Querido
leitor, não sei se você já passou pela vida universitária; caso tenha passado,
acho que você irá concordar com a gente que a faculdade é uma fase de
transformação em todos os sentidos: intelectual, social, sexual, pessoal, etc.
Claro que isso depende muito de pessoa pra pessoa: algumas estão mais
interessadas nas festinhas e curtição, outras querem estabelecer sua base de
contatos para o futuro, ou simplesmente adquirir o máximo de conhecimento
possível para crescer como pessoa e, consequentemente, profissional, isso sem
contar as pessoas que acabam despertando seus desejos canibais e querem comer,
literalmente, os colegas. Independente das suas prioridades, é inegável que
você saiu (ou vai sair) de um jeito diferente… Se você sobreviver.
Título original: Raw
Lançamento: 2016
Duração: 99 minutos
Direção: Julia Ducournau
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Justine é uma garota que está
ingressando em uma tradicional faculdade de veterinária da França, a mesma
cursada por seus pais e por sua irmã, que já está próxima de se formar. Apesar
de nascer em uma família de veterinários, logo nos primeiros dias na
universidade Justine percebe que vai viver algo bem diferente do que imaginava:
as pessoas não estão no curso pelo mesmo motivo que ela, sua irmã e veterana
está mudada e a vida ali não é tão tranquila. As coisas começam a ficar ainda
mais complicadas quando elá é coagida a comer um pedaço de carne durante um
trote, sendo que ela foi vegetariana por toda a sua vida.
Vamos salvar ou comer os bichinhos?
Raw chamou bastante atenção na sua estreia porque durante as
primeiras exibições algumas pessoas passaram mal e desmaiaram devido à temática
e ao conteúdo gráfico. Sim, ele tem cenas desagradáveis, mas não achei tanto.
Deve ser pelo fato de eu já ter desgraçado minha cabeça o suficiente pra não me
impressionar mais, mas independentemente disso, Raw está muito além de
ser um filme sobre canibalismo com gore, existindo diversas questões que serão
abordadas nele que farão o gore ser usado apenas como ferramenta. Mas falaremos
disso mais adiante.
O filme inicia com Justine e seus
pais viajando de carro para chegar até à universidade em que ela estudará.
Chegando lá ela logo vai perceber que está num mundo completamente diferente
daquele em que ela viveu até ali. Logo na primeira noite no alojamento da
faculdade os veteranos invadem seu quarto e bagunçam tudo, é obrigada a
participar de algumas atividades de iniciação e mesmo na festa da faculdade ela
se vê totalmente perdida, pessoas bebendo, fodendo, se drogando, usando roupas
da moda, algo totalmente diferente do seu mundo. Até mesmo a sua irmã parece
ser uma pessoa diferente, estando totalmente integrada àquele ambiente
universitário e estranho para a jovem caloura.
Ao longo de sua passagem ali,
Justine vai perceber que seu estranhamento vai além do trote, pois mesmo dentro
da sala de aula os seus colegas são bem diferentes dela, seja em relação à
postura que têm ou até mesmo às questões ideológicas. Justine se sente cada vez
mais perdida naquele ambiente: os trotes continuam diariamente, obrigando-a a
adotar uma persona que não combina com si e tendo que lidar com as aulas e com
vida longe dos pais. Tudo começa a mudar quando em um dos trotes ela é obrigada
a comer um pedaço de carne crua.
Logo após comer carne pela
primeira vez na vida, Justine começa a sofrer mudanças físicas e psicológicas,
começando por uma alergia no seu corpo e, logo após, passando para uma
necessidade incontrolável de comer carne, que vai ficando cada vez mais intensa
e levando a garota ao limite.
Hummm… que dedinho gostoso
Resumindo, Raw é um filme
sobre mudanças e descobertas. Claro que é possível ver como um filme de terror
em que um garota se torna canibal, mas todos os detalhes do filme querem
mostrar que existe muito além da superfície.
