segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Resenha: Peles (Pieles)


               Você se considera uma pessoa normal? Eu não digo quanto aos seus gostos pessoais e a sua constante tentativa de pagar de diferentão/diferentona, já que, querendo ou não, por mais que você acredite ser um individuo único, todos acreditamos nisso. Você pode assistir os filmes iranianos e se gabar por não assistir blockbusters ou ficar buscando bandas desconhecidas da Islândia só pra falar que tem gostos diferenciados, mas no fundo todos somos seres patéticos buscando e forçando uma individualidade que não existe. Agora repetindo a pergunta, você é normal? Tipo... você tem um rabo? No lugar da boca você tem um cu (literalmente)? Você nasceu de uma cadela? Tem chifres saindo do mamilo?
               Não? Então você deve ser tão normal e sem graça quanto a gente.


Título original: Pieles
Lançamento: 2017
Duração: 77 minutos
Direção: Eduardo Casanova
               Peles é uma compilação de mini histórias sobre pessoas que possuem uma característica em comum: “deformidades”. Vivendo em um mundo cada vez mais afetado pela estética, esses personagens precisam encontrar meios de sobreviver e se relacionar com uma sociedade que nunca esteve disposta a abraçar o diferente, seja na questão física ou psicológica. Apesar de dramas e situações tão diferentes, o caminho dessas pessoas acabam se cruzando e mostrando que beleza e normalidade são uma mera questão de perspectiva. 

Deformidades?

Bom, vamos lá. Peles é um filme difícil, incômodo e delicado, então abordá-lo e resenhá-lo é um tanto quanto complicado porque envolve temas sensíveis e que podem acabar ofendendo alguém, o que não é a intenção. Nesta resenha eu vou seguir a linha do filme para escrever a resenha, ou seja, discutir os mais diversos assuntos a partir desses personagens que são discriminados das mais diversas formas e, na maioria das vezes, acabam não tendo poder sobre as suas próprias características. Além disso, durante a resenha, eu vou usar a palavra “deformidade” pra me referir a esses personagens, pois apesar dela ser uma palavra um tanto agressiva, acho que ela exprime bem a visão de fora pra dentro que o filme quer passar independentemente da característica, qualquer coisa que fuja da normalidade acaba sendo tratado como  um tipo de aberração pela pessoas ditas “normais”. Seja uma pessoa com o cu na boca ou, até mesmo, alguém que está acima do peso aceitável socialmente.
Então se você se sentir incomodado, bem, é justamente essa a intenção. Peles não é o tipo de filmes pra ficarmos indiferente, não dá pra tratar esse tipo de assunto de uma forma relevante sem dar umas porradas na cara do expectador.  Por isso, peço desculpa caso eu soe desrespeitoso em algum momento, mas não peço desculpa caso você fique incomodado com os nossos podres.


Beleza?

               Já faz um bom tempo que assisti Peles, mas eu lembro que logo no início do filme eu já estava pensando: “Eu preciso resenhar esse filme pro Café”. Acontece, entretanto, que eu sou um grande procrastinador e acabei enrolando mais do que deveria pra conversar um pouco sobre esse filme maravilindo, mas antes tarde do que nunca e agora estou eu aqui pra falar sobre ele. Afinal, já faz um tempinho que não falamos sobre filme aqui no blog e eu queria trazer um filme realmente bom e que dialogasse bem com nossa proposta. Então vamos lá.
               Assim como Magnolia, Crash, 11:14 e outros filmes, Peles segue a mesma estrutura de contar diversas história isoladamente, mas que aos poucos vão se interligando umas nas outras e abrangendo a narrativa e as discussões presentes. Aqui todas essas histórias vão compartilhar de um ponto em comum: a deformidade de um personagem. A partir disso, o filme trabalha não apenas como isso afeta a vida do protagonista sob diversos aspectos, mas também como as pessoas ditas normais lidam com aquilo que foge dos padrões. Ou seja, apesar do filme trabalhar com alguns personagens que beiram o fantástico, a obra é uma grande reflexão interna e externa sobre aquilo que é considerado normal/anormal dentro de uma sociedade.
               A primeira personagem a ser apresentada é Laura, uma garota que nasceu sem os olhos. Devido a sua condição, desde criança, ela vive em um bordel, sendo submetida a se prostituir pra não ser expulsa do único lugar que conhece. A seguir, vamos conhecer Samantha, uma adolescente que vive isolada da sociedade por ter nascido com o cu no lugar da boca e a boca no lugar do cu. Ana, uma mulher com o rosto deformado que, apesar da sua aparência não se adequar ao padrão, vive em um constante processo de autoaceitação e está envolvida em um triângulo amoroso. Vanessa é uma mulher com nanismo que está passando por diversas dificuldades sociais com sua gravidez, principalmente em seu trabalho como mascote de um programa infantil. Por fim, conhecemos Cristian, um garoto que não reconhece as próprias pernas, ele acredita que as pernas não são deles e é impelido à automutilação, tendo o desejo de arrancá-las do corpo.
               Apesar desses serem os protagonistas, existirão outros personagens importantes para história, cada um com suas singularidades e dramas.


