
A
formação conservadora e religiosa de Vincent o impede de ver as suas próprias
ações; ele acredita estar fazendo o bem, mesmo quando vai contra todas as leis
socialmente pré-estabelecidas. Com isso, o homenzinho se sente capaz de julgar
o que é certo ou errado e assim agir conforme esse julgamento. Quanto
a isso, algo curioso de se notar é que boa parte das vitimas do fazendeiro são
pessoas que geralmente são “discriminadas” pela igreja: uma banda de rock, um
homem mais velho com uma garota mais nova, um casal que está em busca de outro
pra swing. Entretanto, quando Vincent vê a garota não a toma (ao contrario dos
outros) como comida, mas como um ser humano, passando então a cuidar dela.
A
figura do fazendeiro representa o dogmatismo religioso, no qual ele captura
pessoas das quais ele não compartilha os mesmos princípios e as impede de falar
e ver, ou seja, ignora qualquer informação que possa ir contra suas crenças. Em
alguns casos, mesmo sabendo que está errado, ele se convence de que está agindo
para um bem maior.
Essa
verdade absoluta tomada por muitos religiosos acaba sendo algo que dificulta
qualquer discussão. Assim como Vincent não permite que suas vítimas falem,
algumas pessoas simplesmente ignoram qualquer opinião divergente a das suas
verdades absolutas, além disso, essas verdades impedem que pensem sobre suas
próprias ações. Sendo assim, ficam presas em ideias pré-estabelecidas de
décadas passadas que não as permitem “evoluir”. O pior de tudo é que isso não
reflete apenas na vida das pessoas que compartilham dessas ideias, mas acaba
impactando na vida de toda a sociedade.
- Como assim?
Eu
lhe repondo, jovem desconfiado. Quantas pessoas as quais estão no poder e que
movem esse país (e o mundo) não tem visões ultrapassadas de mundo e sequer
tentam compreender novas ideias?
O
fato é que grande parte da população se prende naquilo que é mais conveniente
para elas e se negam a compreender uma visão diferente, por isso, diariamente
vemos mais e mais noticias absurdas – gente falando que a ditadura era boa, que
pessoas sem religião são criminosos, que a palavra homossexualidade deveria
sequer existir no dicionário, pois só existe homem e mulher, entre outras
tristes perolas desse país.
Pois
é, amiguinhos, enquanto ficarmos presos em nossas próprias ideologias sem
tentar compreender outras, continuaremos na merda.
Compre seu lugar no céu
Ou seja, não pense, apenas contribua
com seu dinheiro.
Com pessoas alienadas e com verdades
absolutas em suas mentes é muito fácil de manipulá-las, pois elas acreditam em
algo que dificilmente será mudado, então se ela aprendeu e aceita que Deus gosta
de doadores, por mais que a verdade esteja em sua frente, ela sempre irá se convencer
de que aquilo que ela acredita é verdade, e nada irá mudar sua concepção.
A grande verdade é que grande parte
dos lideres que são tratados como mensageiros de Deus, muitas vezes, não
acreditam naquilo que pregam: “faça o que falo, não faça o que faço”. Tem uma
cena, aliás, que exemplifica muito bem isso, nela o policial está vendo uma
revista de “mulé pelada” no carro quando, de repente, o pastor vê, da uma lição
de moral no cara e confisca a revista para “queimar”... E é só o policial sair
para ele dar uma bela conferida nas fotos “artísticas”.
Pondo claramente, dogmas são verdades
criadas com objetivo de criar consenso comum entre pessoas para que assim seja
mais fácil de tirar proveito. Não estou dizendo que as pessoas devam largar
tudo que acreditam, mas serem flexíveis a todo tipo de opinião, pois existem
milhões de pessoas que acreditam que suas crenças sejam uma verdade,
entretanto, se só pode existir uma verdade, a maioria está errada, e você pode
ser uma delas.
Eu sou a lei
Se
olharmos essa coisa toda de um modo mais amplo veremos que esse dogmatismo não
se aplica apenas aos religiosos. No filme, o irmão de Vincent é um policial,
não demonstra fé como seu irmão, mas sua posição de agente da lei faz com que
ele sinta-se no direito de aplicar seus princípios sobre os outros, mesmo de
maneira hipócrita. Em certo momento ele convida Terry para ir ao Drive-In (não
esse que você está pensando) assistir a um filme, ela aceita, mas ele acaba
levando-a para um lugar em que vários casais vão com seu carro para se
divertirem (se é que você me entende). Aquela cena típica de filme de anos 80
no qual você vê vários carros parados em uma montanha, ou na beira de um lago,
ou perto de uma floresta, enfim. Quando chegam lá, o policial utiliza de sua posição
e bota todo mundo pra correr, para que possa ficar sozinho com a bela garota.
Ele tira um par de binóculos, capta a transmissão do filme em seu rádio e passa
a assistir clandestinamente ao filme que estava passando em um lugar próximo
dali. Ademais, aos poucos começa a tentar algo a mais com a jovem.
-
Opa, peraí. Mas ele não deu um chega pra lá nos jovens justamente por que
estavam fazendo isso?
Pois
é, justamente aí que eu queria chegar. Muitas pessoas, quando possuem uma posição
social diferenciada - seja economicamente ou no papel que exerce -
consideram-se acima de qualquer regra, e mesmo fazendo tudo aquilo que eles
mesmos criticam, não acreditam que estão errados. Nesse contexto, podemos ver
que não existem diferenças entre a figura do religioso e do policial no filme;
ambos praticam atos que vão contra os seus princípios, mas encontra maneiras de
justificá-los e tornando-os legais.
Obviamente,
esse dogmatismo está presente em todos nós. Claro que alguns são mais intensos
que os outros. Em outra cena, o mesmo policial descobre que Terry irá se casar
com Vincent e logo pensa que ele deve ter ameaçado ela ou qualquer coisa do
tipo; em nenhum momento considera que Terry o queira de fato. Por sinal,
quantas vezes não julgamos alguma coisa antes mesmo de tentar entendê-las?
Seguindo a ideia do filme, por que sempre desconfiamos quando vemos um velho
casando com uma nova? Porque sempre pensamos em diversas coisas e nunca
acreditamos que está se casando por amor e não interesse?
Enfim, de certo modo, todos nós
(religiosos, ateus, ricos, pobres...) carregamos algumas verdades e aplicamos
em um mundo caótico, mesmo que ela não seja condizente com a situação.
Devo me hospedar nesse hotel e comer
um presunto humano?
É
a típica obra péssima que acaba tornando-se boa. Então,
sim, hospede-se nesse hotel e deguste suas iguarias, mas cuidado para não ir
contra os princípios do anfitrião e virar um pedaço de presunto você mesmo.
Trailer:
Vocês devem ser telepatas. Ainda semana passada estava pensado em rever esse filme. Muito bom. 8)
ResponderExcluirhahahah, cabeças geniais pensam igualmente!
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