Gente da noturna desse meu Brasil,
leitores e leitoras do Café e pessoas simpáticas em geral:
se nesta linda noite de lua cheia, tão
próxima da semana do dia dos namorados, vocês estão aqui e não num motel em
Veneza tomando champagne, curtindo
a lua de mel, comendo frutas
afrodisíacas e fazendo amor, então, assim como eu, vocês perderam.
Sim, gente, vamos
parar com churumelas porque o negócio é esse mesmo, conformem-se e não neguem com aqueles
argumentos de sempre: “estou feliz solteira”, “o importante é ter saúde”,
“tenho Playboy na TV à cabo”. Não,
não. Assumam-se e sigamos
adiante. Apesar dessa tristeza toda, no
entanto, creio que não devemos
perder a esperança. Por sinal, o
filme de hoje é perfeito para mostrar que mesmo com esse nosso “jeito loser de
ser” há sempre várias maneiras de sermos felizes. Cliquem no botão aí embaixo e
experimentem.
Lançamento: 1996 (EUA)
Duração: 107 minutos
Direção: Lloyd Kaufman
Tromeo e Julieta
Fantasiando e reinventando a vida
Observando superficialmente o filme já dá
para notar o óbvio: trata-se de mais um longa da Troma, o que implica na existência de muita violência, sexo, lésbicas,
críticas à religião, piadas ruins, ataques gratuitos aos pudores sociais e momentos
em que Loyd Kaufman decide fazer da cultura americana seu penico particular.
Tudo isso para nosso deleite, claro. Portanto, visitantes trevosos deste blog, creio que ao vê-lo vocês já sabem o que irão encontrar; o filme, no entanto, tem um mérito bem singular que tentarei valorizar na resenha,
a saber, sua coerência temática.
“Tromeu e Juliet” não é uma reunião
cinematográfica dos clichês de sua produtora embalado numa história de amor piegas, mas um filme trash de
excelente qualidade (com toda a licença poética que cabe na sentença “trash de
excelente qualidade”). Me arrisco
a dizer que, se a violência e
certos exageros tivessem sido colocados mais sutilmente na história, a obra seria um ótimo atrativo para o público
não-iniciado no cinema trash, porém, obviamente, pedir ao Lloyd Kaufman que
exagere menos é uma piada tão ruim que nem entraria nem mesmo num filme trash.
Quem sois, Tromeo?
Tromeo, um jovem da família Quio, apaixona-se
por Juliet e... Chega, né? Vocês sabem bem qual é a história!
Shakespeare ou Kaufman?
Imagine um filme cujo primeiro terço já exibe
sexo entre lésbicas, soft porn, dedos decepados, incesto, um homem sendo jogado
de um carro em movimento e outras
coisas igualmente fofas. Sim,
colegas do Café,
sejam bem vindos ao lindo mundo
da Troma — se vocês esperavam por um
filme romântico e bacaninha para conseguir responder aquela prova de literatura
sem ter que encarar as dezenas de páginas da peça clássica, desistam já, a menos, é claro, que você queira
dar ao seu professor um novo ângulo acerca da obra de Shakespeare, um ângulo,
digamos, mais violento e safado...
Os méritos de “Tromeo and Juliet” residem
justamente no fato de que o filme não tenta ser uma adaptação ou uma leitura
fiel da peça inglesa, mas uma obra autônoma de inspiração shakesperiana (a donzela que dá título a obra nada tem
de donzela, além de ser vegetariana e bissexual, só para começar). Há várias
menções e diálogos retirados do texto original, além de excelentes sacadas que
permitem um diálogo entre as duas obras em diversos momentos do filme, por
óbvio; entretanto “Tromeo and Juliet” não está preocupado em ser reverente a
quem o inspira, mas apenas com seus próprios méritos e possibilidades.
Assim nascem as obras primas.
Você está sonhando?