Numa das primeiras cenas do filme
vemos a família de Justine parando pra comer num restaurante de estrada no
caminho para a faculdade, sendo que no meio de uma mordida ela acaba
encontrando um pedaço de carne no meio da sua comida, cuspindo-a imediatamente,
fazendo com que sua mãe levanta para reclamar (afinal eles são vegetarianos e o
restaurante precisa ter mais respeito e atenção com essas coisas). Alguns
minutos depois, temos uma outra cena, agora no restaurante da faculdade, em que
ela está sentada com alguns colegas de sala e começa uma discussão sobre
direito dos animais. Para Justine o estupro de um animal é tão grave quanto o
de uma pessoa, o que acaba gerando um clima desconfortável na mesa, afinal o
seu nível de engajamento com a questão dos animais está muito acima de todos os
outros. Elá não consegue entender como futuros veterinários conseguem comer
carne ou pensar em animais como seres inferiores.
É nesses detalhes que parecem
despretensiosos e sem muita importância que vamos entendendo o tipo de educação
que ela teve e percebendo a transformação da personagem. A questão da carne
sempre parece ser algo sério para a sua família, então, antes da sua primeira
experiencia comendo no trote, as cenas com o alimento envolvem uma certa
repulsa, uma espécie de ódio, afinal a vida toda ela foi ensinada que comer
carne é algo errado. Além disso, fica bem claro que a diretora quer causar um
estranhamento com a personagem. Na primeira parte do filme Justine é sempre
mostrada de um jeito meio animalesco, ela está sempre quieta, curvada e
retraída como um animal indefeso, como se ela fosse uma presa jogada no meio de
seus predadores, algo que irá mudar no decorrer do filme.
O ponto de partida para a mudança
de comportamento de Justine é justamente comer
carne crua no trote. Como parte do trote, todos os calouros são
obrigados a comer algo diferente e a protagonista ganha a tarefa de comer uma
pedaço de rim de coelho, se não me engano, o que gera certa resistência, afinal
ela foi vegetariana por toda a vida e não pode simplesmente mudar isso por
causa de uma brincadeira, entretanto, a pressão dos outros alunos, da sua
própria irmã e também a necessidade de pertencer ao grupo e o medo da rejeição
acaba fazendo com que ela coma e rompa, mesmo contra a sua vontade, essa
barreira que ela sempre teve com carne.
Após comer, Justine acredita que
o trote já está no fim e está quite com os veteranos, que ninguém poderá
reclamar dela ser chata ou anti-social, afinal ela participou de tudo, mesmo
contra a sua vontade. Mas é ai que os verdadeiros problemas começam.
Comendo coelhos e humanos…
A primeira experiência
carnívora de Justine irá desencadear em diversos outros eventos, iniciando um
processo de transformação da protagonista. Logo no dia seguinte uma estranha
alergia faz com que boa parte de seu corpo fique avermelhado, com uma aparência
nem um pouco agradável, causando
irritação e escamação da pele. Além disso, ela começa a sentir uma estranha
atração por carne que, por mais que tente reprimir, foge do seu controle.
Inclusive, um
dos aspectos mais legais do filme é ver a transformação da protagonista ao
longo da historia. Como disse anteriormente, na primeira parte do filme Justine
está sempre encolhida, mas aos poucos isso vai mudando. Logo após a experiencia
com carne vemos ela tendo problema em aceitar as mudanças tanto em seu corpo
quanto em seus instintos, de modo que ao ver que é impossível controlar sua
vontade por carne, ela tenta esconder dos outros seu novo hábito, afinal ela
sempre se mostrou como vegetariana e defensora do direito dos animais. A partir
disso, Justine adquire um comportamento furtivo: ela tenta roubar um hambúrguer,
pede para seu amigo ir pra outra cidade com ela provar carne e coisas assim,
afinal ela não quer que as outras pessoas vejam que ela está traindo seus princípios.
Apesar de
ainda estar insegura com sua situação, já é possível perceber que ela está mais
viva e menos retraída. As coisas que antes causavam desconforto já não causam
mais: ela passa a olhar pra si mesma e para os outros de um jeito diferente, a
faculdade começa a ter outros significados, etc. Até mesmo a sua relação com a
irmã passa por isso; se antes da
faculdade ela olhava com admiração para irmã mais velha, com o passar do tempo
essa relação vai mudando: o carinho ainda existe, obviamente, mas começa a
existir também certa rivalidade e uma decepção, na medida em que a protagonista
começa a perceber que a visão que ela tinha da irmã era um tanto quanto
equivocada.
Essa transição
passa a ficar cada vez mais intensa, tanto quando pensamos na aparente questão
do canibalismo quanto nas metáforas que aquilo significam. Se por uma lado
temos uma Justine que assalta a geladeira no meio da noite pra comer frango cru
ou até mesmo carne humana, por outro ela também está mais destemida, menos
preocupada com os outros vão pensar dela e descobrindo coisas sobre si mesma
que ela não conhecia.
