quinta-feira, 5 de julho de 2018

Resenha: Hex (Thomas Olde Heuvelt)


               Olhe pra trás: está vendo a bruxa? Calma, não precisa ficar assustado, ela agora também faz parte da sua vida. Você pode tentar fugir, mas ela sempre irá te encontrar. Então apenas aceite a presença dela em sua vida. Tirando alguns sustos, ela não fará nada e não irá te machucar, desde que você não a incomode. Mas lembre-se: nunca, em hipótese nenhuma, tire a costura de seus olhos e sua boca, não queremos que ela saiba quem somos e, também, não podemos escutar o que ela tem a dizer. Ignore sua presença e siga sua vida, é tudo que podemos fazer.



               “Mathers os liderou em prece, e a maior parte da comunidade se juntou a ele. Eram pessoas  que conheciam umas às outras por toda uma vida, que respeitavam umas às outras e se amavam de suas próprias maneiras peculiares, como normalmente acontecia em pequenas cidades do norte do estado. Mas Steve notou que todos haviam passado por uma mudança radical. Ele sentiu isso com ainda mais força quando eles se afastaram, pouco depois, silenciosamente e desviando os olhares. Sobre os habitantes da cidade, havia caído uma resignação que Steve achou ainda mais interessante  do que a tensão anterior.
               Eles pareciam pessoas que sabiam ter feito algo pavoroso, algo irreversível… e algo com o qual poderiam facilmente viver.”
  

Título original: Hex
Autor: Thomas Olde Heuvelt
Ano: 2016
Editora: Darkside books
Páginas: 365
               Black Springs é uma pequena cidade do interior que há mais de trezentos anos é assombrada pela bruxa Katherine. Acorrentada e com a boca e os olhos costurados, ela vaga sussurrando suas maldições pela cidade. Para acompanhar os passos da bruxa e evitar que os forasteiros descubram seus segredos, a cidade criou o HEXapp, um aplicativo de celular para que as pessoas notifiquem e acompanhem a localização da bruxa. Apesar da situação incomum e do constante clima de ameaça, as pessoas aprenderam a lidar com a presença de Katherine... mas nem todas.

É nois que voa, bruxona

            Após ser acusada de bruxaria e queimada na fogueira, Katherine Van Wyler pode ter morrido mas sua presença continua viva em Black Springs. Mesmo depois de ser queimada viva ela permanece vagando pela cidade maldizendo os seus carrascos e não há nada que os moradores possam fazer para se livrar da bruxa, pois sempre que tentam algo novo coisas sinistras acontecem: mortes, mudanças no ecossistema, eventos inexplicáveis, etc. A única coisa que os moradores locais podem fazer é aprender a conviver com os seus segredos, porque nem fugir eles podem.
               Ao longo dos anos a cidade foi se adaptando à indesejada presença de Katherine que, apesar de manter alguns padrões, pode aparecer a qualquer momento em qualquer lugar da cidade. Trezentos anos após a maldição continuar viva, já em 2012 e com os avanços tecnológicos, a cidade desenvolveu o HEXapp, um aplicativo social onde os moradores compartilham informações sobre a bruxa, postando em tempo real informações sobre sua localização e comportamento. Além disso, a HEX (organização que criou o aplicativo) junto com o conselho da cidade também monitora as câmeras e os meios de comunicação da cidade, principalmente internet, para evitar que o segredo da bruxa saia das fronteiras de Black Springs, algo que poderia trazer ainda mais problemas.
               Nesse cenário de bruxas, segredos e pessoas oprimidas pela presença de Katherine, Thomas Olde Heuvelt nos leva para Black Spring, para conhecermos melhor a vida de seus moradores e, também, descobrirmos que a cidade tem muito mais segredos enterrados.


