quinta-feira, 22 de março de 2018

Resenha: Grave (Raw)


               Querido leitor, não sei se você já passou pela vida universitária; caso tenha passado, acho que você irá concordar com a gente que a faculdade é uma fase de transformação em todos os sentidos: intelectual, social, sexual, pessoal, etc. Claro que isso depende muito de pessoa pra pessoa: algumas estão mais interessadas nas festinhas e curtição, outras querem estabelecer sua base de contatos para o futuro, ou simplesmente adquirir o máximo de conhecimento possível para crescer como pessoa e, consequentemente, profissional, isso sem contar as pessoas que acabam despertando seus desejos canibais e querem comer, literalmente, os colegas. Independente das suas prioridades, é inegável que você saiu (ou vai sair) de um jeito diferente… Se você sobreviver.



Título original: Raw
Lançamento: 2016
Duração: 99 minutos
Direção: Julia Ducournau
               Justine é uma garota que está ingressando em uma tradicional faculdade de veterinária da França, a mesma cursada por seus pais e por sua irmã, que já está próxima de se formar. Apesar de nascer em uma família de veterinários, logo nos primeiros dias na universidade Justine percebe que vai viver algo bem diferente do que imaginava: as pessoas não estão no curso pelo mesmo motivo que ela, sua irmã e veterana está mudada e a vida ali não é tão tranquila. As coisas começam a ficar ainda mais complicadas quando elá é coagida a comer um pedaço de carne durante um trote, sendo que ela foi vegetariana por toda a sua vida.

Vamos salvar ou comer os bichinhos?

            Raw chamou bastante atenção na sua estreia porque durante as primeiras exibições algumas pessoas passaram mal e desmaiaram devido à temática e ao conteúdo gráfico. Sim, ele tem cenas desagradáveis, mas não achei tanto. Deve ser pelo fato de eu já ter desgraçado minha cabeça o suficiente pra não me impressionar mais, mas independentemente disso, Raw está muito além de ser um filme sobre canibalismo com gore, existindo diversas questões que serão abordadas nele que farão o gore ser usado apenas como ferramenta. Mas falaremos disso mais adiante.
               O filme inicia com Justine e seus pais viajando de carro para chegar até à universidade em que ela estudará. Chegando lá ela logo vai perceber que está num mundo completamente diferente daquele em que ela viveu até ali. Logo na primeira noite no alojamento da faculdade os veteranos invadem seu quarto e bagunçam tudo, é obrigada a participar de algumas atividades de iniciação e mesmo na festa da faculdade ela se vê totalmente perdida, pessoas bebendo, fodendo, se drogando, usando roupas da moda, algo totalmente diferente do seu mundo. Até mesmo a sua irmã parece ser uma pessoa diferente, estando totalmente integrada àquele ambiente universitário e estranho para a jovem caloura.
               Ao longo de sua passagem ali, Justine vai perceber que seu estranhamento vai além do trote, pois mesmo dentro da sala de aula os seus colegas são bem diferentes dela, seja em relação à postura que têm ou até mesmo às questões ideológicas. Justine se sente cada vez mais perdida naquele ambiente: os trotes continuam diariamente, obrigando-a a adotar uma persona que não combina com si e tendo que lidar com as aulas e com vida longe dos pais. Tudo começa a mudar quando em um dos trotes ela é obrigada a comer um pedaço de carne crua.
               Logo após comer carne pela primeira vez na vida, Justine começa a sofrer mudanças físicas e psicológicas, começando por uma alergia no seu corpo e, logo após, passando para uma necessidade incontrolável de comer carne, que vai ficando cada vez mais intensa e levando a garota ao limite.


