quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Literatura: Filme noturno (Marisha Pessl)


            Se você clicar no link de filmes lá no topo da página, vai perceber que nós temos um gosto um tanto quanto peculiar, afinal nem todas as pessoas são refinadas o suficiente para apreciar obras como Camisinha assassina, Arrombada, vou mijar na porra do seu tumulo!!! ou, até mesmo, Jesus Cristo caçador de vampiros. Com isso, você pode achar que somos pessoas estranhas, mas você já tentou imaginar como funciona a cabeça dos diretores desses filmes? Uma alma sã e saudável não teria ideias tão geniais, ou teria?
            É exatamente sobre esses diretores peculiares que vamos falar hoje, pois qualquer um pode dirigir uma comedia romântica ou um filme de super-herói, mas são poucos com culhões o suficiente para chocar seus espectadores com cenas grotescas e indigestas.



“ – O seu problema, McGrath – disse Beckman, esvaziando a garrafa em nossos copos -, é que não tem nenhum respeito pela escuridão. Pelo negrume inexplicável. Pelo que não pode ser revelado. Vocês jornalistas arrasam com os mistérios da vida, ignorando o que tão impiedosamente desvelam, ignorando que escavam algo muito poderoso que – disse, voltando a se sentar na cadeira, os olhos escuros encontrando os meus – o que não quer ser encontrado. E que não será.”


Título original: Night film
Autor: Marisha Pessl
Ano: 2013
Editora: Intrínseca
Páginas: 619
Scott McGrath é um jornalista investigativo que no passado teve problemas judiciais com Stanislas Cordova, um excêntrico e misterioso diretor de cinema, que causou um certo abalo em sua carreira. Quando a filha desse diretor, Ashley Cordova, é encontrada morta em um armazém abandonado, o jornalista desconfiado de que a morte pode não ter sido um suicídio, decide iniciar uma nova investigação não apenas sobre a garota, porém também alguns assuntos pendentes no passado sobre sua família, principalmente seu pai.

Um casaco vermelho no escuro

Filme noturno é um thriller policial que vai seguir as características do gênero — uma morte misteriosa, diversas pontas soltas, personagens duvidosos, um detetive obstinado —, mas que consegue encontrar sua singularidade e entrega uma trama criativa, cheia de mistérios que mantém o leitor intrigado da primeira até a última página. Por se tratar de um thriller, eu vou focar a resenha apenas no conceito básico do livro para não entregar nada da trama.
Pegue a pipoca e escolha o melhor lugar que o filme já vai começar.

*

Narrado em primeira pessoa por Scott McGrath, a trama vai começar quando a filha de um famoso diretor de cinema, Ashley Cordova, é encontrada morta em um armazém abandonado. Todas as evidencias indicam que a morte da garota foi um suicídio, pois devido as circunstâncias não havia a possibilidade de ter mais alguém com ela no local. Entretanto, a garota é filha de Stanislas Cordova, um diretor de cinema rodeado de mistérios, que é considerado gênio por alguns e louco por outros. Como tudo que envolve os Cordovas é nebuloso, McGrath acredita que existe muito mais por trás da morte da garota do que apenas um suicídio, iniciando assim sua investigação.
Revisitando seus antigos arquivos sobre os Cordovas, que não eram estudados desde que teve problemas com o diretor, Scott vai levantando todas as informações que encontra, pois qualquer mínimo detalhe sobre a família é um grande achado. E é nessa misteriosa busca pela verdade que o jornalista vai acabar tendo ajuda de uma aspirante a atriz, que foi a ultima pessoa a ver Ashley com vida, e um jovem traficante de drogas.
Em meio à morte, mistérios e filmes perturbadores, a primeira pista dessa intrigante investigação é um casaco vermelho esquecido por Ashley.

