Se você clicar no link de filmes lá
no topo da página, vai perceber que nós temos um gosto um tanto quanto
peculiar, afinal nem todas as pessoas são refinadas o suficiente para apreciar
obras como Camisinha assassina, Arrombada, vou mijar na porra do seu tumulo!!! ou, até mesmo, Jesus Cristo caçador de vampiros. Com isso,
você pode achar que somos pessoas estranhas, mas você já tentou imaginar como
funciona a cabeça dos diretores desses filmes? Uma alma sã e saudável não teria
ideias tão geniais, ou teria?
É exatamente sobre esses diretores
peculiares que vamos falar hoje, pois qualquer um pode dirigir uma comedia
romântica ou um filme de super-herói, mas são poucos com culhões o suficiente
para chocar seus espectadores com cenas grotescas e indigestas.
“ – O seu problema, McGrath –
disse Beckman, esvaziando a garrafa em nossos copos -, é que não tem nenhum
respeito pela escuridão. Pelo negrume inexplicável. Pelo que não pode ser
revelado. Vocês jornalistas arrasam com os mistérios da vida, ignorando o que
tão impiedosamente desvelam, ignorando que escavam algo muito poderoso que –
disse, voltando a se sentar na cadeira, os olhos escuros encontrando os meus –
o que não quer ser encontrado. E que não será.”
Título original: Night film
Autor: Marisha Pessl
Ano: 2013
Editora: Intrínseca
Páginas: 619
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Scott
McGrath é um jornalista investigativo que no passado teve problemas judiciais
com Stanislas Cordova, um excêntrico e misterioso diretor de cinema, que causou
um certo abalo em sua carreira. Quando a filha desse diretor, Ashley Cordova, é
encontrada morta em um armazém abandonado, o jornalista desconfiado de que a
morte pode não ter sido um suicídio, decide iniciar uma nova investigação não
apenas sobre a garota, porém também alguns assuntos pendentes no passado sobre
sua família, principalmente seu pai.
Um casaco vermelho no escuro
Filme
noturno é um thriller policial que vai seguir as características do
gênero — uma morte misteriosa, diversas pontas soltas, personagens duvidosos,
um detetive obstinado —, mas que consegue encontrar sua singularidade e entrega
uma trama criativa, cheia de mistérios que mantém o leitor intrigado da
primeira até a última página. Por se tratar de um thriller, eu vou focar
a resenha apenas no conceito básico do livro para não entregar nada da trama.
Pegue
a pipoca e escolha o melhor lugar que o filme já vai começar.
*
Narrado
em primeira pessoa por Scott McGrath, a trama vai começar quando a filha de um
famoso diretor de cinema, Ashley Cordova, é encontrada morta em um armazém
abandonado. Todas as evidencias indicam que a morte da garota foi um suicídio,
pois devido as circunstâncias não havia a possibilidade de ter mais alguém com
ela no local. Entretanto, a garota é filha de Stanislas Cordova, um diretor de
cinema rodeado de mistérios, que é considerado gênio por alguns e louco por
outros. Como tudo que envolve os Cordovas é nebuloso, McGrath acredita que
existe muito mais por trás da morte da garota do que apenas um suicídio,
iniciando assim sua investigação.
Revisitando
seus antigos arquivos sobre os Cordovas, que não eram estudados desde que teve
problemas com o diretor, Scott vai levantando todas as informações que
encontra, pois qualquer mínimo detalhe sobre a família é um grande achado. E é
nessa misteriosa busca pela verdade que o jornalista vai acabar tendo ajuda de
uma aspirante a atriz, que foi a ultima pessoa a ver Ashley com vida, e um
jovem traficante de drogas.
Em
meio à morte, mistérios e filmes perturbadores, a primeira pista dessa
intrigante investigação é um casaco vermelho esquecido por Ashley.
