Acho
que como a maioria dos leitores daqui, “Street fighter” não foi para mim apenas
um jogo passageiro, mas parte importante de minha infância. Ele tinha
personagens carismáticos, golpes legais, aquela aura oriental das artes
marciais, hadouken, um monstro brasileiro e tudo o mais que por tanto tempo nos
entreteve. Consequentemente, nós fãs esperávamos que um filme dessa franquia
fosse memorável, nos fazendo gostar ainda mais de nossos personagens favoritos.
No entanto, como todos sabemos, não foi bem assim. “A batalha final”, embora
seja historicamente um sucesso de bilheteria, é um fracasso enquanto adaptação.
Ok. Até aí tudo bem - várias adaptações de jogos foram ruins. Contudo, nesse
caso particular se trata de algo muito pior: o filme faz uma apologia escancarada
da guerra. Não se lembrava disso? Pois continue lendo...
Título original: Street fighter
Lançamento: 1994 (EUA)
Duração: 102 minutos
Direção: Steven E. de Souza
Street fighter A batalha
final
Guerra é paz
“Pois o homem é o
exercício que faz
Eu sei... Sei que o mais puro gosto do mel
É apenas defeito do fel
E que a guerra é produto da paz”
Eu sei... Sei que o mais puro gosto do mel
É apenas defeito do fel
E que a guerra é produto da paz”
(Eu sou egoísta, Raul
Seixas)
“A batalha final” envelheceu muito e
isso nos ajuda a perceber melhor suas origens ideológicas. Se você é do partido
que acha que apontar ideologias nos filmes é coisa de esquerdistas malucos e
intelectuais ociosos, repense isso enquanto assiste “Street fighter”, pois se
até um burro feito eu é capaz de perceber a propaganda gritante, é porque essa
coisa existe e nem sempre faz questão de se esconder.
Ignorado esse aspecto, o filme é
engraçado e profundamente... Brega, pois não há uma palavra melhor para
descrever os diálogos pavorosos de Guile, o Bison megalomaníaco e raquítico
interpretado por um Raul Julia que, aliás, estava no bico do corvo (ele
morreria no mesmo ano da estreia), entre muitas outras coisas que recheiam esse
bolo delicioso. Mesmo hoje, como entretenimento, a obra é ótima, seja para uma
criança que acompanha as artes marciais ou para um adulto que ri dessa
palhaçada toda. Para os dois eu o recomendo, porém, não sem reservas.
Guile, um militar americano (o diretor é
americano, a grana é americana, então o herói tem que ser americano), está
caçando Bison, um ditador poderoso que quer dominar o mundo mesmo sabendo que Hitler,
Napoleão e o rato Cérebro já tinham tentado antes dele. Ocorrerá então uma dura
batalha que todo mundo sabe o final. E sim, é tão clichê quanto parece.
Cinco curiosidades inúteis
1ª
- O diretor, Steven E. de Souza, começou sua carreira trabalhando com séries e chegou
a dirigir um episódio do clássico “Contos da cripta”, o que explica seu talento
para fazer coisas horríveis.
2ª - Originalmente Ryu
seria o protagonista do filme, mas...
3ª - O teor retardado
do filme tem muita relação com a faixa etária do público alvo, pois caso
houvesse muita violência “A batalha final” teria que ser restringida a idades
maiores, atrapalhando na bilheteria. O sucesso do filme - assistido por gente
de todo tipo - mostra que isso foi um erro: retardamento não tem idade.
4ª - Para fingir um
idioma próprio de Shadaloo, algumas falas são ditas em esperanto.
Vi komprenas?
5ª - A Capcom
solicitou a ONU a autorização para utilizar seu nome na trama, o que foi
negado. Por isso, ao invés de Organização das Nações Unidas, temos no filme as
Nações Aliadas, o que, convenhamos, dá na mesma: as duas são “de mentirinha”.
Guerra justa
“Existe alguém
Esperando por você
Que vai comprar
A sua juventude
E convencê-lo a vencer...”
Esperando por você
Que vai comprar
A sua juventude
E convencê-lo a vencer...”
