segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Literatura: A guerra que salvou a minha vida (Kimberly Brubaker Bradley)


                O que você pensa quando falamos sobre a segunda guerra? Eu imagino que sejam bombas, Hitler, mortes, miséria, genocídio, campos de concentração e derivados, certo? Sim, esses são as principais coisas em que pensamos, mas hoje nós falaremos sobre a guerra de uma perspectiva totalmente diferente. Claro que todos esses assuntos estão relacionados, mas você já pensou que no meio de tanta desgraça algumas coisas boas possam ter acontecido? É exatamente sobre isso o tema do livro que vamos resenhar hoje, porque para essa garota, a guerra salvou sua vida.



“Ela não era boa, mas limpou o chão. Não era boa, mas enrolou meu pé numa tira de pano branco e nos deu duas camisetas limpas para vestir. Batiam abaixo do joelho. Ela penteou nosso cabelo e cortou os nós, o que levou uma eternidade , depois fez uma frigideirona de ovos mexidos.
“É a única comida que tenho. Não fiz compras essa semana. Não estava esperando vocês.”
Era a única comida que ela tinha, mas havia manteiga para passar no pão velho e açúcar pro chá. Os ovos estavam meio pegajosos, mas eu comeria qualquer coisa com a fome que sentia, e achei uma delicia. Limpei o prato com o pão, e ela me serviu outra colherada de ovos.”



Título original: The war that saved
my life
Autor: Kimberly Brubaker Bradley
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Páginas: 234
            Ada é uma garota de aproximadamente dez anos que nunca sai de casa devido ao seu pé torto, algo que envergonha sua mãe. Por ficar presa e ser proibida de frequentar a escola, a garota é obrigada a cuidar da casa e do seu irmão. Em meio aos abusos físicos e psicológicos sofridos devido a sua deficiência, seu único conhecimento de mundo é aquilo que ela vê pela janela: seu irmão brincando com outras crianças, pessoas passando, a rotina de alguns vizinhos, etc. Tudo isso começa a mudar quando a guerra passa a ficar mais concreta e as ameaças de bombardeios em Londres parecem cada vez mais próximas.

O que é pior que a guerra?

Antes de começar a resenha acho bom deixar claro que nem a autora e nem nós do blog estamos de alguma forma tentando dizer que a guerra foi algo positivo e que trouxe coisas boas, e nem mesmo colocar pequenos eventos positivos sobre as atrocidades para mascarar, ok? Apesar de focar na história dessa garota que foi “salva pela guerra”, o livro a todo momento vai tentar inserir o leitor naquele contexto para mostrar que, apesar de algumas coisas boas acontecerem naquele micro ambiente, quase todo o resto está em completa desgraça. Dito isso, vamos lá.
A obra vai começar mostrando um pouco do dia a dia daquela família, servindo como uma breve contextualização da vida de Ada e seu irmão até aquele momento. Por ser impedida de ir pra rua e viver dentro da casa, fica nítido que todas aquelas torturas pelas quais ela passa são algo rotineiro. Então mesmo que o leitor comece a acompanhar a vida da garota a partir daquele ponto, ele sabe exatamente como foram todos os dias até ali e com isso começamos a nos aproximar da protagonista e narradora da historia.
Ada é uma garota que nasceu com o pé torto, algo que sempre foi motivo de vergonha pra sua mãe. Após a morte do pai, ela foi obrigada a viver dentro de casa e impedida de sair para que as pessoas não vissem sua “deformidade”. Sem outra opção, Ada foi encarregada de cuidar da casa e do irmão, sempre sofrendo represálias quando fizesse qualquer coisa que não fosse aprovada pela sua mãe. Portanto, ficar trancada dentro do armário com as baratas, sem poder comer ou apanhar era algo que fazia parte de sua rotina.
Quando porém a guerra começa a se aproximar da Inglaterra e Londres passa a ser um dos principais alvos para os nazistas, as crianças começam a ser evacuadas da cidade para o interior, onde é mais seguro. Saindo escondida da mãe com o irmão Jamie, Ada se junta ao grupo de crianças da escola local para ser enviada ao interior, onde vai acabar sob a guarda de Susan, uma mulher que não é boa, mas que dará tudo aquilo que as crianças nunca tiveram.


“Ela não era boa...”

Se no inicio do livro vamos conhecer a situação em que Ada e Jamie viviam com a mãe em Londres, é a partir da chegada na casa de Susan que compreenderemos os impactos psicológicos que aqueles anos de privações e torturas causaram nas crianças, principalmente na narradora.
Ao chegar ao interior, essas crianças vindas de Londres, ficam sobre a guarda de alguma família da região até que a guerra acabe (ou não apresente perigo) e possam voltar para sua cidade. Ada e Jamie acabam ficando com Susan, uma mulher que vive sozinha com seu cavalo Manteiga e por alguns motivos não se dá muito bem com os vizinhos. Apesar das crianças surgirem de uma maneira inesperada em sua vida, ela acaba aceitando cuidar delas, levando a transformação de ambas as partes, mas principalmente de Ada.
A protagonista vai levar um choque com a mudança, pois até aquele momento ela sempre foi tratada de uma maneira grosseira e viveu trancafiada por conta do seu pé torto, tanto que essa constante repulsa da mãe pela sua deficiência, fez com que ela passasse a acreditar que seu pé torto fosse uma forma de castigo, então mesmo com a constante violência sofrida, ela pensava ser algo que ela merecia e que a mãe dela tratava daquela forma porque era pra ser assim. Como aquela era a única realidade que conhecia, ela acreditava que a vida era assim e não via a possibilidade de ser tratada como uma criança normal, pois ela não era normal.
Quando chega na casa de Susan, entretanto, ela começa a viver uma realidade completamente diferente daquela que ela teve até ali. E isso acaba gerando um conflito interno em Ada porque uma das primeiras coisas que ela escuta a sua tutora falar é “eu não sou uma boa pessoa”, o que a coloca num dilema: “Como assim? Ela não é boa, mas ela me dá comida, me deixa sair, não tem vergonha de mim, me da roupas novas, não me castiga quando faço algo errado, etc.”
Assim, a vida na nova casa passa a ser um eterno conflito, pois tudo é uma novidade e todas as verdades em que ela acreditava passam a ser questionadas.


Entre guerras

Do inicio ao fim da história, Ada vai estar no meio de batalhas que ela não entende muito bem. Se, por um lado, tem pessoas prestes a bombardear sua cidade, por outro, tem pessoas que não se importam com sua deficiência e cuidam dela e do irmão melhor que sua própria mãe. A palavra “guerra” do título acaba tendo um duplo significado, representando tanto aquilo que está ocorrendo dentro de sua cabeça quanto ao conflito externo a ela.
Por mais que você fique bravo com algumas atitudes de Ada e do seu irmão, é totalmente compreensível aquilo que eles fazem, afinal são crianças que passaram por um choque e uma mudança abrupta de ambiente. Eles passaram a vida toda daquele jeito e, por pior que fosse (principalmente pra Ada), aquela era a única referência que elas tinham, acreditando que as torturas e privações eram algo normal e que todas as crianças passavam por aquilo. Quando elas chegam no interior, porém, e percebem que a vida não é assim, e que uma estranha demonstrava mais amor, afeto e cuidado que a própria mãe, aquilo causa um estranhamento que é difícil de superar e aceitar. Tanto que em diversos momentos você vê que Ada parece se auto punir ou procurar meios de resistência para não aceitar que coisas boas aconteçam com ela.
Um exemplo bem claro do quanto a mãe prejudicou o psicológico da garota é o momento em que Susan presenteia Ada com um vestido. A protagonista fica transtornada porque até aquele momento ela só usava roupas velhas e usadas. Pra que uma garota como ela iria ganhar um vestido novo e bonito? Aquilo era pra garotas bonitas e perfeitas, ela era diferente, então não poderia se vestir bem, ela tinha que se contentar com as sobras, como sua mãe sempre ensinou. A sua constante resistência a leitura segue o mesmo princípio; ela não via o motivo de alguém como ela aprender a ler, afinal a sua vida estava destinada a viver trancafiada dentro de casa, educação era pras pessoas que mereciam, não ela.
Por outro lado, apesar desse conflito constante, a outra guerra, aquela em que ela não está envolvida diretamente, vai mostrando pra Ada que o mundo vai muito além daquela casa em que ela vivia trancafiada, abrindo seus horizontes para mostrar que ela pode ter uma deficiência física, mas isso não faz com que ela seja inferior, e que mesmo com as limitações ela pode ser importante e fazer aquilo que ela quiser. Tanto que algumas mudanças pelas quais ela vai passando se dão por conta da guerra e pela necessidade de se adaptar a aquele contexto.
Eu acredito que a batalha mais importante de Ada é a que ela trava com o Manteiga. Desde o momento em que ela chega à casa de Susan, a protagonista fica encantada com o cavalo, então por mais que ela tenha todas aquelas resistências e por mais que ela acredite ser inferior as outras crianças, sua vontade de se aproximar e montar o cavalo são mais fortes. A simples vontade de se aproximar do cavalo ajuda na transformação de Ada durante a história. A sua insistência em conseguir, mesmo com as diversas falhas, faz com que ela passe a acreditar nela mesmo e perceber que se ela batalha por algo ela consegue, podendo ser tão boa ou até melhor que as crianças “normais”. E essa confiança que desperta quando está montada no Manteiga permite que ela comece a repensar sua vida e aceitar as constantes mudanças que está vivendo.
Em suma, é um livro que fala sobre as diversas batalhas que uma garota precisa enfrentar para conseguir se impor no mundo em que vive, tendo que encontrar as armas necessárias para enfrentar esses conflitos e sobreviver a todas as limitações sofridas, seja pelos outros ou por ela mesma.  


Um livro, dois públicos

A guerra que salvou a minha vida é um daqueles livros que eu confesso que não chamou minha atenção quando foi lançado e eu não tinha muita vontade de ler, principalmente pela capa fofinha e por parecer um livro bem teen. Não parecia muito o tipo de coisa que eu gosto de ler, ainda mais por essa temática de crianças e segunda guerra estar um pouco saturada. Mas como a Darkside mandou em parceria mesmo sem eu solicitar, eu decidi dar uma chance pro livro e foi uma grata surpresa. Brigado caveirinha.
Sim, a linguagem e a construção do livro é um pouco teen, mas não digo isso como algo negativo, pois apesar disso ele vai dialogar com diversos públicos de formas diferentes, não pelo fato de ser narrado por uma criança, que automaticamente faz a linguagem ser um pouco mais infantil, mas por parecer que o livro tem a intenção de apresentar diversos temas pro leitor de uma forma mais didática, sem a intenção de aprofundar muito e abrir discussões mais complexas. Tanto que você percebe que a autora, além dos temas principais como rejeição, superação e a deficiência física da garota, ela também vai acabar, sutilmente, entrando em temas como religião, preconceito e até mesmo sexualidade. Outro ponto que me faz ver o livro como algo mais jovem, é a maneira que a historia é construída, porque ela segue alguns padrões já conhecidos, tanto que logo no inicio você já sabe como vai acabar.
Apesar disso, a autora faz um ótimo trabalho na construção das personagens. Há diversas atitudes ou pensamentos que vão aprofundar muitos dos sentimentos e traumas que a protagonista ta passando ou passou, coisas que facilmente seriam ignorados por leitores mais novos. Então a parte psicológica desses personagens acabam dando um nível de complexidade bem interessante pra obra, porque você passa a compreender melhor tudo aquilo que está ocorrendo na cabeça da garota só pelas ações e falas, sem a necessidade de uma explicação mais teórica.
A guerra é um daqueles livros que apesar de focar em um publico mais jovem, também oferece uma leitura bem interessante pra quem busca algo a mais, conseguindo trazer elementos que transformam uma história não tão criativa em uma leitura bem rica e curiosa, que ira agradar os jovens e os adultos.


Devo enfrentar essa guerra?

Sim, A guerra que salvou minha vida é um daqueles livros que podem enganar pela capa e pela trama aparentemente teen. Apesar de uma história não muito inovadora e previsível, a autora faz um ótimo trabalho ao construir personagens interessantes e mostrar todos os conflitos externos e internos pelo qual a protagonista está passando, algo que se sobrepõe a própria história.
Como dito anteriormente, é um livro que funciona pra diversos públicos, então acho que é uma obra interessante para ser discutida. Diria que seria uma leitura bem bacana para passar em escolas, porque além das questões principais, a autora, mesmo que timidamente, insere diversos temas relevantes.
Enfim, o livro foi uma grata surpresa. Ele tem seus problemas, como o final que parece algo que saiu da sessão da tarde, mas no geral é uma boa experiência e que consegue te fazer refletir sobre diversos assuntos, mas de uma maneira mais leve, sem a densidade que muitos livros sobre a época possuem. A edição da darkside tá bem bonita, mostrando que a caveira também consegue ser fofinha.

Caso busque um livro do gênero, fica a recomendação.

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