Sofrimento de berço

O filme começa com um homem conversando com uma senhora nua, esfregando logo de cara a intenção do diretor na fuça do espectador. Essa senhora está mostrando um álbum de fotografia pra esse homem, sendo que aos poucos vai ficando claro que ela é uma cafetina oferecendo seus “produtos”. Percebendo a reticência do homem, ela vai percebendo que aquele homem tem preferênciais por crianças, apesar de tentar lutar contra isso. Mas como uma boa comerciante, ela tem aquilo que seu cliente precisa   Laura, uma menina que nasceu sem os olhos.
Sim, em menos de cinco minutos o filme já está discutindo pedofilia e, apesar de não aprofundar no tema, é bem interessante como o diretor aborda a questão, porque ele não apresenta o homem como um monstro, mas sim como alguém confuso tentando lutar contra seus ímpetos (algo parecido com o que o Lars faz no Ninfomanica - parte 2). A discussão continua até que alguém de fora acaba estimulando o personagem a fazer aquilo com a desculpa de que é melhor fazer naquele ambiente do que na sociedade, abrindo a primeira discussão do filme. Segundo a velha, algumas pessoas nasceram para sofrer - por nunca conhecerem outra realidade, elas não podem sonhar com outra vida. Resumindo bem a vida de Laura: por nascer dentro daquela realidade, sem olhos e sem informações sobre o exterior ela acabou se acostumando com o que tem e, de certo modo, acaba tendo medo de acabar com aquilo, já que não conhece outra coisa além do seu quarto. Ela se apega aquela vida por pior que seja.
Parafraseando Dinho Ouro Preto “o que você faz quando ninguém te vê fazendo ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver”, podemos abordar tanto a questão da Laura quando essa ideia de “melhor fazer aqui, mesmo que seja crime, do que na sociedade”. Laura é uma garota cega, ou seja, apesar de ter relações sexuais com  “os clientes” ela não os vê, ou melhor, os clientes não são vistos, algo que faz ela ser ainda mais atrativa para algumas pessoas, tanto para o pedófilo que quer se esconder e não quer ser visto, quanto para pessoas que possuem algum tipo de coisa da qual se envergonhe e não quer ser julgada. Então a Laura acaba servindo de escape pros crimes ou frustrações que as pessoas têm na sociedade e acabam descontando na garota. Aliás, algo semelhante a ideia do filme Albergue, mas sem as varias mortes.
Essa ideia fica ainda mais clara quando em determinado ponto do filme ela fala que todos os “clientes” querem tocá-la, mas ela não pode tocar em nenhum deles, mostrando ainda mais esse afastamento que as pessoas querem ter dela, para serem ainda menos reconhecidos e não deixarem seus vestígios, continuando invisíveis.


O luxo da deformidade

Indo pra outra personagem, mas sem fugir muito do tema, um assunto que irá permear a história é a ideia da deformidade como um “artigo de luxo” ou de diferenciação, não pra quem sofre com ela, mas pro outro. Explico melhor, no filme a personagem Ana vive em um triângulo amoroso com dois homens: seu “namorado” e seu amante, um homem que teve o rosto deformado por queimaduras (pelo menos é o que dá a entender). A partir desse triângulo, o diretor questiona os nossos valores, nossa superficialidade e a forma como tratamos o outro, porque fica claro que o seu “namorado” dá muito mais valor pra sua condição do que pra sua essência, ou seja, a deformidade de Ana é um fetiche seu. Por mais que ele esteja disposto a largar varias coisas para investir nesse relacionamento, ele parte muito mais da sua vontade de se relacionar com alguém que satisfaça suas taras que por um amor real a outra pessoa.
Já, por outro lado, o seu relacionamento com o amante, que tem condições parecidas com a sua, parece muito concreto e bilateral, porque ambos se entendem e compartilham algumas vivências; um não trata o outro como fetiche. Pelo menos isso é o que você como expectador sente em um primeiro momento, contudo, com o decorrer do filme, vamos vendo que isso acaba sendo tão injusto quanto a outra relação, afinal eles se juntam devido a características físicas semelhantes que não se enquadram em um padrão, e não por ser algo realmente natural. Tanto é assim que existe uma constante tensão entre os dois porque ela está feliz do jeito que é, aceita o seu rosto e suas características físicas, ao passo que ele é infeliz com isso; se tivesse oportunidade de ter um rosto “normal” não pensaria duas vezes. Algo que incomoda Ana, afinal, se o seu amante tem problema de aceitar a própria aparência, como ele se sente em relação a aparência dela?
É claro que essa breve pincelada que eu dei já abre diversas outras questões como necessidade de se enquadrar em uma estética, autoaceitação e tal, porém, o foco aqui é justamente a dificuldade mostrada pelo filme de uma pessoa com alguma deformidade entrar em uma relação horizontal com outra pessoa, visto que ela geralmente vai ser condicionada por alguns fatores que não estariam presentes nas relações "tradicionais".
Do inicio ao fim, o filme vai reforçar as dificuldades que essas personagens têm não apenas de se relacionar com os outros, mas, principalmente, de serem reduzidas a sua deformidade. Elas deixam de ser vistas como pessoas e passam a ser vistas pelas suas características físicas/psicológicas, e em alguns casos, perdem o direito até sobre seu próprio corpo.