“Mas o que eu
gosto, eu gosto é de comer.
Carne humana, iô iô iô
Carne humana, iô iô iô”
Carne humana, iô iô iô
Carne humana, iô iô iô”
Claro que é possível
ver Raw como um filme de terror sobre canibalismo, mas fica bem claro
que a diretora quer transmitir algo além de uma menina comendo carne humana ou
do gore que tanto amamos. Não existe uma interpretação única sobe a obra e é possível
que cada pessoa veja a questão de Justine de uma forma diferente, sendo que
alguns podem ver o filme como uma transição entre a juventude e a vida adulta,
enquanto outros sobre a descoberta pessoal na faculdade, talvez feminismo ou
até mesmo sobre alimentação (vegetarianismo e tal). A questão é que o filme
está muito além das suas imagens e permite mesmo múltiplas leituras.
Um aspecto que eu vejo bem forte no filme é a questão da
descoberta sexual, e a carne funciona como um simbolismo bem claro nesse
sentido. Logo depois que ela prova a carne de animal pela primeira vez, Justine
passa a olhar tudo de um jeito diferente e a curiosidade que ela não tinha no
passado, agora passa a ter. Se em um momento ela estava retraída e tímida,
agora ela tenta se descobrir como mulher e desbravar aquele mundo até então
desconhecido. E é estranho que sempre que surge qualquer cena envolvendo algo
com outra pessoa, seja sexo ou beijo, aquilo acaba ocasionando em uma especie
de desejo de canibalismo, como se ela estivesse tomando algo do outro pra si, consumindo
um pedaço do outro, meio antropofágico. Claro que posso estar viajando, mas
acho bem interessante pensar nesse consumo do outro como uma forma agregar suas
experiencias, afinal nos sempre levamos algo das outras pessoas com quais nos
relacionamos. Mas é logico que não levamos carne... pelo menos assim espero.
Mas é claro que a descoberta sexual é apenas um das questões
da trama, pois não estamos falando só do relacionamento carnal, mas do convívio
com outras pessoas em geral. Não sabemos muito sobre a vida da Justine até
aquele momento, mas temos a impressão que ela sempre foi dependente dos pais e
sem muita convivência com o mundo externo, de modo que ao entrar na faculdade
ela se depara com uma mundo completamente diferente, com influências novas vindo
de todos os lados, o que faz com que ela só comece a conhecer a si mesma a
partir do momento em que passa a conviver com os outros, já que é só com as
referências externas, com o estranho que ela começa a compreender a si mesma.
Se até então ela tinha uma concepção de mundo baseada naquele ambiente
estreito, quando ela entra na faculdade tudo passa a ser questionado porque
suas ideologias parecem não fazer tanto sentido, levando-a a entrar nesse
turbilhão de sentimentos e experiências.
Por fim, um ponto que eu não vi ninguém discutindo mas que
pode ser levantado é a questão da “carne animal x carne humana”, quer dizer, no
início do filme fica claro que a protagonista é super preocupada com os
animais, tanto que pra ela os direitos dos humanos e animais deveriam ser quase
iguais. Então como uma forma de resistência a consumir animais, ela acaba inconscientemente
apreciando a carne das pessoas, mas isso é apenas uma brisa minha, afinal somos
muito mais desprezíveis que os animais.
Os demônios de
cada um
Existe
mais uma questão que merece ser pontuada, mas que só será revelada no final do
filme, então caso não queira spoiler, recomendo que pule para o próximo tópico.
No meio
do filme em diante vamos começar a perceber que existe algo de estranho na
relação entre Justine e a irmã. Não sabemos exatamente o quê, mas tem algo ali.
Elas estão sempre em uma dualidade entre proteção e rivalidade, sendo que, se
uma hora estão tirando sangue e carne uma da outra, literalmente, em outro
momento elas estão se cuidando e protegendo.
É só na
ultima cena do filme vamos compreender melhor o que de fato está acontecendo e
o por quê das garotas terem esse problema envolvendo carne. Antes de acabar o
filme, descobrimos que a “loucura canibalista” é na verdade uma condição da família
e que até mesmo a mãe das duas garotas sofre do mesmo problema, escolhendo
estabelecer uma alimentação vegetariana como forma de proteger as filhas das
consequências que o consumo de carne pode levar, para que certos instintos não
fossem despertado nas garotas. Mas todos sabemos que vivemos em um mundo bem
complicado e não podemos controlar tudo.
