O “terror oriental” é mais
comum do que aparenta. Obras como The ring que não só fizeram muito
sucesso no cinema e integraram o imaginário de toda uma geração como também
acabaram se tornando referências para o gênero do terror; mas ainda que o
terror oriental tenha alcançado o mundo por meio do cinema, o mesmo não se deu
tão amplamente com os mangás. Sabemos mais facilmente dos últimos filmes ruins
do gênero que de mangás consagrados como aqueles de Junji Ito, sendo que embora
os mangás de terror possuam uma diversidade ainda maior que os filmes, afinal
existem em maior quantidade e a mais tempo, eles ainda são pouco conhecidos por
nós.
Ditas essas coisas, esta resenha
do Café tenta dar uma leve mexida nesse estado de coisas e trazer
boas referências aterrorizantes.
Título
original: Ma no Kakera
Autor:
Junji
Ito
Ano:
2017
Editora: DarkSide
books
Páginas: 224
|
Faz alguns anos que conheci Junji
Ito por meio dessas traduções feitas por fãs na internet. Na época, eu o achei
um autor muito estranho, cheio de ideias incomuns que destoavam daquilo que eu
acompanhava no cinema americano (que era toda minha referência sobre terror),
tratando de meninos que bebiam óleo de cozinha, poltronas mal assombradas,
pessoas atormentadas por formas geométricas e outras coisas estranhas assim que
me cativaram rapidamente não tanto por serem bizarras, mas mais por não serem
bizarrices vazias, quer dizer, elas não estavam lá só para impressionar; o
autor tinha uma proposta, Junji Ito era um doidão que sabia muito bem o que
estava fazendo. Acabei gostando muito daquilo e passei a ler tudo o que
encontrava a seu respeito, sendo que, para a minha sorte, ele também era um
mangaká clássico e existiam muitas histórias suas para ler, inclusive em
português (como Uzumaki). Foi
daí que cresceu meu interesse pelo terror nos mangás e que acabei encontrando
outros autores do gênero como Suehiro Maruo, Hideshi Hino e, o ainda ignorado, Minetaro
Mochizuki (ATENÇÂO, EDITORAS, ESSA FOI PARA VOCÊS),
Ditas essas coisas, quero
ressaltar que foi uma bela surpresa saber da publicação de Junji Ito ano
passado porque, às vezes, gostamos de livros que pouca gente leu, bandas que
ninguém curtiu, da companhia pessoas que só nós compreendemos e toleramos, e
foi mais ou menos essa a minha relação com o Junji Ito até agora. Sinceramente,
eu não esperava que chegasse o dia em que eu pudesse acerca de seus contos com
alguém, mas eis o que o mundo dá umas voltas esquisitas de vez em quando e cá
estamos nós. Tô feliz pra caramba.
Que que tem de horrível aí?
Fragmentos do horror é uma
coleção de sete pequenos contos de Junji Ito em que, a partir de situações mais
ou menos cotidianas, os personagens tem suas vidas arrastadas para situações
bizarras e estranhas.
Ferrugem
Tem algo que é preciso dizer logo
de cara: Fragmentos do horror não é o melhor de Junji Ito. Na verdade, o
livro é uma espécie de retomada da escrita do terror, pois, como nos conta num
pequeno texto anexado à obra, o autor tinha deixado o terror de lado por um bom
tempo e dedicado a outras coisas. Esse livro foi seu retorno a esse tipo de
história e ele mesmo reconhece que está se desenferrujando, sendo que por mais
legais que sejam certas histórias, esse é um livro bacana mas não exatamente
excepcional. Contudo, não se engane com esse meu comentário, pois um Junji Ito
cheio de ferrugem ainda é muito bom, ainda é melhor que muito do que você viu
sobre terror nos últimos tempos.
Fruto da parceria do Café
com a Darkside, meu exemplar chegou aqui no QG do blogue faz uns meses e fiquei o paquerando — só por olhares —
por um bom tempo antes poder deixar meus textos da Pós de lado e enfim ler quem
eu queria. Para uma primeira edição brasileira, a edição da Darkside é
belíssima, com uma capa dura que relê o expressionismo de O grito (Edvard
Munch) e todo um trabalho interno muito bonito que não é tão comum quando se
trata de mangás aqui no Brasil, o que é possível também pelo fato de,
diferentemente de outras linhas de mangá, o livro se restringir a um único exemplar,
algo que anima o consumidor a pagar mais caro por ele.
O livro apresenta sete contos que começam com fatos corriqueiros e a partir
disso vão dando lugar ao bizarro na vida dos personagens, pessoas mais ou menos
normais. Para tanto, Junji Ito usa um traço límpido e claro, não distorcendo os
personagens para transmitir sentimentos ou coisas assim (como quando um autor
aumenta o rosto do personagem para sua expressar ou diminui o tamanho do
personagem em relação aos outros para expôr um sentimento de decepção, por
exemplo), sendo que essa objetividade e concretude das coisas acaba dando mais
força para o bizarro na obra, uma vez que até as coisas malucas aparecerem, a
realidade era bem concreta. Por sinal, quem gosta dos trabalhos de Yoshihiro
Togashi (autor de Yuyu Hakusho e Hunter X Hunter) poderá
reconhecer no traço e nas expressões faciais dos personagens uma das grandes
influências para esse autor, que faz várias referências à Junji Ito ao longo de
sua obra. Ainda que tenha tardado para chegar ao Brasil, o “senhor medo”, como
também é chamado, foi notado por muita gente importante e influenciou seus
trabalhos significativamente, sendo ótimo que tenha enfim chegado aqui.
Profundidade
Uma questão que particularmente
me inquieta não só quanto a esse livro mas quanto às demais obras desse autor é
pensar na “profundidade” daquilo que está escrito, quer dizer, na existência ou
não de uma proposta por detrás do sangue e das bizarrices que aparecem no livro
e do significado dela. De um lado, é nítido que aquilo que o autor escreve não
é vazio, não é simplesmente uma colagem de imagens violentas e estranhas que
visam nos chocar (como é boa parte de um mangá como Hellsing, por
exemplo); de outro, não é claro também que Junji Ito esteja tentando nos
convencer de alguma coisa por meio de suas histórias. Embora cada um dos sete
contos possua temática e um bom desenvolvimento, quando nos perguntamos o que
eles significam, nenhuma resposta muito clara surge.
Bem, talvez essa questão seja até
um pouco estranha ao texto do mangaka, uma questão um pouco ocidental demais, e
eu esteja esperando da obra alguma coisa bobinha como o cinema americano
frequentemente é, com começo, meio, fim e uma moral besta sendo esfregada em
minha cara, porém fico mesmo inquietado pensando nisso, pois essa questão diz
respeito a como devemos ler e compreender uma obra com outros referenciais, com
outro tipo de mensagem, como é caso desse mangá. Tenho certo receio de “ler
errado” um autor e concluir exatamente o contrário daquilo que ele pretendia
expressar. Assim, o que tenho refletido a esse respeito é que apesar de Junji
Ito não ser de modo algum vazio, afinal seus diálogos são até bem diretos
quanto às temáticas das história (o luto, o gosto por um artista em específico,
etc.), seus textos envolvem menos a defesa de morais ou coisas assim e mais
uma indução à uma experiência de medo. Dizendo de outra forma, as imagens e o
texto da obra não são como um discurso que esteja sendo pregado ao longo do
desenvolvimento da história, como se ao chegarmos ao fim da história
chegássemos também à conclusão da tese defendida nesse discurso, a bem dizer, o
que acho que o autor pretende é fazer com que passemos um pouco por essa
experiência de entrar num cotidiano banal (se é que já não estamos dentro dele)
e sejamos gradativamente tirados de lá por meio das coisas que ele apresenta.
Ao fim da obra obra não fomos convencidos de um ponto de vista, nós vivenciamos
uma experiência de medo e o que sobra é o assombro com ela.
Inclusive, uma consequência muito
legal disso é que como as histórias não estão pregando nada mas apenas nos
levando a uma experiência, elas não tem qualquer necessidade de responder coisa
alguma ou de serem concluídas de uma maneira específica que resolva todas as
questões do enredo. Se num filme de heróis e bandidos sabemos de antemão quem
vencerá e quem perderá ao fim da história, nos contos de Junji Ito qualquer
coisa pode acontecer no meio e no fim porque não há nenhuma moral sobre o valor
do heroísmo e tal. Com isso, se o começo das histórias é um tanto banal, descrevendo
algum estado de normalidade, a entrada do bizarro que arrebenta com isso pode
tanto ser suprimida no fim da história e fazer tudo voltar ao que era antes (ou
quase isso) quanto destruir completamente essa normalidade, algo que torna meio
imprevisível o desenvolvimento dos contos e abre muito espaço para a
criatividade. Gostando ou não daquilo que lerá, você provavelmente nunca viu
nada muito parecido com isso.
Devo viver o horror horrível?
Como já
disse anteriormente, Fragmentos do horror não é a melhor obra de Junji
Ito mas é ainda assim uma boa obra de terror, podendo servir muito bem de
introdução ao autor. Trata-se de uma pequena amostra do que se passa na cabeça doida
desse mangaka e das maneiras estranhas pelas quais ele põe em prática suas
ideias. Embora suas histórias possam causar um pouco de estranheza no início,
compensam bastante pela experiência que proporcionam. Particularmente, acho que
como os contos são curtos e o livro é breve, ele deveria ser relido ao menos
uma vez para que se possa pegar melhor o “jeitão” do autor e trocar a estranha
pela apreciação prazerosa. Na dúvida, adquira já a obra e a releia até gostar.
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