Hoje
o Café
vem aqui para reparar um erro histórico do blogue. Depois de dezenas (ou
seriam centenas?) de resenhas, nós finalmente viemos até aqui para falar sobre
um livro do Stephen King. Sim, nós já falamos de um filme dirigido pelo rei no blog, mas convenhamos, ele
como diretor é um ótimo escritor. Então, para começar a falar um pouco mais
sobre essa pessoa que foi responsável por despertar meu interesse por
literatura e terror, eu pergunto pra vocês, quem são seus ídolos?
“A mão que segurava o rato
fechou-se em um punho. Os olhos de Annie continuavam com a expressão distante e
vazia. Paul queria olhar para o outro lado, mas não podia. Tendões começaram a
se destacar na parte de dentro do braço de Annie. Sangue escorreu da boca do
rato em um fluxo fino e abrupto. Paul ouviu seus ossos quebrando, e então os
dedos grossos de Annie enfiaram-se na carcaça, desaparecendo até a segunda
falange. Sangue espirrou no chão. Os olhos baços da criatura se estufaram.”
Título original: Misery
Autor: Stephen King
Ano: 1987
Editora: Suma de letras
Páginas: 326
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Paul
Sheldon é um famoso escritor que ganhou notoriedade com a série de
livros da personagem Misery, bastante popular entre as mulheres. Depois de
finalizar a franquia em sua ultima publicação, ele passa a se dedicar a uma
nova história bem diferente daquela que o tornou tão famoso. No dia em que
termina seu novo livro, no entanto, ele acaba sofrendo um acidente devido a
forte nevasca enquanto fazia uma viagem de carro. Quando acorda, ele está na
casa da aposentada enfermeira Annie Wilkes, uma grande fã do trabalho de Paul,
principalmente da protagonista Misery.
Na cama
Misery
é um daqueles romances ambientados quase inteiramente em um único cenário e com
poucos personagens, construindo o clima claustrofóbico do inicio ao fim. Assim
como Jogo perigoso, também do King.
A
história foca em Paul Sheldon, um escritor que foi resgatado de um acidente de
carro por uma senhora que diz ser sua fã numero um. Ele acorda três dias depois
do evento na cama, sem conseguir se mexer devido lesões nas pernas. Sendo
medicado diariamente e recebendo tratamento da sua anfitriã, ele acredita estar
em boas mãos apesar de estranhar o fato de não ter sido levado ao hospital.
Entretanto, aos poucos ele vai começar a perceber que a simpática senhora não é
tão inofensiva quanto aparenta.
A
dinâmica da trama vai girar dentro desse contexto, o escritor com as pernas
prejudicadas sem poder sair do quarto, ficando limitado a cama ou a cadeira de
rodas, e uma senhora com fortes características psicopatas que vão se mostrando
cada vez mais agressivas. Algo que torna tudo ainda mais interessante é a
instabilidade emocional de Annie, que hora é totalmente agressiva beirando a
loucura e hora ela está calma acreditando estar ajudando o escritor.
Tudo
começa a piorar ainda mais quando a enfermeira descobre que Paul matou Misery
em seu último romance, sua personagem favorita.
Não mate meus personagens
favoritos
Você
já deve ter percebido que o clima de tensão vai predominar durante todo o
enredo, pois Paul está limitado em seus movimentos, sem poder se locomover
direito dentro do quarto em que está “hospedado”. Para piorar ainda mais a
situação e complicar qualquer tentativa de fuga, o cômodo vive trancado,
ficando totalmente dependente de Annie pra qualquer assunto que aconteça fora
daquele ambiente, como remédios e alimentos.