(A canção do senhor da guerra, Legião urbana)
Walter Benjamin, um
importantíssimo filósofo e teórico da história do século vinte, conta-nos em
seu ensaio “O narrador” que a partir do surgimento da fotografia e de seu uso
ilustrativo em jornais, a maneira pela qual as pessoas passaram a receber
notícias da guerra se modificou. O motivo é interessantíssimo: quando o
conflito não é mais pintado num retrato como obra da criatividade do artista,
conforme ele deixa de ser fruto do engenho particular e muda para uma forma que
se pretende real, as pessoas param de idealiza-lo. Em outros termos, quando se passa
a estampar - ao invés da ilustração - uma foto “real” da guerra, os leitores veem
o que exatamente está envolvido num conflito desse gênero e, principalmente,
que a realidade não permite o embelezamento da ficção. Diante de fotos de
crianças em pedaços, aqueles discursos pomposos sobre guerra justa soam como
baboseira.
Tendo isso em mente, é fácil perceber que
a guerra retratada em “A batalha final” é aquela dos livros de história mais
safados, nos quais os inimigos estão muito bem definidos e o bem vence o mal no
caminho da liberdade. Por sinal, nele há toda uma aura da segunda guerra
mundial que não está ali por acaso. Apesar disso, ao se apoiar num discurso tão
raso, “A batalha final” revela suas próprias contradições que depõem contra o
que pretende defender. Consequentemente, é possível critica-lo com base numa
investigação dos próprios argumentos usados na obra. Em alguma medida, é isso
que tentarei realizar aqui.
Let’s rock, baby!
Guerra é paz
As questões de “A batalha final” se
tornam mais interessantes conforme olhadas a partir do contraste entre o
protagonista, Guile, e seu antagonista, Bison. Se adotarmos o argumento do
filme a diferença entre ambos será óbvia: Guile é adorado por seus subalternos,
representa a liberdade contra a opressão e deseja resolver tudo de modo
honrado; já Bison compra seus aliados, representa a tirania e a coação e não se
importa de usar quaisquer métodos para vencer. Caricatural e maniqueísta, como você
pode ver. Porém, não acatemos o que o filme nos sugere, escolhamos uma análise
mais crítica.
Comecemos pelo vilão. Bison é um tipo de
ditador que tomou o poder político do país (Shadaloo) por meio da força. A
partir daí erigiu para si uma grande estrutura de força que faz a manutenção
desse poder: ele possui um exército, um plano para reformular todo o país de
maneira conveniente, um modo de chantagear outras nações, cientistas
desenvolvendo armas para si, enfim, o futuro parece promissor para esse
prodigioso genocida. Um detalhe, porém, escapa a caracterização de Bison como vilão
e o faz um personagem mais interessante que apenas um megalomaníaco malvado; é o
seguinte: ele quer pacificar o mundo. O quê? Isso mesmo, leitor, ele quer
pacificar o mundo, isto é, quer por meio de suas ações provocar a paz mundial. O
planejamento é de fácil compreensão: primeiro dominará o mundo pela guerra,
depois forçará a paz entre os povos, por
fim, quem se opuser a ele será morto, destarte, ninguém mais se levantará
contra ele e teremos a paz.
Rememorando o que bem disse George
Orwell, guerra é paz.
Por isso, não é por acaso que o insulto o
qual Bison considera inaceitável receber é o de louco. Por que seria louco,
afinal? Ele não tem um objetivo nobre e está pondo em prática uma maneira de
atingi-lo? O discurso de Bison é coerente (ou sedutor) em algum grau, mesmo que
suas ações nos façam questioná-lo. Trata-se da defesa do uso de qualquer meio
para atingir um fim. Ele pacificará o mundo embora “quebrando alguns ovos”,
causando um probleminha aqui e ali os quais são plenamente justificáveis graças
ao fim que se busca atingir. Podemos acusá-lo de cometer vilanias, mas não de
ter más intenções.
Do lado oposto, Van Damme, ops, Guile é o
herói, o homem corajoso; aquele que vencerá o inimigo e... Restaurará a ordem. Mas
qual ordem? A mesma que produz desigualdade e tragédias no mundo e incutiu num
sujeito chamado Bison o desejo de produzir a paz (tá sentindo um cheiro?).
Apesar dessa contradição, o herói jamais questiona sua condição e dever; ele é
o soldado perfeito na execução de suas tarefas, que se arrisca sem medo e cujas
ações são exemplares. Quando observado mais de perto, entretanto, notamos que
isso não é tão rígido assim - certa feita Guile admite que está a lutar não por
algum sentimento nobre, mas pelo desejo de vingança. Dizendo de outro modo,
enquanto o vilão tem um objetivo maior que orienta suas ações, o herói é movido
simplesmente por vingança (você não tá sentindo? Um odor esquisito...). A paz de Bison é motivo de guerra para
Guile e a paz de Guile é motivo de guerra para Bison. Ambos são defensores
igualmente da guerra e da paz, só que discordantes quanto ao significado dessas
situações.