Diretor maldito
Um
dos motivos de eu gostar tanto da trama é que eu sempre tive interesse e
curiosidade por esses artistas (e obras) considerados malditos, ou seja,
aqueles que são rodeados por mistérios e que carregam consigo diversas lendas e
histórias que acabam criando todo um universo a sua volta. É obvio que muito
dessa fama pode não passar de coincidências, publicidade ou até mesmo boatos
que foram tomando forma, mas não deixam de ser interessantes. Afinal quem nunca
ouviu ou assistiu algo sobre um quadro amaldiçoado, um filme que causa loucura
em quem assiste ou até mesmo uma produção que foi marcada por diversos fatos
estranhos, como O exorcista. No livro, Marisha brinca um pouco com essa
ideia, mas leva tudo muito mais pro lado do mistério sobre o diretor e dos eventos
estranhos envolvendo sua obra que pro lado do sobrenatural — algo que também
vai ter no livro, mas falaremos disso mais pra frente.
Não
apenas a trama é interessante, como toda a ambientação criada pela autora. O
universo em que o livro se passa é bem vivo e cheio de detalhes, ficando nítido
que ela não quer apenas contar uma boa história, mas sim criar toda uma
mitologia em torno dela para dar base a tudo àquilo que acontece. Isso permite
que o leitor não fique indiferente a investigação e queira também fazer parte
da história e descobrir o que está acontecendo de fato.
Praticamente
toda a investigação vai girar em torno da família Cordova, contudo, em nenhum
momento se torna cansativa ou repetitiva por casa disso, já que a cada momento
novos elementos e pistas vão surgindo, abrindo caminhos para o detetive e para
o leitor.
Mas
porque esses Cordovas são tão misteriosos?
Tanto
o pai quanto a filha tem uma história bem curiosa e vou dar apenas um panorama
geral para que seja mais fácil compreender o princípio da trama. Stanislas
Cordova é um diretor de cinema que tem uma filmografia composta por filmes
intensos que desafiam os limites da arte. Devido ao seu conteúdo visceral e
perturbador, ele acabou tendo uma legião de fãs e uma legião de pessoas que o
odeiam. Apesar do conteúdo de seus filmes não serem pra todos, a qualidade
acabou que lhe rendendo um Oscar, que foi recebido na premiação por sua fiel
assistente, já que Cordova não faz aparições em público e seu rosto é conhecido
por poucos, assim como as informações sobre o mesmo são escassas, com exceção
de uma estranha entrevista para uma revista de muitos anos atrás. Ele vive com
sua família em uma grande propriedade afastada da metrópole, onde construiu o
estúdio em que grava seus filmes. Desde que recebeu o Oscar, ele passou a fazer
filmes fora do circuito comercial, então poucas cópias circulavam e poucas
pessoas passaram a ter acesso a esses novos filmes, o que aumentou ainda mais
as lendas em torno do artista. Por fim, mais um detalhe que merece ser
destacado, é o fato de que todos os atores e profissionais que trabalharam com
ele sempre ficaram quietos a respeito e nunca revelaram nada sobre as
filmagens, gravações ou sobre o diretor. A grande maioria desses profissionais
também acabaram deixando a carreira no cinema pra se dedicar a outra atividade.
Quanto
à Ashley, vamos descobrir mais sobre ela ao longo do livro, então vamos ao
básico: ela foi encontrada morta aos 24 anos e antes disso não havia muitas
notícias sobre ela, o que pode parecer estranho quando você é filha de um
famoso diretor e uma pianista que ganhou reconhecimento ainda na infância.
Antes mesmo de completar 10 anos, Ashley começou a tocar piano e pouco tempo
depois já exibia um grande talento pra música, reproduzindo perfeitamente obras
complexas. Isso fez com que ela ganhasse uma certa fama, o suficiente para se
apresentar e gravar seu próprio CD, entretanto, sua carreira na musica parou
repentinamente quando tinha cerca de 14 anos. Depois disso, até o momento de
sua morte, pouco se falava da pianista prodígio que deixou a carreira de uma
hora pra outra.