A
situação começa a ficar ainda mais tensa quando Annie termina de ler o ultimo
livro publicado de Paul, no qual Misery morre. A sua reação diante do escritor
se torna ainda mais instável porque ela não aceita que o escritor tenha matado
sua personagem favorita e que aquilo seja o fim da história. Isso é muito
curioso porque você percebe que naquele conflito cada um acaba assumindo uma
posição. Paul acaba sendo uma espécie de Deus dentro da historia de Misery, ele
pode fazer o que ele quiser, pois foi ele que criou aquilo tudo, então todos os
passos da personagem são uma decisão sua. Por outro lado é como se Annie
tivesse total entendimento de que Paul é o criador, entretanto, como um Deus
não é nada sem seus fieis, ela tivesse total direto e liberdade de prendê-lo
para arrumar as besteiras que ele fez, obrigando o escritor a escrever um novo
livro e corrigir aquele “erro”.
Sendo
assim, um personagem acaba ficando totalmente dependente um do outro, Paul
necessita dos remédios e da que comida que somente Annie pode arrumar pra ele,
e Annie precisa da continuação daquela historia tão importante pra ela, que
somente o escritor tem a capacidade e o direito de continuar, gerando um
relacionamento bem conflituoso que vai causar diversos atritos, em que a cada
momento as personagens precisam assumir o controle da situação e saber usar as
suas armas para barganhar um com o outro.
É
em torno disso que a trama vai se desenvolver, então feito essa apresentação da
história, vamos discutir um pouco sobre tudo aquilo que está implícito nela.
Ídolos & Fãs
Uma
coisa que sempre falo e que provavelmente repetirei na próxima resenha que
fizer é que o King, apesar de ser conhecido como um escritor de terror, vai
muito além dessa simples classificação. Isso porque suas histórias são sobre
pessoas, mais especificamente sobre seus medos, defeitos, obsessões, e até
mesmo qualidades. Claro que vamos ter características sobrenaturais em muitas
obras, mas eles servem de auxilio pra discutir o assunto principal, o homem. E
aqui não é diferente.
Em
Misery não vamos ter elementos
sobrenaturais, mas seria muito simplista acreditar que a história se resume a
uma mulher com tendências psicopatas sequestrando (e torturando) seu escritor
favorito. O que King faz aqui é utilizar da historia de Paul Sheldon para
discutir e criticar, hora com ironia, hora com violência, a nossa relação com
nossos artistas favoritos. Apesar de não ter pesquisado sobre, não acredito que
o fato de Paul ser escritor, assim como King, seja mera coincidência. Como
também acredito que tenha um pouco de King em Paul, e vice-versa.
O
que estou tentando dizer é que de uma maneira exagerada (ou nem tanto),
utilizando do terror e do suspense, Stephen King acaba mostrando a relação de
muitas pessoas, inclusive nós, com os ídolos e pessoas publicas em geral. Assim
como Annie, muitos de nós costumamos ter uma postura possessiva diante de
nossos ídolos, acreditando que eles trabalham exclusivamente pra nós e pra
satisfazer nossos desejos, esquecendo que também são humanos com gostos e
sentimentos particulares, que nem sempre coincidem com os nossos. Então por
mais que a gente não os prenda na cama e os obrigue a escreverem aquilo que
queremos, costumamos assumir uma postura de autoridade em sempre sobrepor o
nosso desejo ao do artista.
É
claro que os ídolos de todo mundo precisam de um público, afinal não podemos
ignorar o fato que é um trabalho, entretanto é um tanto mesquinho esperar que
ele faça apenas aquilo que desejamos, de ficar se repetindo dentro daquela
fórmula que tanto amamos, de impedir que ele cresça e explore os outros
caminhos que ele tenha interesse. Isso fica claro no livro porque no inicio
vemos ele decidido dar um fim a história de Misery para que ele possa seguir um
novo rumo e explorar novas áreas, mas quando a “fã” entra no seu caminho ele
encontra um bloqueio, ficando estagnado, sem poder se mover. E essa metáfora é
muito real no meio artístico, principalmente quando pensamos no mercado
musical, nós somos reticentes a qualquer mudança. Esperamos que os artistas
fiquem sempre naquela bolha em que colocamos e qualquer mudança feita, por mais
que necessária, já chamamos de vendidos ou falamos que perderam a essência. Um
exemplo bem didático é pesquisar qualquer informação sobre os novos álbuns de
bandas como Sepultura ou Metallica, apesar de um elogio ou outro, a grande
maioria dos comentários é falando que eles se perderam, que não prestam, que
nunca vão ser como antes, que vivem do passado, etc. etc. etc. Não estou
dizendo que todo mundo é obrigado a gostar de tudo, mas respeitar que a banda
possa seguir por caminhos diferentes daqueles que a consagraram. Aquele artista
não precisa se aposentar só porque você não gosta mais do seu trabalho.