Olhando assim de perto a diferença entre
eles diminui, não? Principalmente quando vemos que a consequência prática desse
desacordo é um número grande de pessoas que morre defendendo um ou outro lado
da disputa sem sequer saber que, seja qual for o resultado da batalha final,
ele nos levará a um mundo cuja paz ou guerra será motivo para novas tragédias.
Reconheceu o cheiro? É de hipocrisia.
Apologias!
“E o fascismo é fascinante deixa a gente
ignorante e fascinada.
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada.
Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada.”
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada.
Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada.”
(Toda forma de poder, Engenheiros do Hawaii)
Partindo do que já afirmei, tanto o lado
da aliança quando aquele da Shadaloo defendem tanto a guerra quanto a paz.
Consequentemente, o filme promove todo o tempo o conflito como uma posição
defensável a fim de obtermos a pacificação. O contraditório é que, embora o
protagonista represente esse discurso, o vilão também o faz, o que acaba
servindo para mostrar o quão falho é esse discurso.
Seja como for, somos atingidos
regularmente por algum tipo de apologia da belicosidade, vindo de ambos os
lados da disputa.
De um lado, Bison promove o uso da
tecnologia para atingir seus objetivos e encara isso como um avanço humano rumo
a ele. Pouco importa que haja um preço a se pagar, pois não será ele a saldar
essa dívida. Com isso, o ditador não se importa com qualquer moral, ou que o
uso da técnica possa fazer pessoas sofrerem; a regra é: se convier a pacificação,
à guerra, então está justificado. A propósito, nesse contexto é que surge o
personagem de Blanka, uma fracassada tentativa de soldado geneticamente
alterado, que deveria ser uma arma biológica do ditador conta as Nações
Aliadas. Que isso ultrapassa umas boas dúzias de limites éticos, todos sabemos,
porém tais problemas são invisíveis para Bison; personagem eticamente cego. Para
ele o que importa é vencer; é irrelevante se tivermos que usar a ciência para
produzir armas que façam pessoas sofrerem, que as deforme irreversivelmente.
Blanka, gás mostarda, Iroshima, Nagazaki, que diferença faz?
Do lado contrário, Guile diz ao cientista
o qual criou Blanka que ele não teve culpa, já que não teve como impedir a
transformação de Blanka no monstro que veio a ser, ao que o homem responde: “Quando
homens bons não fazem nada, já é mal suficiente.”. Trata-se, pois, de uma
crítica à inação, a passividade. Aquele que vê o mal e não se coloca contra ele
por meio de ações, acaba contribuindo tanto quanto aquele que o pratica. Num
filme cuja história se dá numa situação de guerra, todavia, essa mensagem ganha
tons muito particulares, acabando por se tornar uma apologia do engajamento não
contra a guerra, que é um meio para a paz e, portanto, justa, mas contra aquilo
que está identificado como um mal inegável, isto é, Bison e a Shadaloo, um dos
lados do conflito. Vá a guerra combater o mal. Inclusive, nas últimas cenas,
a coisa se torna tão desavergonhada que Guile pergunta a Ken e Ryu: “Já
pensaram em se alistar?”.
E você, leitor, já pensou em se alistar?
Devo apoiar meu líder numa
invasão estrangeira?
Não,
definitivamente não. Porém deve assistir “Street fighter a batalha final” se
puder. Eis os motivos:
Primeiramente, porque esta é mais uma resenha
que ganha o carimbo: “impossível abranger todas as questões que o filme
levanta”, melhor dizendo, a obra é bem maior do que essa redução ao conceito de
guerra a qual esbocei aqui. Segundamente, porque, conquanto tenha todo esse
discurso tenebroso, ele é ótimo como entretenimento e, mais que isso, como
objeto de análise. Finalmente, porque ver Ken e Ryu como traficantes de armas,
Van Damme com cabelo barbaramente tingido, Blanka parecendo um Hulk aidético e aquele
monte de efeitos especiais que não conseguem disfarçar a aura cafona do filme,
é um tipo de prazer o qual você nunca terá de outra forma. Aproveite a chance e
press start.
Trailer:
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