É
nos mistérios desses dois personagens que a história vai se desenvolver, e
Scott, cada vez mais obcecado, vai buscar a verdade sobre essa família envolta
em lendas e boatos.
Realidade, fantasia e cinema
Como
você deve ter percebido, o livro é rodeado de mistérios que muitas vezes se
aproximam da linha que divide a realidade da fantasia, pois é difícil conceber
tudo aquilo que tange o alcance dos Cordovas — uma pessoa importante da
indústria que esconde sua imagem e consegue manter por décadas, atores que se
recusam a dar qualquer depoimento sobre o diretor e que mudam de vida logo
depois, diversos boatos de que ele está envolvido com atividades ilícitas, uma
filha que antes dos 10 anos já tocava piano perfeitamente, eventos estranhos
envolvendo sua família e sua propriedade, etc. — sem cogitar a possibilidade de
haver algum caroço a mais nesse angu.
Essa
é uma característica que dá um ar de estranheza e intensifica o suspense da trama
porque abre diversos caminhos que até certo momento você não estava esperando.
Não vou aqui discutir se o livro lida de fato com o sobrenatural ou não, vou
deixar que você tire (ou não) essa resposta durante a leitura, mas o jeito que
as histórias vão se amarrando faz com que a todo momento você fique na duvida
se existe algo além acontecendo. Por mais que eu tenha duvidado quando comecei
a ler, isso torna o livro ainda mais interessante, porque tudo surge de maneira
orgânica e de certa forma dúbia que não te permite compreender o significado
final daquilo, apenas faz com que fique mais intrigado. A cada porta aberta,
mais portas fechadas surgem diante de você.
Por
fim, outro elemento que gostei bastante, mas que não vou me aprofundar aqui, é
o fato da autora saber manipular muito bem os caminhos que ela quer que o
leitor percorra. Mesmo com uma trama cheia de detalhes e personagens, ela
consegue amarrar tudo. É como se ela tivesse umas três (ou mais) linhas
narrativas independentes e todas elas fizessem sentido com os mesmos
personagens e eventos, com isso, o resultado é bem bacana porque a autora tem
domínio pleno da história e a todo momento brinca com o leitor, jogando-o de um
lado pro outro. Então hora você ta pensando: “é obvio que é isso aqui, vamos
parar de fingir que tem forças sobrenaturais”, ai logo depois “eita porra, tem
dedinho do capeta nisso aí?”. Do mesmo modo elai brinca com outros elementos,
no entanto prefiro deixar em aberto.
Devo pegar a sessão da meia
noite?
Filme
noturno foi uma grata
surpresa para mim, um daqueles livros que você não sabe quase nada sobre mas
que o título e a capa acabam te atraindo. Apesar de seguir a premissa clássica
do gênero, o thriller de Marisha Pessl consegue sua singularidade em
construir uma trama rica em detalhes e personagens complexos que são cercados
de lendas e boatos, contribuindo para aumentar as dúvidas e mistérios sobre os
mesmos.
Para
contribuir ainda mais pro clima de investigação, a autora, ao longo da trama,
coloca diversas imagens que servem como pistas e detalhes que deixam o livro
ainda mais interessante. Então conforme o detetive vai encontrando algumas
pistas, também vamos vê-las através de meios como fotos, notícias e até mesmo
prints do site exclusivo para fãs do Cordova.
Se
você gosta de thrillers policiais, Filme
noturno é um livro que precisa entrar na sua lista, contudo, já adianto que
ele é um livro com mais de 600 páginas e que a autora não tem pressa nenhuma em
entregar respostas. Apesar ser agitado e de sempre ter algo acontecendo, o
desenvolvimento da história é lento. Particularmente, eu gosto dessa pegada
mais lenta do livro, que em que cada pista, por menor que seja, exija certo
trabalho de análise que até possa ser em vão. Entretanto compreendo que tem
gente que gosta de coisas mais ágeis, por isso já deixo avisado.
Deixo
aqui a recomendação do livro e, também, o aviso para que não se aproxime tanto
dos Cordovas — a curiosidade é perigosa.
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