Claro que vou me explicar, mas mantenham algo em
mente enquanto até lá: o universo do filme é onírico, ilusório e exagerado, é
dentro dessa lógica que seus acontecimentos se explicam. Para perceber isso podemos observar,
por exemplo, a linguagem empolada empregada pelos protagonistas: eles não só
falam difícil como também falam inadequadamente para o universo em que estão.
Mesmo sendo dois jovenzinhos lá da década de noventa, comunicam-se como dois
personagens literários renascentistas. Pense naqueles discursos enrolados da TV
senado (“vossa excelência“) ditos em tom amoroso para ter uma
ideia aproximada. Esse elemento
acaba servindo para lembrar ao espectador que estamos assistindo a uma obra de
Shakespeare, mas também para que façamos distinção entre as pessoas “normais”
(se é que alguém é normal naquele filme) adaptadas ao mundo ao ponto de assumir a linguagem dele
como sua e, contraposto a elas, o casal protagonista, desajustado e claramente
destoante do universo ao redor até mesmo na maneira de falar. Tromeo e Juliet,
tanto individualmente quanto como casal, não se encaixam, não tem um lugar no
mundo. Eles são estranhos, deslocados.
Assim, o filme oferece uma possibilidade de
abordagem muito interessante tanto para o mundo quanto para os personagens, uma vez que se o casal é desajustado e incapaz de
se adaptar à loucura do mundo, podemos nos perguntar que mundo é esse que faz
com que queiram (e tenham que) sonhar para conseguir sobreviver e reinventar a
vida. O mundo é tão ruim assim? É
por causa da violência? Da vulgaridade das pessoas? Podemos prosseguir assim e
tentar descobrir o que é que incomoda os protagonistas, observando as pessoas insanas e violentas que os circulam, as maluquices sem sem propósito que acontecem nesse universo e decidir
se os dois tem razão ou não. Creio que esse é o caminho interpretativo mais
fácil e talvez até o mais correto, todavia, não é o único.
Vou propor outro.

Como, todavia, defender esse ponto de vista?
Simples: reparem que os personagens da obra são extremamente exagerados, muitíssimo caricatos, em suma, inverossímeis... Aliás, tão inverossímeis que poderiam
apenas ser uma invenção da perspectiva de Juliet, por exemplo? Creio que essa é
uma posição defensável. Assim, o mundo bizarro que nos é apresentado
não seria exatamente aquilo que ele realmente é, mas apenas o que aparece segundo a ótica dos protagonistas. Tanto numa interpretação quanto na
outra temos que interpretar se a maneira como ambos reagem ao mundo e o
interpretam estaria correta. Por
sinal, se você já leu ou está pretendendo ler Dom Casmurro algum, vai
reconhecer que o livro suscita um problema semelhante: um dos grandes sabores da
literatura do Machado é notar que estamos inevitavelmente cativos da armadilha do bruxo do cosme velho e
que os elementos que nos fascinam são as grades dessa prisão, uma vez que precisamos julgar a obra
só tendo para tal a própria visão de uma das partes interessadas.
O amor (não) é lindo?
É contra
o contexto em que os conflitos
familiares dos Capuletos e dos
Ques se dão que os protagonistas
se rebelam, por isso, vamos
explorar um pouco o universo que circula os personagens.
Digamos que, em resumo, trata-se do seguinte:
Capuletos (Juliet) e Ques (Tromeo), duas famílias bem distantes
de seus melhores momentos, sustentam um ódio recíproco entre si e, para tal,
conservam uma imagem própria tão irreal e carcomida quanto os motivos que
alegam ter para detestar uns aos outros. Ambos dizem para si mesmos que são
melhores que seus adversários,
mas, no fundo, têm consciência que não são quem dizem ser e vivem uma condição igual a de seus adversários: a decadência, a miséria, a falta de propósito e a prática de tudo
o que condenam nas ações do
inimigo.
A partir daí o filme se estrutura em quatro atos
que vão desde a apresentação das famílias até a resolução do conflito entre elas.