Hummm… que dedinho gostoso

               Resumindo, Raw é um filme sobre mudanças e descobertas. Claro que é possível ver como um filme de terror em que um garota se torna canibal, mas todos os detalhes do filme querem mostrar que existe muito além da superfície.
               Numa das primeiras cenas do filme vemos a família de Justine parando pra comer num restaurante de estrada no caminho para a faculdade, sendo que no meio de uma mordida ela acaba encontrando um pedaço de carne no meio da sua comida, cuspindo-a imediatamente, fazendo com que sua mãe levanta para reclamar (afinal eles são vegetarianos e o restaurante precisa ter mais respeito e atenção com essas coisas). Alguns minutos depois, temos uma outra cena, agora no restaurante da faculdade, em que ela está sentada com alguns colegas de sala e começa uma discussão sobre direito dos animais. Para Justine o estupro de um animal é tão grave quanto o de uma pessoa, o que acaba gerando um clima desconfortável na mesa, afinal o seu nível de engajamento com a questão dos animais está muito acima de todos os outros. Elá não consegue entender como futuros veterinários conseguem comer carne ou pensar em animais como seres inferiores.
               É nesses detalhes que parecem despretensiosos e sem muita importância que vamos entendendo o tipo de educação que ela teve e percebendo a transformação da personagem. A questão da carne sempre parece ser algo sério para a sua família, então, antes da sua primeira experiencia comendo no trote, as cenas com o alimento envolvem uma certa repulsa, uma espécie de ódio, afinal a vida toda ela foi ensinada que comer carne é algo errado. Além disso, fica bem claro que a diretora quer causar um estranhamento com a personagem. Na primeira parte do filme Justine é sempre mostrada de um jeito meio animalesco, ela está sempre quieta, curvada e retraída como um animal indefeso, como se ela fosse uma presa jogada no meio de seus predadores, algo que irá mudar no decorrer do filme.
               O ponto de partida para a mudança de comportamento de Justine é justamente comer  carne crua no trote. Como parte do trote, todos os calouros são obrigados a comer algo diferente e a protagonista ganha a tarefa de comer uma pedaço de rim de coelho, se não me engano, o que gera certa resistência, afinal ela foi vegetariana por toda a vida e não pode simplesmente mudar isso por causa de uma brincadeira, entretanto, a pressão dos outros alunos, da sua própria irmã e também a necessidade de pertencer ao grupo e o medo da rejeição acaba fazendo com que ela coma e rompa, mesmo contra a sua vontade, essa barreira que ela sempre teve com carne.
               Após comer, Justine acredita que o trote já está no fim e está quite com os veteranos, que ninguém poderá reclamar dela ser chata ou anti-social, afinal ela participou de tudo, mesmo contra a sua vontade. Mas é ai que os verdadeiros problemas começam.


Comendo coelhos e humanos…

A primeira experiência carnívora de Justine irá desencadear em diversos outros eventos, iniciando um processo de transformação da protagonista. Logo no dia seguinte uma estranha alergia faz com que boa parte de seu corpo fique avermelhado, com uma aparência nem um  pouco agradável, causando irritação e escamação da pele. Além disso, ela começa a sentir uma estranha atração por carne que, por mais que tente reprimir, foge do seu controle.
Inclusive, um dos aspectos mais legais do filme é ver a transformação da protagonista ao longo da historia. Como disse anteriormente, na primeira parte do filme Justine está sempre encolhida, mas aos poucos isso vai mudando. Logo após a experiencia com carne vemos ela tendo problema em aceitar as mudanças tanto em seu corpo quanto em seus instintos, de modo que ao ver que é impossível controlar sua vontade por carne, ela tenta esconder dos outros seu novo hábito, afinal ela sempre se mostrou como vegetariana e defensora do direito dos animais. A partir disso, Justine adquire um comportamento furtivo: ela tenta roubar um hambúrguer, pede para seu amigo ir pra outra cidade com ela provar carne e coisas assim, afinal ela não quer que as outras pessoas vejam que ela está traindo seus princípios.
Apesar de ainda estar insegura com sua situação, já é possível perceber que ela está mais viva e menos retraída. As coisas que antes causavam desconforto já não causam mais: ela passa a olhar pra si mesma e para os outros de um jeito diferente, a faculdade começa a ter outros significados, etc. Até mesmo a sua relação com a irmã  passa por isso; se antes da faculdade ela olhava com admiração para irmã mais velha, com o passar do tempo essa relação vai mudando: o carinho ainda existe, obviamente, mas começa a existir também certa rivalidade e uma decepção, na medida em que a protagonista começa a perceber que a visão que ela tinha da irmã era um tanto quanto equivocada.
Essa transição passa a ficar cada vez mais intensa, tanto quando pensamos na aparente questão do canibalismo quanto nas metáforas que aquilo significam. Se por uma lado temos uma Justine que assalta a geladeira no meio da noite pra comer frango cru ou até mesmo carne humana, por outro ela também está mais destemida, menos preocupada com os outros vão pensar dela e descobrindo coisas sobre si mesma que ela não conhecia.