Tem bruxa pra todo mundo

               Algo bem bacana em HEX é que, apesar de acompanharmos alguns personagens, a verdadeira protagonista de toda a história é a cidade. A cada capítulo, o autor vai alternando entre os personagens, dando diversas perspectivas diferentes sobre a mesma situação e, de certo modo, abrindo discussões diferentes em relação ao problema comum, Katherine. Apesar de sermos apresentados a um número razoável de moradores da cidade, vamos acompanhar principalmente quatro deles: Steve, Tyler, Griselda e Robert. Cada um vai ter os seus próprios arcos e um tipo de relacionamento com Black Spring e, consequentemente, com a bruxa. Mas, como disse, mesmo tendo historias bacanas isoladamente, elas realmente se destacam quando são vistas em perspectivas e formam esse macroambiente.
               Esse tipo de narrativa adotada pelo autor ajuda a dar vivacidade e credibilidade pra história, afinal cada pessoa reage diferentemente a uma mesma situação. Se temos posições diversas sobre biscoito x bolacha, imagina como lidaremos com uma bruxa em nosso cotidiano. Algumas pessoas vão apenas aceitar, outras vão querer fazer algo, algumas vão achar que é uma mensagem divina… e mesmo dentro dessas diferentes perspectivas vão tendo outras subdivisões. Nem todos que querem fazer algo em relação a bruxa vão querer seguir pelos mesmos meios. Então mesmo não sendo perfeito, afinal, isso poderia alongar bastante o livro, o autor faz um bom trabalho em construir esse  cenário e mostrar como as pessoas são diversas em todos os assuntos, mas principalmente nesses mais delicados.
               Sendo assim, se, por um lado, temos uma discussão sobre indivíduos lidando com uma bruxa em seu cotidiano, por outro, teremos pessoas diferentes tendo que lidar com opiniões diferentes da sua em uma comunidade que vive em uma situação que é complicada pra todo mundo. Então, como você já deve imaginar, a bruxa é apenas um dos elementos pra uma treta muito maior. Afinal, podemos não ter uma bruxa na nossa cidade (pelo menos não literalmente), mas acho que todo mundo sabe o quão difícil é conviver com os amiguinhos com opiniões totalmente opostas a sua.


Botando lenha na fogueira

               Como disse anteriormente, apesar da cidade ser a grande protagonista, vamos acompanhar quatro personagens, cada um com seus dilemas e cada um tendo uma relação diferente com a bruxa e com a comunidade. Vou fazer um breve panorama sobre cada um sem entrar muito na historia e não revelar mais do que deveria, mas que permitirá pontuar algumas discussões importantes.
               Tyler é um jovem estudante do ensino médio que tem como principal hobby fazer vídeos para o youtube, andando com sua câmera de um lado pro outro ele está sempre filmando seu dia a dia não apenas para atualizar seu canal e seguidores, mas também para coletar materiais para um projeto secreto que ele tem com outros jovens. Esse projeto tem como objetivo coletar informações sobre Katherine (mesmo que seja proibido registrar fotos/vídeos ou ate mesmo comentar na internet sobre a bruxa), com o objetivo de encontrar uma solução para a maldição. Postando em uma página secreta, esses jovens vão fazendo experimentos para compreender melhor os padrões e comportamentos da bruxa e quem sabe encontrar um meio para libertar a cidade.
               Steve, pai de Tyler, é um médico e professor que carrega a culpa de ter estabelecido sua família em Black Spring, condenando todos a viverem sob a maldição da bruxa. Vivendo na cidade com sua mulher e seus dois filhos, e trabalhando em Nova York, ele vive em um constante dilema moral tendo que lidar com a criação dos filhos que ele considera adequada e com as complicadas regras (e pessoas) de Black Spring.
               Griselda é uma mulher sofrida que passou por diversos abusos e traumas, principalmente por seu falecido marido, após a morte do mesmo ela assumiu o controle do açougue da cidade. Sendo tratada com um certo sentimento de pena pelo restante da comunidade e vivendo com seu filho rebelde, Griselda vive em um constante conflito sobre suas crenças e sobre sua posição/obrigação na cidade. Ela acabou encontrando um pouco de conforto na figura de Katherine, acreditando que a bruxa não deveria ser temida, mas sim tratada com respeito e compreendida.
               Por fim, temos o Robert Grim, o supervisor da HEX. Ele é o responsável pela organização que monitora a bruxa e, consequentemente, os habitantes de Black Spring para que o segredo da cidade permaneça dentro de suas fronteiras. Também membro do conselho local, ele acaba assumindo a responsabilidade de quase tudo que envolva forasteiros, como evitar que pessoas de fora comprem imóveis na cidade ou esconder a bruxa dos turistas em datas festivas e derivados. Assim como Steve simboliza a ponte entre Black Spring e o exterior, Robert funciona como a ponte entre o concelho e a população, sempre estando no meio das bagunças da cidade.
               É claro que haverá muitos outros personagens importantes, como o filho da Griselda, o prefeito e líder do conselho, o padre, etc. Mas é a partir da perspectiva desses quatro que vamos conhecendo os outros.


Burn, witch, burn
              
               Como você deve ter percebido pela breve descrição dos personagens “principais”, HEX é um livro que vai tratar de diversos assuntos interligados e que dialogam entre si a todo momento. A complexidade da cidade e dos moradores acabam se sobressaindo ao da figura principal do livro, que é a bruxa.
               Não sei se é somente eu, mas sinto uma grande influência de Stephen King na obra, desde a escrita até algumas homenagens bem claras. Ao longo da trama, vamos vendo algumas das fontes utilizadas pelo autor, entretanto, a referência mais clara está justamente na criação da trama, consistindo em utilizar de um elemento sobrenatural para discutir comportamento humano. É claro que a bruxa é importante e é claro que ela é o centro da história, mas o grande poder da história está nas pessoas comuns e não no fantástico, estando em levar o leitor a observar comportamento humano diante de uma situação adversa, algo que Stephen King faz constantemente e faz muito bem. A bruxa de certo modo é um detalhe, pois poderíamos substituir sua figura por algo mais concreto e menos irreal, e ao mesmo assim chegaríamos a um mesmo resultado: o problema são as pessoas.
               Sendo assim, com Black Spring e com a figura da bruxa, o autor consegue criar um microcosmo da sociedade para discutir, apontar e criticar, muitas das nossas ações ou posições diárias diante de um mundo cada vez mais complicado. Então, mesmo sendo classificado como terror e existindo motivos pra isso, HEX também acaba tendo diversas outras facetas, pois ao mesmo tempo em que ele nos entretêm com mortes, mistérios e situações bizarras, ele também levanta reflexões sobre assuntos diversos e relevantes.
               Com isso, ao terminar o livro chegamos a conclusão que independente de ser pequena ou grande, toda cidade tem a sua própria bruxa e cada pessoa vai lidar com ela de uma maneira diferente, independente de que bruxa seja essa (e se ela realmente for uma bruxa). Sempre existirão pessoas que vão querer simplesmente varrer pra debaixo do tapete, afinal, ela sempre esteve lá, pra que vai tentar mudar algo agora? Outras vão querer buscar mudanças, seja pela força ou por meios mais éticos. Algumas instituições, como a igreja, vão utilizar disso pra conquistar mais fieis. Outras, como o governo, pode usar como um instrumento de medo. As massas sem uma opinião formada podem acabar atraídas por discursos que levam a barbárie, etc. Ou seja, não precisamos de uma bruxa no sentido literal para vivenciarmos todos os conflitos de Black Spring, mas talvez a ficção seja importante pra refletirmos um pouco sobre a realidade.


Alguém me indica um hotelzinho em Black Spring?

               Eu arrisco dizer que HEX, enviado pra gente pela Darkside, é um dos meus livros de ficção favoritos da editora, junto com Fábrica de Vespas.
               É o tipo de obra que se sai muito bem naquilo em que se propõe. Mesmo misturando o terror com outros gêneros e discutindo questões sociais, em nenhum momento ele soa forçada ou prepotente de querer ser mais do que aquilo que é. O autor consegue equilibrar tudo e entregar uma história coesa e interessante, que ao mesmo tempo em que pode causar um pouco de medo e nojo pelo terror e pelo gore, também abre pra reflexões sem precisar quebrar a narrativa.
               Como disse anteriormente, são nítidas as influências do autor. Ao meu ver, a mais forte é a do Stephen King, mas também é possível ver sinais da literatura mais clássica do gênero. Mas mesmo sendo evidente o seu background, o autor consegue mostrar sua própria identidade misturando o clássico com o moderno. Ao mesmo tempo em que sua história tem um clima de historias clássicas sobre bruxas (cidade pequena, bruxa condenada a fogueira, uma vila conservadora, as questões morais referentes a condenação, etc), também temos esse ar moderno de aplicativos de celular e câmeras monitorando a bruxa, um personagem que faz vídeos pro youtube, etc. E isso cria um clima interessante porque acaba criando essa dualidade entre o velho e o novo, como se fosse uma homenagem contemporânea as histórias  de bruxa.
               Outro ponto positivo é a constante quebra de expectativas que o autor propõe. Pelo menos comigo, sempre que eu achava que sabia o caminho que a historia ia tomar, ela acabava tomando um outro rumo, principalmente no fim da primeira parte (se você leu, sabe do que eu estou falando). É claro que logo nas primeiras paginas já dá pra sacar que a verdadeira intenção é discutir a cidade e não a bruxa, mas a forma que ele faz isso acaba se destacando, saindo da linha óbvia que eu acreditava que iria seguir. Um outro ponto que me agradou foi deixar muito pontos sobre a bruxa em aberto, criando o ar de mistério e duvidas sobre as suas intenções por toda a trama.
               Enfim, há diversos outros assuntos que poderia abordar, mas essa resenha já esta longa o suficiente e acredito que é o suficiente pra despertar sua curiosidade. Sendo assim, acho que HEX é um livro que indico pra todo mundo que gosta de histórias de bruxas e terror em geral.
               A edição da Darkside tá bem bonita e merece e estar na sua estante, caso eu tenha me esquecido de mencionar. Então já liga pra sua agencia de viagens e reserva seu hotelzinho em Black Spring e vem curtir umas bruxaria com a gente.



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