Diretor maldito

Um dos motivos de eu gostar tanto da trama é que eu sempre tive interesse e curiosidade por esses artistas (e obras) considerados malditos, ou seja, aqueles que são rodeados por mistérios e que carregam consigo diversas lendas e histórias que acabam criando todo um universo a sua volta. É obvio que muito dessa fama pode não passar de coincidências, publicidade ou até mesmo boatos que foram tomando forma, mas não deixam de ser interessantes. Afinal quem nunca ouviu ou assistiu algo sobre um quadro amaldiçoado, um filme que causa loucura em quem assiste ou até mesmo uma produção que foi marcada por diversos fatos estranhos, como O exorcista. No livro, Marisha brinca um pouco com essa ideia, mas leva tudo muito mais pro lado do mistério sobre o diretor e dos eventos estranhos envolvendo sua obra que pro lado do sobrenatural — algo que também vai ter no livro, mas falaremos disso mais pra frente.
Não apenas a trama é interessante, como toda a ambientação criada pela autora. O universo em que o livro se passa é bem vivo e cheio de detalhes, ficando nítido que ela não quer apenas contar uma boa história, mas sim criar toda uma mitologia em torno dela para dar base a tudo àquilo que acontece. Isso permite que o leitor não fique indiferente a investigação e queira também fazer parte da história e descobrir o que está acontecendo de fato.
Praticamente toda a investigação vai girar em torno da família Cordova, contudo, em nenhum momento se torna cansativa ou repetitiva por casa disso, já que a cada momento novos elementos e pistas vão surgindo, abrindo caminhos para o detetive e para o leitor.
Mas porque esses Cordovas são tão misteriosos?
Tanto o pai quanto a filha tem uma história bem curiosa e vou dar apenas um panorama geral para que seja mais fácil compreender o princípio da trama. Stanislas Cordova é um diretor de cinema que tem uma filmografia composta por filmes intensos que desafiam os limites da arte. Devido ao seu conteúdo visceral e perturbador, ele acabou tendo uma legião de fãs e uma legião de pessoas que o odeiam. Apesar do conteúdo de seus filmes não serem pra todos, a qualidade acabou que lhe rendendo um Oscar, que foi recebido na premiação por sua fiel assistente, já que Cordova não faz aparições em público e seu rosto é conhecido por poucos, assim como as informações sobre o mesmo são escassas, com exceção de uma estranha entrevista para uma revista de muitos anos atrás. Ele vive com sua família em uma grande propriedade afastada da metrópole, onde construiu o estúdio em que grava seus filmes. Desde que recebeu o Oscar, ele passou a fazer filmes fora do circuito comercial, então poucas cópias circulavam e poucas pessoas passaram a ter acesso a esses novos filmes, o que aumentou ainda mais as lendas em torno do artista. Por fim, mais um detalhe que merece ser destacado, é o fato de que todos os atores e profissionais que trabalharam com ele sempre ficaram quietos a respeito e nunca revelaram nada sobre as filmagens, gravações ou sobre o diretor. A grande maioria desses profissionais também acabaram deixando a carreira no cinema pra se dedicar a outra atividade.
Quanto à Ashley, vamos descobrir mais sobre ela ao longo do livro, então vamos ao básico: ela foi encontrada morta aos 24 anos e antes disso não havia muitas notícias sobre ela, o que pode parecer estranho quando você é filha de um famoso diretor e uma pianista que ganhou reconhecimento ainda na infância. Antes mesmo de completar 10 anos, Ashley começou a tocar piano e pouco tempo depois já exibia um grande talento pra música, reproduzindo perfeitamente obras complexas. Isso fez com que ela ganhasse uma certa fama, o suficiente para se apresentar e gravar seu próprio CD, entretanto, sua carreira na musica parou repentinamente quando tinha cerca de 14 anos. Depois disso, até o momento de sua morte, pouco se falava da pianista prodígio que deixou a carreira de uma hora pra outra.
É nos mistérios desses dois personagens que a história vai se desenvolver, e Scott, cada vez mais obcecado, vai buscar a verdade sobre essa família envolta em lendas e boatos.