“Mas o que eu gosto, eu gosto é de comer.
Carne humana, iô iô iô
Carne humana, iô iô iô”

 Claro que é possível ver Raw como um filme de terror sobre canibalismo, mas fica bem claro que a diretora quer transmitir algo além de uma menina comendo carne humana ou do gore que tanto amamos. Não existe uma interpretação única sobe a obra e é possível que cada pessoa veja a questão de Justine de uma forma diferente, sendo que alguns podem ver o filme como uma transição entre a juventude e a vida adulta, enquanto outros sobre a descoberta pessoal na faculdade, talvez feminismo ou até mesmo sobre alimentação (vegetarianismo e tal). A questão é que o filme está muito além das suas imagens e permite mesmo múltiplas leituras.
Um aspecto que eu vejo bem forte no filme é a questão da descoberta sexual, e a carne funciona como um simbolismo bem claro nesse sentido. Logo depois que ela prova a carne de animal pela primeira vez, Justine passa a olhar tudo de um jeito diferente e a curiosidade que ela não tinha no passado, agora passa a ter. Se em um momento ela estava retraída e tímida, agora ela tenta se descobrir como mulher e desbravar aquele mundo até então desconhecido. E é estranho que sempre que surge qualquer cena envolvendo algo com outra pessoa, seja sexo ou beijo, aquilo acaba ocasionando em uma especie de desejo de canibalismo, como se ela estivesse tomando algo do outro pra si, consumindo um pedaço do outro, meio antropofágico. Claro que posso estar viajando, mas acho bem interessante pensar nesse consumo do outro como uma forma agregar suas experiencias, afinal nos sempre levamos algo das outras pessoas com quais nos relacionamos. Mas é logico que não levamos carne... pelo menos assim espero.
Mas é claro que a descoberta sexual é apenas um das questões da trama, pois não estamos falando só do relacionamento carnal, mas do convívio com outras pessoas em geral. Não sabemos muito sobre a vida da Justine até aquele momento, mas temos a impressão que ela sempre foi dependente dos pais e sem muita convivência com o mundo externo, de modo que ao entrar na faculdade ela se depara com uma mundo completamente diferente, com influências novas vindo de todos os lados, o que faz com que ela só comece a conhecer a si mesma a partir do momento em que passa a conviver com os outros, já que é só com as referências externas, com o estranho que ela começa a compreender a si mesma. Se até então ela tinha uma concepção de mundo baseada naquele ambiente estreito, quando ela entra na faculdade tudo passa a ser questionado porque suas ideologias parecem não fazer tanto sentido, levando-a a entrar nesse turbilhão de sentimentos e experiências.
Por fim, um ponto que eu não vi ninguém discutindo mas que pode ser levantado é a questão da “carne animal x carne humana”, quer dizer, no início do filme fica claro que a protagonista é super preocupada com os animais, tanto que pra ela os direitos dos humanos e animais deveriam ser quase iguais. Então como uma forma de resistência a consumir animais, ela acaba inconscientemente apreciando a carne das pessoas, mas isso é apenas uma brisa minha, afinal somos muito mais desprezíveis que os animais.