Essa questão entre as famílias funciona como um
fio condutor dos acontecimentos do filme, obrigando a trama a não se perder
muito nas loucuras sanguinárias e resolver os problemas que suscita, o que funciona muito bem, aliás, mas importante mesmo é que, além de guiar o rumo dos
acontecimentos, o conflito familiar explica por que faz sentido o amor de
Tromeo e Juliet. Eu sei que há tempos
vários filmes e novelas por aí
fazem o amor parecer uma coisa simples e boba:
duas pessoas trocam olhares, pegam
na mão e pronto, estão
apaixonadas e terão cinco lindos bacuris e
um horizonte perfeito pela frente — só que todo o mundo sabe que a coisa não é bem
assim, mais que isso, todos sabem que amor não é uma coisa prontinha que
experimentamos uma única vez e cabe perfeitamente em nós para o resto da vida. Há muita
insistência, dor, brigas e ajustes no
caminho entre um casal e sua
felicidade, inclusive, muita
gente (talvez até, você leitor) tem por conta disso uma opinião bem pessimista
(quando não cínica) sobre o amor. Convenhamos: o mundo é cruel mesmo e é
compreensível que tanta gente pense assim tão pra baixo.

O romance de Tromeo e Juliet é um retrato muito
bonito dessa situação. Juro. Imagine
que você seja uma dessas pessoas que eu descrevi aí acima (tá, eu sei que é
difícil, mas se esforce um pouco, vai), depois imagine que, logo quando sua
vida está para decair no maior buraco de todos, você dá de cara com o seu sonho
paradinho a sua frente: tu olhas para ele, ele olha para tu — e aí, pessoa, o que fazer? Agarrá-lo e
correr o risco de levá-lo para o buraco junto contigo? Tentar melhorar sua vida antes para só depois agarrar seu sonho,
correndo assim o risco de deixá-lo escapar? Pois é,
não é uma questão simples. Os
protagonistas se deparam com ela todo o tempo e, um dos grandes méritos do
filme, é justamente mostrar que não há uma
resposta pronta, bonitinha, embalada com lacinho
vermelho, para respondê-la.
Tromeo representa
tudo o que faltava na vida tediosa e
resignada de Juliet e vice e
versa, é como se por toda vida ambos tivessem projetado suas expectativas
em pessoas que os decepcionaram, até o momento mágico em que encontram de fato
quem sempre procuraram, mas nunca acreditaram que existissem. “Tromeo and Juliet”
é sobre esse encontro, esse momento em que descobrimos que nossos sonhos são
reais aqui e agora (agora mesmo,
sério!), por isso ele é tão estranho para aqueles
envolvidos e tem ares de impossível, pois permite que cada um seja aquilo que a
vida nunca os permitiu ser.
Numa sequência de diálogos particularmente interessantes, Juliet é resgatada por Tromeo e diz que encontrá-lo é como: “acordar
de um pesadelo para um sonho”, ou seja, a
presença Tromeo é irreal, ao que ele — referindo-se a situação dela — pergunta:
— Por
que não vai embora?
— Porque
essa é a única vida que eu conheço.
— (…)
a violência deixou nossas vidas distorcidas...
Devo ler Shakespeare e voltar a sonhar com a
felicidade?
Com certeza, amigos e amigas do Café, “Tromeo e Juliet”
é um filmaço e, ao mesmo tempo, uma linda apologia do amor e do sonhar .
Como aconteceu também a outras obras que já
passaram por aqui, não foi possível abordar todos os grandes temas que o longa
contém, já que eu prezo pela minha vida pessoal e não vou ficar escrevendo aqui
para vocês até o fim dos (meus) dias. Por
isso, procurem agora mesmo por esse filme soberbo que além de contar com tudo o
que já abordei, ainda toca em temas como abuso sexual, expectativas dos pais
sobre os filhos; critica a pedofilia generalizada na igreja católica, a corrupção da instituições oficiais
e, por fim, mas não menos importante, conta com a participação especial de Lemmy, o
próprio Kauffman e — tchan,
tchan, tchan, tchan — Shakespeare (juro!).
Trailer:
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