Deficiência como entretenimento

            Um outro tema bem interessante tratado na obra é o uso da deficiência de uma pessoa como entretenimento. No filme há uma personagem com nanismo, e ela trabalha como mascote de um famoso programa infantil devido ao seu tamanho. Apesar de ter relativo sucesso e boas condições financeiras, a personagem está em um momento de crise, afinal ela está grávida, algo que ela sempre sonhou, mas a sua condição está começando a complicar o seu trabalho: ela começa a engordar, a roupa começa a não servir mais, já não tem disposição pra continuar, está cansada do emprego, etc. Sendo constantemente pressionada pelo seu empresário e pelo diretor do programa, ela se vê cada vez mais presa na sua condição, afinal seu nanismo impede os outros de olharem pra ela como uma mulher com desejos e vontades. Para os outros ela é apenas alguém que cabe dentro da fantasia para satisfazer as necessidades do show business.
               De certo modo, a personagem acaba não tendo posse total sobre o seu corpo, afinal, os outros estão sempre a dizer o que fazer ou não fazer e seu papel social já está traçado. Suas escolhas acabam sendo sempre reprimidas, não apenas pela indústria do entretenimento, mas pela sociedade em geral. Caso ela não tivesse nanismo será que as coisas também seriam assim? É claro que pra mulheres em geral, principalmente as que trabalham em cinema e TV, existe muita pressão em relação a corpo, o medo de perder papéis e tudo o mais, contudo, ainda assim a gravidez ainda é vista de uma forma “positiva” (claro que existem exceções), afinal que mulher nunca escutou perguntas sobre filhos, algo estigmatizado até. No entanto, enquanto as mulheres são socialmente estimuladas a terem filhos, a mulher com nanismo sofre uma constante censura, existindo uma mensagem explícita reduzindo seu papel como mulher e focando apenas na sua condição física. Sempre existe a possibilidade dela dar continuidade ao nanismo com seu filho, algo que uma sociedade padrão desestimula fortemente. O anão/anã é adorável enquanto ele está nos divertindo com sua condição, mas a partir do momento que eles buscam ter uma vida semelhante as pessoas de estatura normal, as coisas mudam.
               Por mais triste que seja, é algo que já está intrínseco no estereótipo que fazemos dessas pessoas. Se você parar pra pensar em quantas pessoas com nanismo você conhece, você provavelmente vai pensar em personagens de programas de humor que usam de sua condição para tirar risadas de pessoas “normais” como nós, não?