Realidade, fantasia e cinema

Como você deve ter percebido, o livro é rodeado de mistérios que muitas vezes se aproximam da linha que divide a realidade da fantasia, pois é difícil conceber tudo aquilo que tange o alcance dos Cordovas — uma pessoa importante da indústria que esconde sua imagem e consegue manter por décadas, atores que se recusam a dar qualquer depoimento sobre o diretor e que mudam de vida logo depois, diversos boatos de que ele está envolvido com atividades ilícitas, uma filha que antes dos 10 anos já tocava piano perfeitamente, eventos estranhos envolvendo sua família e sua propriedade, etc. — sem cogitar a possibilidade de haver algum caroço a mais nesse angu.
Essa é uma característica que dá um ar de estranheza e intensifica o suspense da trama porque abre diversos caminhos que até certo momento você não estava esperando. Não vou aqui discutir se o livro lida de fato com o sobrenatural ou não, vou deixar que você tire (ou não) essa resposta durante a leitura, mas o jeito que as histórias vão se amarrando faz com que a todo momento você fique na duvida se existe algo além acontecendo. Por mais que eu tenha duvidado quando comecei a ler, isso torna o livro ainda mais interessante, porque tudo surge de maneira orgânica e de certa forma dúbia que não te permite compreender o significado final daquilo, apenas faz com que fique mais intrigado. A cada porta aberta, mais portas fechadas surgem diante de você.
Por fim, outro elemento que gostei bastante, mas que não vou me aprofundar aqui, é o fato da autora saber manipular muito bem os caminhos que ela quer que o leitor percorra. Mesmo com uma trama cheia de detalhes e personagens, ela consegue amarrar tudo. É como se ela tivesse umas três (ou mais) linhas narrativas independentes e todas elas fizessem sentido com os mesmos personagens e eventos, com isso, o resultado é bem bacana porque a autora tem domínio pleno da história e a todo momento brinca com o leitor, jogando-o de um lado pro outro. Então hora você ta pensando: “é obvio que é isso aqui, vamos parar de fingir que tem forças sobrenaturais”, ai logo depois “eita porra, tem dedinho do capeta nisso aí?”. Do mesmo modo elai brinca com outros elementos, no entanto prefiro deixar em aberto.

Devo pegar a sessão da meia noite?

Filme noturno foi uma grata surpresa para mim, um daqueles livros que você não sabe quase nada sobre mas que o título e a capa acabam te atraindo. Apesar de seguir a premissa clássica do gênero, o thriller de Marisha Pessl consegue sua singularidade em construir uma trama rica em detalhes e personagens complexos que são cercados de lendas e boatos, contribuindo para aumentar as dúvidas e mistérios sobre os mesmos.
Para contribuir ainda mais pro clima de investigação, a autora, ao longo da trama, coloca diversas imagens que servem como pistas e detalhes que deixam o livro ainda mais interessante. Então conforme o detetive vai encontrando algumas pistas, também vamos vê-las através de meios como fotos, notícias e até mesmo prints do site exclusivo para fãs do Cordova.
Se você gosta de thrillers policiais, Filme noturno é um livro que precisa entrar na sua lista, contudo, já adianto que ele é um livro com mais de 600 páginas e que a autora não tem pressa nenhuma em entregar respostas. Apesar ser agitado e de sempre ter algo acontecendo, o desenvolvimento da história é lento. Particularmente, eu gosto dessa pegada mais lenta do livro, que em que cada pista, por menor que seja, exija certo trabalho de análise que até possa ser em vão. Entretanto compreendo que tem gente que gosta de coisas mais ágeis, por isso já deixo avisado.

Deixo aqui a recomendação do livro e, também, o aviso para que não se aproxime tanto dos Cordovas — a curiosidade é perigosa.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário