Então você leu a primeira parte desta série e já está se achando a pessoa mais
inteligente do bairro?
Não, não, jovem padawan, guarde esse
orgulho para mais tarde porque o Café ainda tem muitas obscuridades para
te apresentar.
Vamos a elas.
Rumo ao ceticismo - Oswaldo
Porchat
Apontar esse livro aqui é, na
verdade, uma trapaça. “Rumo ao ceticismo” não é por si mesmo nem polêmico, nem
desconhecido. Explico: antes de tudo, ele não é polêmico, pois
reúne vários artigos de Porchat que já tinham sido publicados em revistas
especializadas e debatidos exaustivamente antes do surgimento dessa obra. O
livro, portanto, é uma sistematização de artigos controversos e não controverso
por si mesmo. Por fim, ele é bastante conhecido, mas só no meio acadêmico, sobretudo
naquele ligado a filosofia. Colocando claramente: se você não for do grupinho
que lê artigos de filosofia em revistas especializadas ou acadêmico da área de
humanas, provavelmente não saberá por que tanta discussão, mesmo que já tenha
escutado qualquer coisa sobre esse autor.
Partamos, pois, do início.
Oswaldo Porchat é um filósofo daqui
de São Paulo, velhinho, mas ainda vivo e razoavelmente atuante; algo que
frequentemente causa estranheza nas pessoas. Afinal, para ser filósofo não é
preciso estar morto? Mais: o Brasil tem filósofos? E se tem, eles são bons como
aqueles europeus importantes? Iremos parar nos livros de história universal um
dia?
Bem dizendo, a questão é a seguinte: quem
é esse homem e o que fez de relevante para receber esse título pomposo?
Vou tentar responder isso o explicando pela gênese.
*
Porchat foi um jovem católico muito
interessado na questão religiosa, deus, o pecado e coisas tais, vindo por conta disso
estudar filosofia tomista,
principalmente Tomás de Aquino.
Contudo, conforme adentrava na investigação intelectual e buscava maneiras
de reforçar sua crença no divino, deparava-se com dificuldades que a
prática filosófica fornece àqueles que pretendem dizer que conhecem alguma
coisa. A filosofia, esse saber estranho, ensina a duvidar de tudo o que se pretende verdadeiro, logo, na medida em que o jovem filósofo o ia experimentando, notava que as crenças
religiosas as quais dedicava grande valor eram, na verdade, pouco sólidas.
Pois bem. Que fim teve essa história você pode
descobrir lendo o artigo “Prefácio a uma filosofia”, que detalha esse processo
doloroso de modo lindamente escrito, porém, o que nos interessa agora é saber
que, por conta disso, afetaram-se gravemente os interesses de Porchat, que
migrou das Letras Clássicas (ele era professor de latim) para a Filosofia.
Melhor para nós, melhor para o Brasil.
Daí por diante, ele estudou filosofia antiga,
lógica, ceticismo, publicou uma tese clássica sobre Aristóteles e foi professor
da Universidade de São Paulo, o que não teria importância alguma se não fosse
por um artigo intitulado: “O conflito das filosofias” no qual, ao
constatar a diversidade dos discursos que se pretendem verdadeiros, mostrou uma
banana para a filosofia, dizendo que estamos presos na contradição, na
impossibilidade do consenso sobre o que é verdadeiro e como atingi-lo. Assim ó:
se um pensador afirma algo, outro afirma o seu contrário, depois, um terceiro
nega os dois anteriores e assim sucessivamente, não poderemos nunca saber quem
tem razão, ou seja, somos sempre levados a crer que jamais estaremos em acordo
ou próximos à verdade, já que não há nada o pensamento que não seja fonte de
disputa. Abordando de maneira rasteira, é essa a problemática do artigo. Ao
publica-lo o filósofo deu seu primeiro passo rumo a uma filosofia autêntica e
original.