Isso leva
a outra discussão importante que é a comunicação entre pais e filhos. Os pais
de Justine durante toda a vida tentaram proteger a filha desse problema
familiar: estabeleceram o vegetarianismo, proibiram o consumo de carne, mas em
nenhum momento conversaram sobre os motivos reais disso, então, ao entrar na
faculdade, é como se ela fosse jogada em meio a diversas tentações sem saber o
perigo disso porque seus pais nunca se abriram com ela. Essa questão é bem
relevante porque reforça ainda mais as diversas interpretações para o filme,
como a própria questão da sexualidade, que faz paralelo com essas famílias que
cobram um comportamento do filho em relação ao sexo mas nunca conversaram sobre
ou buscaram mostrar os “perigos” e consequências daquilo. Mas isso também se
aplica a diversos outros temas, como drogas, por exemplo.
Assim,
além de todo o processo de descoberta, quando o filme acaba percebemos que
existe uma outra questão bastante importante permeando todo o filme, que é como
lidamos com os nossos demônios interiores. O problema de Justine antecede o consumo
de carne; o rim de coelho foi apenas o estopim para o canibalismo se
manifestar. Então se isso é uma condição que já nasceu com ela, como lidar com
isso? Será que é melhor reprimir esse instinto ou aceitar sua condição e
conviver com isso?
Você deve
estar se perguntando, se a irmã sabia da predisposição ao canibalismo, porque
permitiu então que Justine comesse o rim
de coelho? Essa questão deixarei pra você, afinal existem varias respostas possíveis:
ter alguém pra compartilhar o problema, mostrar a irmã que o mundo é algo
diferente do que ela acredita, vingança por a irmã ser a queridinha dos pais,
poder orientar enquanto ela está próxima, etc...
O filme
vai mostrar que cada uma (a mãe e a irmã) tem o seu próprio jeito de lidar com os instintos e se manter no
meio social sem causar suspeitas. A mãe focando no vegetarianismo e buscando
escape em seu marido (se você assistiu, sabe do que eu to falando), e sua irmã
causando acidentes na estrada para satisfazer seu desejo por sangue. Cada
escolha vai ter seus perigos e consequências,cabe sabe o caminho que Justine
irá escolher...
Vai uma perninha ai?
Apesar de Raw
ser conhecido pelas polêmicas que causou, por sua violência gráfica e por seu
tema indigesto, ele não é propriamente um filme de terror. Claro, ele tem
elementos do gênero, mas é muito mais um drama que qualquer outra coisa, embora
consiga ter seus momentos de gore e de humor negro, quebrando um pouco a tensão
do filme e fazendo o expectador rir mesmo em momentos duvidosos.
Por ser um
filme francês, ele tem um ritmo bem diferente daqueles americanos que estamos
acostumados a ver, ainda mais pro ser classificado no gênero terror. Tudo é um
tanto vagaroso, não há cenas de susto e os personagens são mais trabalhados. Eu
gosto bastante desse estilo mais lento que vai construindo o clima e a trama
aos poucos, mas caso você vá assistir achando que é um filme de uma menina
canibal correndo atrás de alunos da faculdade, pode acabar frustrado.
Algo que deixa
o filme ainda melhor são certos aspectos técnicos, tanto no que diz respeito a
direção quanto atuação. Os atores, principalmente a garota que faz a Justine,
conseguem transmitir tudo aquilo que a personagem precisa; você consegue
identificar a mudança de comportamento só pela forma de olhar ou até mesmo pela
sua postura física, e mesmo os atores que encenam a irmã e o amigo da
protagonista também conseguem seguram bem a trama, tendo uma sintonia bem legal
entre eles.
A diretora
utiliza de vários recursos interessantes, como planos abertos, alguma
sequências mais longas sem cortes e coisas assim, algumas pessoas podem não
gostar, mas acho algo bem interessante que torna o filme singular.
Por fim, se
você leu até aqui, já deve imaginar que eu gostei bastante do filme. Então não
resta nada a não ser recomendá-lo. Aproveite que ele está no Netflix e corre lá
pra assistir, depois pode voltar aqui pra gente conversar mais.
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