Obs: Já discutimos um pouco sobre canibalismo na resenha de Jantar secreto


Os demônios de cada um
  
Existe mais uma questão que merece ser pontuada, mas que só será revelada no final do filme, então caso não queira spoiler, recomendo que pule para o próximo tópico.
No meio do filme em diante vamos começar a perceber que existe algo de estranho na relação entre Justine e a irmã. Não sabemos exatamente o quê, mas tem algo ali. Elas estão sempre em uma dualidade entre proteção e rivalidade, sendo que, se uma hora estão tirando sangue e carne uma da outra, literalmente, em outro momento elas estão se cuidando e protegendo.
É só na ultima cena do filme vamos compreender melhor o que de fato está acontecendo e o por quê das garotas terem esse problema envolvendo carne. Antes de acabar o filme, descobrimos que a “loucura canibalista” é na verdade uma condição da família e que até mesmo a mãe das duas garotas sofre do mesmo problema, escolhendo estabelecer uma alimentação vegetariana como forma de proteger as filhas das consequências que o consumo de carne pode levar, para que certos instintos não fossem despertado nas garotas. Mas todos sabemos que vivemos em um mundo bem complicado e não podemos controlar tudo.
Isso leva a outra discussão importante que é a comunicação entre pais e filhos. Os pais de Justine durante toda a vida tentaram proteger a filha desse problema familiar: estabeleceram o vegetarianismo, proibiram o consumo de carne, mas em nenhum momento conversaram sobre os motivos reais disso, então, ao entrar na faculdade, é como se ela fosse jogada em meio a diversas tentações sem saber o perigo disso porque seus pais nunca se abriram com ela. Essa questão é bem relevante porque reforça ainda mais as diversas interpretações para o filme, como a própria questão da sexualidade, que faz paralelo com essas famílias que cobram um comportamento do filho em relação ao sexo mas nunca conversaram sobre ou buscaram mostrar os “perigos” e consequências daquilo. Mas isso também se aplica a diversos outros temas, como drogas, por exemplo.
Assim, além de todo o processo de descoberta, quando o filme acaba percebemos que existe uma outra questão bastante importante permeando todo o filme, que é como lidamos com os nossos demônios interiores. O problema de Justine antecede o consumo de carne; o rim de coelho foi apenas o estopim para o canibalismo se manifestar. Então se isso é uma condição que já nasceu com ela, como lidar com isso? Será que é melhor reprimir esse instinto ou aceitar sua condição e conviver com isso?
Você deve estar se perguntando, se a irmã sabia da predisposição ao canibalismo, porque permitiu então que Justine comesse  o rim de coelho? Essa questão deixarei pra você, afinal existem varias respostas possíveis: ter alguém pra compartilhar o problema, mostrar a irmã que o mundo é algo diferente do que ela acredita, vingança por a irmã ser a queridinha dos pais, poder orientar enquanto ela está próxima, etc...
O filme vai mostrar que cada uma (a mãe e a irmã) tem o seu próprio jeito de lidar com os instintos e se manter no meio social sem causar suspeitas. A mãe focando no vegetarianismo e buscando escape em seu marido (se você assistiu, sabe do que eu to falando), e sua irmã causando acidentes na estrada para satisfazer seu desejo por sangue. Cada escolha vai ter seus perigos e consequências,cabe sabe o caminho que Justine irá escolher...


Vai uma perninha ai?

Apesar de Raw ser conhecido pelas polêmicas que causou, por sua violência gráfica e por seu tema indigesto, ele não é propriamente um filme de terror. Claro, ele tem elementos do gênero, mas é muito mais um drama que qualquer outra coisa, embora consiga ter seus momentos de gore e de humor negro, quebrando um pouco a tensão do filme e fazendo o expectador rir mesmo em momentos duvidosos.
Por ser um filme francês, ele tem um ritmo bem diferente daqueles americanos que estamos acostumados a ver, ainda mais pro ser classificado no gênero terror. Tudo é um tanto vagaroso, não há cenas de susto e os personagens são mais trabalhados. Eu gosto bastante desse estilo mais lento que vai construindo o clima e a trama aos poucos, mas caso você vá assistir achando que é um filme de uma menina canibal correndo atrás de alunos da faculdade, pode acabar frustrado.
Algo que deixa o filme ainda melhor são certos aspectos técnicos, tanto no que diz respeito a direção quanto atuação. Os atores, principalmente a garota que faz a Justine, conseguem transmitir tudo aquilo que a personagem precisa; você consegue identificar a mudança de comportamento só pela forma de olhar ou até mesmo pela sua postura física, e mesmo os atores que encenam a irmã e o amigo da protagonista também conseguem seguram bem a trama, tendo uma sintonia bem legal entre eles.
A diretora utiliza de vários recursos interessantes, como planos abertos, alguma sequências mais longas sem cortes e coisas assim, algumas pessoas podem não gostar, mas acho algo bem interessante que torna o filme singular.
Por fim, se você leu até aqui, já deve imaginar que eu gostei bastante do filme. Então não resta nada a não ser recomendá-lo. Aproveite que ele está no Netflix e corre lá pra assistir, depois pode voltar aqui pra gente conversar mais.

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