Bom, mas é só isso? O cara escreve um
artigo e já é filósofo? Felizmente não. Depois dessa publicação, Porchat passou
a ser bastante discutido e lido, além disso, ele mesmo meditou bastante a
propósito do que escrevera, amadurecendo sua postura filosófica. O resultado disso
poderia ter sido um enrijecimento de seu pensamento, reparando os pontos fracos,
potencializando os fortes e articulando melhor o que quis dizer. Todavia, ocorreu
algo muito mais interessante que isso. Anos depois de “O conflito das filosofias” Porchat
lançou dois artigos nos quais, apesar de considerar mais ou menos os mesmos
problemas daquele anterior, mudava em muito seu ponto de vista quanto a ele,
tencionando, dessa vez, oferecer uma solução para o conflito das filosofias. Com
isso, Porchat construiu sua própria filosofia e se inseriu nessa disputa
histórica pela verdade, o que está posto principalmente nos textos: “Prefácio a
uma filosofia” e “A filosofia e a visão comum do mundo”.
Acabou? Os filósofos brasileiros sequer
são coerentes e ficam se contradizendo o tempo todo? Não, uai, não pense que estamos diante de um intelectual qualquer.
Depois de muito expor e discutir sua
filosofia da “segunda fase”, Porchat a abandonou, criticando-a, separando-se radicalmente
desse pensamento para elaborar sua proposta mais famosa e original, hoje conhecida por “neopirronismo”. Nela, resumindo grosseiramente, o filósofo abre
mão de qualquer posição sobre a realidade última do mundo, ressuscita a
doutrina dos antigos céticos no que possui de mais atual e crítico, adaptando-a
ao mundo atual. Aliás, é dessa última fase que surgem as reações mais
escandalosas quanto a ele, sejam os ataques críticos de outros filósofos
(brasileiros e estrangeiros) ou as adesões mais apaixonadas. É aqui que a coisa incendeia e se
torna mais interessante e original, uma vez que o neopirronismo não é uma
mudança gratuita ou uma revelação finalizada e dogmática, mas um resultado de
um processo intenso e longo de meditação que, por isso mesmo, também está
aberto à discussão e transformação. Não é uma incoerência intelectual, mas uma
evolução, um amadurecimento de alguém que não tem medo de se aprimorar, de
abandonar algo em si que não seja muito coerente.
Particularmente, levo “Sobre o que
aparece”, o artigo inaugurador dessa “fase” para toda minha vida. Fofo, não?
Onde encontrar?
Há duas maneiras de se ter acesso ao
que escreveu Porchat: primeiramente, comprando seus livros, seja “Vida comum e
ceticismo” ou o mais completo, “Rumo ao ceticismo”, que compreende todos os
seus artigos; além disso, vários artigos dele estão pela internet, incluindo-se
aí o todo poderoso “Sobre o que aparece”. A propósito, todos foram muitíssimo
bem escritos e se desenvolvem de forma inteligente e elegante. Mesmo um mané feito
você pode ler e entender. Juro.
Trecho:
“Cabe supor que o filósofo cético jamais se
propôs a ser cético. Provavelmente ele se pôs a filosofar como muitos outros
homens o fizeram (cf. Sexto, H.P. I, 12), preocupado com conhecer, explicar,
interpretar o Mundo de sua vida cotidiana. Ansiava pela Verdade, perseguia
Certezas, buscava Princípios, Fundamentos. Dominava-o o fascínio pelo Absoluto.
Nessa busca filosófica, eventualmente foi tentado por algumas doutrinas, deu
possivelmente sua adesão a uma ou outra dentre elas, terá acaso contribuído com
idéias originais. Mas seu amor ao rigor e ao espírito crítico, rigor e espírito
crítico que as filosofias desde sempre proclamaram cultivar, conduz ao fracasso
seu empreendimento filosófico original. Não encontra o que buscava. Não obstante
trabalhosa e demorada investigação, o Absoluto lhe é sempre inacessível. Ele é
levado a questionar e a descrer de todas as filosofias que se apresentam como
portadoras da Verdade, que pretendem dizer as coisas como elas, em si mesmas,
são. É levado a desconfiar de todo discurso
tético, de todo discurso que quer pôr e instaurar o Real. Verdades, Certezas, Fundamentos, Princípios,
ele não mais vê como seria possível encontrá-los. Não desiste, por causa disso,
da investigação filosófica, o processo de sua investigação permanece ainda
aberto. Por isso, chama-se a si mesmo de cético, isto é, de investigador ou
pesquisador, no sentido grego do termo (cf. H.P. I, 8; 1). Ele não se julga
capaz de demonstrar a falsidade ou falta de sentido das doutrinas filosóficas
que investigou. De fato, ele se reconhece incapaz de fazê-lo mas, por outro
lado, não tem por que nem como aceitá-las. E igualmente lhe parece que, se os
partidários dessas doutrinas que ele foi levado a pôr sob suspeição as aceitam,
é porque não se demoraram, como ele, a examinar as credenciais de
aceitabilidade que elas pensam poder oferecer; é porque, por mil e variadas
razões, esses filósofos se precipitaram temerariamente em seus juízos
filosóficos, não levando até as últimas consequências as exigências de uma
racionalidade crítica."
(Porchat, Ainda é preciso ser cético)
A estrutura das revoluções
científicas – Thomas S. Kuhn
Em algum lugar do século passado, Thomas
Kuhn foi um jovem estudante de física com um interesse recreativo pela
filosofia que, após participar de um curso de férias sobre a História da
ciência, ficou fascinado com o assunto e decidiu passar uns bons anos
pesquisando a respeito. Porém, o que encontrou foi uma ciência histórica
debilitada, que não fazia nada senão relatar o passado sem retirar qualquer
proveito dele. Mais: os grandes pensadores que fundamentaram a ciência em seu
início - como Aristóteles - não eram fascinantes como esperava, mas decepcionantes
em suas formulações. O grego de Estagira, por exemplo, acreditava numa física
não numérica, mas qualitativa, cujas explicações se davam por meio das
qualidades (quente, frio), além de acreditar numa cosmologia completamente
ultrapassada e imprecisa segundo nossos padrões. Tal como ele, outros
cientistas e filósofos da antiguidade levantaram hipóteses insanas para explicar
o mundo, fazendo com que a história da ciência parecesse aos olhos do jovem
Kuhn um relato bizarro de ideias incoerentes. Como eles puderam acreditar
nessas coisas? Como nossas ideias tão avançadas podem ter vindo dessas concepções
primitivas? Foram algumas das questões que passaram pela mente desse jovem
pensador. Felizmente, ele descobriu como.
“A estrutura das revoluções científicas”
é um livro que mudou profundamente a maneira pela qual a ciência era encarada.
Ainda hoje, depois de ter sido debatido à exaustão e atacado até que a última
gota de sangue escorresse de suas páginas, ele continua sendo polêmico e
interessante pelas ideias que suscita. Bom, mas que ideias são essas?
Basicamente, a grande novidade trazida por essa pesquisa é o fato de encarar a
ciência como uma construção histórica determinada ocorrente dentro de um meio
social específico. Não que alguém duvidasse disso. No entanto, Kuhn retirou
muitas inferências originais a partir desse ponto de vista. Uma
delas é a de que toda ciência é movida por um conjunto de noções comuns entre
seus cientistas - métodos, teorias partilhadas, testes - chamado paradigma. Esse
imenso corpo de consensos serviria para designar aquilo que é aceito e o que
não é aceito como científico, sejam práticas, objetos de estudo e até mesmo
campos inteiros do conhecimento (por exemplo, a astrologia, é
consensualmente uma pseudociência, mas nem sempre foi assim). Todavia, para Kuhn, os paradigmas não
são fixos. Com o tempo, um paradigma se mostraria ineficiente para explicar os
acontecimentos, de maneira que não deveria ser apenas melhorado, mas
completamente substituído por outro após um processo de revolução científica. E
assim caminharia a ciência.
Se Kuhn tem
razão, segue-se então uma consequência curiosa: não há progresso científico já
que a ciência não evolui para uma maior aproximação da verdade, mas apenas muda
de um paradigma ao outro conforme eles se mostram mais efetivos que aqueles
anteriores na resolução de problemas. Os menos eficientes são abandonados, sobrevivendo apenas os que
“funcionam melhor”, contudo, nenhum deles pretende alcançar a verdade, mas apenas
resolver mais efetivamente os problemas nos quais se debruça. Por isso, não caberia
sequer falar em verdade na ciência, pois ela seria só um campo do conhecimento
que se afirmaria pelo simples fato de que funciona, sendo mais um instrumento,
uma ferramenta, que um conhecimento para a realidade do mundo.