Cu e boca, boca e cu

            A personagem mais curiosa de todo o filme é Samantha, uma garota que nasceu o cu no lugar da boca e a boca no lugar do cu. Apesar do diretor apelar pra uma abordagem mais fantástica no arco dessa personagem, ele consegue entrar em diversas questões interessantes, muitas vezes utilizando de um humor culposo, em que você ri de uma situação vivenciada pela personagem e logo depois se sente culpado.
               Num primeiro momento, existe a questão da reclusão: por toda a vida Samantha viveu isolada morando sozinha com o pai e sem contato direto com a sociedade, e mesmo quando tem contato ela tenta disfarçar a sua deformidade. O pai justifica essa reclusão como uma forma de proteção a filha, pois o mundo é cruel e uma pessoa com essas características iria acabar sofrendo. Por outro lado, esse isolamento impede a personagem de ter contatos sociais, por mais difíceis que possam ser, restringindo sua vida ao pequeno espaço da sua casa. Então de certa forma, esse isolamento não é por ela, mas sim pra não “ofender” as pessoas normais, mantendo o seu cu na escuridão para não abalar o status quo. Um exemplo bem claro disso é quando a garota cria uma conta no instagram e ao postar a primeira selfie acaba recebendo uma mensagem “sua foto foi apagada devido ao conteúdo improprio”. Mesmo podendo gerar múltiplas interpretações, fica claro que a sua aparência é ofensiva e, independente das suas vontades e sonhos, ela precisa aceitar sua condição. Esse conflito desencadeia frustração atrás de frustração em Samantha, afinal não é possível viver em uma sociedade baseada em aparência se você não se enquadra nem nas definições básicas de beleza estipulada.
               Criando um contraponto a essa ideia de aparência, existe Cristian, um jovem que, diferentemente de Samantha, nasceu fisicamente normal, entretanto, ele rejeita o próprio corpo por acreditar que suas pernas não são suas, tendo o desejo de cortá-las fora. Além de criar esse contraponto com outros personagens, ele também serve pra mostrar que as questões são muito mais complexas que deformidades físicas. Na verdade, essas deformidades são os menores dos problemas. A grande questão que deveria ser questionada é justamente o modo como as pessoas ditas normais abraçam aqueles que de alguma forma fogem do padrão esperado, seja física ou mentalmente.
               Existem milhões de assuntos que podemos discutir e aprofundar a partir do filme, mas como você já deve ter percebido, mesmo tendo diversos personagens, cada um com uma história e traumas próprios. Todos os problemas acabam partindo não dessas pessoas, mas sim da sociedade em que elas estão inseridas. Fica claro em todas essas personagens que a única coisa que elas desejam e serem vistas e respeitadas como as outras pessoas “normais” e não serem reduzidas a sua deformidade, sem ter seu papel social definidos antes mesmo de sua existência.

              
Devo parar de julgar o amiguinho ?
              
Sim, somos todas pessoas lindas independente de nossas características físicas, e mesmo não se enquadrando em algum modelo pré estabelecido, todos somos seres humanos que merecem respeito, amor e filmes trash. Anotaram crianças?
Além de todas as discussões levantadas, uma das coisas que mais chamam a atenção do filme é a sua fotografia, gerando a todo o momento o contraste com os personagens incomuns. As cores rosa e violeta predominam do inicio ao fim, e isso é interessante porque é um dos poucos filmes que tentam tratar de assuntos tão sérios de um jeito tão bonito que chega a ser fofo, você poderia muito bem colocar a Barbie naqueles cenários que funcionaria muito bem.
Quando pensamos em filmes que tratam de pessoas com alguma deficiência ou deformidade, eles sempre acabam assumindo um tom mais pesado, que não deixa de ser uma forma de discussão também, contudo, não é porque uma pessoa possui determinada característica que ela precisa ser retratada de um jeito triste. Deste modo, a estética do filme é tão importante quanto a história que ele conta, afinal existe um diálogo, o impacto seria totalmente se o diretor partisse pro convencional e utilizasse de uma ambientação mais sóbria.
Enfim, Peles é um filme recomendado pra todo mundo que se interesse por filmes diferentes e que tratam de questões sociais relevantes. Apesar da sua estética bonita, é um filme pesado e que vai te fazer refletir sobre diversas questões referentes ao tema central. O filme está disponível no Netflix, então faça um favor pra você mesmo e vá agora assistir, e depois pode voltar aqui pra discutirmos mais sobre os traumas deixados por ele. 

Trailer

13 comentários:

  1. Acabei de cair de paraquedas no blog e já curti o texto.
    Clicando no "jóinha".

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  2. Eu amei esse filme e essa resenha. É realmente muito lindo visualmente e um tapa na cara.. não tenho nenhuma deformidade e nem me acho tão feia mas me identifiquei tanto c a samantha.. xorei...xorei..

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  3. Gente... fui chamada de louca por pessoas q eu falei pra ver o filme... porem eu tive a mesma visão e percepção que o crítico desse blog!!! E estou feliz com isso... pois apesar de toda bizarrice eu entendi a mensagem q foi passada.

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    1. Muito obrigado, Erika. Nossa proposta aqui é tentar ressaltar que essas obras, mesmo sendo bizarras, possuem significados. Fico feliz que tenha gostado do que fizemos aqui.

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  4. Gosto de filmes diferentões e mais ainda das mensagens... a cor rosa e lilá em demasia já foi a primeira coisa que me deixou incomodada, incomodo é todo o filme pq são coisas que chocam e que não queremos ver ou ser incomodados rs. O ser humano nas suas diversas facetas... no mais profundo dos seus id, egos, traumas e taras! Parabéns para o criador desse filme! Espanhois tem essa mania que costumo dizer mania Nelson Rodrigues "a vida como ela é!"...nua e crua!

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  5. Ameii seu texto, eu até tentei assistir esse filme mais a primeira cena já me chocou o fato daquela criança está em um prostíbulo,não vi a condição dela pela deficiência visual mais a vi como criança inocente e pura.

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