Se
eu não me engano, o próprio King sofreu, e deve sofrer ainda, com essa questão,
principalmente com A Torre Negra em que os fãs ficaram constantemente
pressionando o autor por uma continuação. É totalmente compreensível a ansiedade
por saber como a serie vai se desenrolar e terminar, mas falta o bom senso de
saber que os artistas possuem uma vida e outros projetos além daquilo, e muitas
vezes simplesmente não estão no clima para escrever aquela história naquele
momento.
Dito
isso, por mais que odiemos Annie durante a leitura, eu creio que o livro acaba
sendo uma crítica ao próprio leitor, mostrando que dentro de todos nós existe
um pouco de Annie, por mais que tentemos negar.
Devo amarrar meu ídolo na
cama?
Claro,
desde que tenha consentimento de ambos os lados. Sequestrar e amarrar pessoas
contra vontade na cama é crime, então vamos ter bom senso.
Misery mesmo fugindo das historias mais comuns do
King com eventos e/ou criaturas sobrenaturais, é claramente uma história dele, desde
a escrita até o desenvolvimento da trama e desfecho. Todo o livro vai construir
um clima de tensão e claustrofobia que vão crescendo com o decorrer do livro,
ficando mais angustiante a cada pagina. O autor consegue equilibrar bem os
momentos de tensão com os de violência, dando um ritmo bem legal pro livro, que
não fica somente naquele suspense em que só cria tensão, mas nada ocorre, como
também não fica só na violência gráfica para causar repulsa no leitor.
Algo
bem interessante é que durante o livro, também vamos ter contato com o livro
sobre a Misery que Paul está escrevendo enquanto está preso naquele quarto.
Então em alguns momentos a narrativa daqueles dois personagens é cortada para
colocar algumas páginas escritas por Paul sobre a personagem favorita de Annie.
Vão ser apenas alguns trechos e não vamos saber muito sobre aquela história,
mas ajuda a localizar o leitor no estilo de literatura que Paul costuma
escrever e também faz um jogo legal entre as duas histórias, porque uma acaba
influenciando na outra.
Então
Misery é um livro recomendado pra todo mundo que goste de uma boa
historia de suspense. Se você já é fã de King é uma daquelas leituras quase
obrigatórias. Também acredito que é uma boa recomendação pra quem quer começar
a ler o autor, mas sempre teve um pouco de receio ou medo dos assuntos
sobrenaturais. Mas vale a pena lembrar que o livro tem algumas cenas violentas
e nem um pouco agradáveis de ler. Ele também tem uma adaptação cinematográfica
que é bem bacana, bastante fiel ao livro, mas o original acaba oferecendo uma
experiência mais completa ao mostrar a perspectiva da vítima diante de toda
aquela situação, fazendo com que a angustia do personagem seja desenvolvida
fisicamente e psicologicamente. Ambos trabalham isso, mas o livro consegue ir
mais a fundo.
Vou
finalizar a resenha por aqui, porque vou ali preparar a comida do meu hóspede,
que por acaso também é meu escritor favorito, que por acaso está imóvel e que
por acaso tá escrevendo um livro só pra mim.
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