Para piorar
tudo e jogar toda uma tradição historiográfica na lata do lixo, Kuhn elaborou ainda
uma noção deveras controversa: a de incomensurabilidade. O conceito é simples e
elegante - vou explicá-lo recorrendo a uma historinha: narra-se que durante a
colonização da Austrália os ingleses capturaram um filhote de um animal que
jamais tinham visto. Recorreram então aos nativos para saciar sua dúvida e perguntaram
a eles, afinal, que bicho era aquele. A resposta foi o termo “canguru”, que os
colonizadores passaram a usar para nomear o bicho. No entanto, o que desconheciam
é que no idioma local “canguru” significava, na verdade, algo como: “não estou
entendendo”. Seja como for, canguru ficou canguru mesmo. O engano
foi assimilado pela cultura como o nome do animal.
Interessante,
não? Mas voltemos
à incomensurabilidade.
Ocorre o
seguinte: entre os nativos e os colonizadores não há termos comuns; ambos falam
linguagens distintas e tem culturas diferentes, estando sem meios para atingir
um ao outro pela comunicação. Para que se compreendam precisam associar os símbolos,
as palavras, os gestos do outro a aquilo que já conhecem; que faz sentido
dentro do seu próprio sistema linguístico e conceitual. Logo, não há uma medida
comum, comensurável, entre eles. Há
um espaço de incomensurabilidade entre ambos que inviabiliza a comunicação e
cria o erro.
Esse mesmo
princípio Kuhn aplica as teorias científicas: os paradigmas seriam
incomensuráveis uns em relação aos outros; eles teriam em si sua própria
inteligibilidade a qual não podemos simplesmente compreender se tentarmos nos
aproximar deles a partir de nosso próprio conhecimento, de nossa própria
linguagem, ou nos arriscaremos a transformar uma verdade em algo como é o canguru. Desse
ponto de vista, Aristóteles seria um grande físico, porém só no seu próprio
paradigma e não no nosso. Dentro do tipo de ciência que era comum naquele
período o grego era um gênio. Com isso, é possível explicar pela noção de
paradigma e incomensurabilidade tanto por que as pessoas de determinado período
pensavam de certa maneira quanto por que nós não cremos no que eles criam.
Onde
encontrar?
Kuhn abriu um monte de campos novos
de pesquisa ao levantar as hipóteses as quais levantou, entretanto, foi
bastante criticado também. Basicamente, suas publicações após “A estrutura das
revoluções científicas” foram defesas de suas teses contra os ataques que lhe
dirigiram. Apesar disso, o livro é referência para todos que desejam estudar
história ou filosofia da ciência.
Como todo livro acadêmico, esse
também não é muito barato e existe em poucas edições. A mais recente é da Perspectiva,
custando em torno de trinta e cinco reais. Ainda assim, vale o gasto. Caso não
queira pagar tudo isso, é possível encontrar em sebos algumas edições mais
antigas por valores mais acessíveis.
Trecho:
“Se
a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou
cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência
que atualmente nos domina. Mesmo os próprios cientistas tem haurido essa imagem
principalmente no estudo das realizações científicas acabadas, tal como estão
registradas nos clássicos e, mais recentemente, nos manuais que cada nova
geração utiliza para aprender seu ofício. Contudo, o objetivo de tais livros é
inevitavelmente persuasivo e pedagógico; um conceito de ciência deles haurido
terá tantas probabilidades de assemelhar-se ao empreendimento que os produziu
como a imagem de uma cultural nacional obtida através de um folheto turístico
ou um manual de línguas. Este ensaio tenta mostrar que esses livros nos tem
enganado em aspectos fundamentais. Seu objetivo é esboçar um conceito de
ciência bastante diverso que pode emergir dos registros históricos da própria
atividade de pesquisa.”
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