sábado, 29 de junho de 2013

Resenha: Tromeo e Juliet


Gente da noturna desse meu Brasil, leitores e leitoras do Café e pessoas simpáticas em geral: se nesta linda noite de lua cheia, tão próxima da semana do dia dos namorados, vocês estão aqui e não num motel em Veneza tomando champagne, curtindo a lua de mel, comendo frutas afrodisíacas e fazendo amor, então, assim como eu, vocês perderam.
Sim, gente, vamos parar com churumelas porque o negócio é esse mesmo, conformem-se e não neguem com aqueles argumentos de sempre: “estou feliz solteira”, “o importante é ter saúde”, “tenho Playboy na TV à cabo”. Não, não. Assumam-se e sigamos adiante. Apesar dessa tristeza toda, no entanto, creio que não devemos perder a esperança. Por sinal, o filme de hoje é perfeito para mostrar que mesmo com esse nosso “jeito loser de ser” há sempre várias maneiras de sermos felizes. Cliquem no botão aí embaixo e experimentem.






Título original: Tromeo and Juliet
Lançamento: 1996 (EUA)
Duração: 107 minutos
Direção: Lloyd Kaufman





Tromeo e Julieta
Fantasiando e reinventando a vida


Observando superficialmente o filme  dá para notar o óbvio: trata-se de mais um longa da Troma, o que implica na existência de muita violência, sexo, lésbicas, críticas à religião, piadas ruins, ataques gratuitos aos pudores sociais e momentos em que Loyd Kaufman decide fazer da cultura americana seu penico particular. Tudo isso para nosso deleite, claro. Portanto, visitantes trevosos deste blog, creio que ao vê-lo vocês já sabem o que irão encontrar; o filme, no entanto, tem um mérito bem singular que tentarei valorizar na resenha, a saber, sua coerência temática.
“Tromeu e Juliet” não é uma reunião cinematográfica dos clichês de sua produtora embalado numa história de amor piegas, mas um filme trash de excelente qualidade (com toda a licença poética que cabe na sentença “trash de excelente qualidade”). Me arrisco a dizer que, se a violência e certos exageros tivessem sido colocados mais sutilmente na história, a obra seria um ótimo atrativo para o público não-iniciado no cinema trash, porém, obviamente, pedir ao Lloyd Kaufman que exagere menos é uma piada tão ruim que nem entraria nem mesmo num filme trash.

Quem sois, Tromeo?


Tromeo, um jovem da família Quio, apaixona-se por Juliet e... Chega, né? Vocês sabem bem qual é a história!

Shakespeare ou Kaufman?

Imagine um filme cujo primeiro terço já exibe sexo entre lésbicas, soft porn, dedos decepados, incesto, um homem sendo jogado de um carro em movimento e outras coisas igualmente fofas. Sim, colegas do Café, sejam bem vindos ao lindo mundo da Troma  se vocês esperavam por um filme romântico e bacaninha para conseguir responder aquela prova de literatura sem ter que encarar as dezenas de páginas da peça clássica, desistam já, a menos, é claro, que você queira dar ao seu professor um novo ângulo acerca da obra de Shakespeare, um ângulo, digamos, mais violento e safado...
Os méritos de “Tromeo and Juliet” residem justamente no fato de que o filme não tenta ser uma adaptação ou uma leitura fiel da peça inglesa, mas uma obra autônoma de inspiração shakesperiana (a donzela que dá título a obra nada tem de donzela, além de ser vegetariana e bissexual, só para começar). Há várias menções e diálogos retirados do texto original, além de excelentes sacadas que permitem um diálogo entre as duas obras em diversos momentos do filme, por óbvio; entretanto “Tromeo and Juliet” não está preocupado em ser reverente a quem o inspira, mas apenas com seus próprios méritos e possibilidades.
Assim nascem as obras primas.

Você está sonhando?

Há uma frase bem famosa do Shakespeare que diz assim: somos feito da mesma matéria que nossos sonhos. Confesso que li bem pouco do poeta (alguns sonetos aleatórios e “Sonhos de uma noite de verão”) e por isso não sou capaz de dizer que significado essa frase tem para ele, no entanto, passando do contexto do renascimento inglês de Shakespeare para aquele da globalização estadunidense cujo filme de Kaufman se situa, creio que não seria exagerado afirmar que essa frase expressa praticamente todo o sentido do filme.
Claro que vou me explicar, mas mantenham algo em mente enquanto até lá: o universo do filme é onírico, ilusório e exagerado, é dentro dessa lógica que seus acontecimentos se explicam. Para perceber isso podemos observar, por exemplo, a linguagem empolada empregada pelos protagonistas: eles não só falam difícil como também falam inadequadamente para o universo em que estão. Mesmo sendo dois jovenzinhos lá da década de noventa, comunicam-se como dois personagens literários renascentistas. Pense naqueles discursos enrolados da TV senado (“vossa excelência“) ditos em tom amoroso para ter uma ideia aproximada. Esse elemento acaba servindo para lembrar ao espectador que estamos assistindo a uma obra de Shakespeare, mas também para que façamos distinção entre as pessoas “normais” (se é que alguém é normal naquele filme) adaptadas ao mundo ao ponto de assumir a linguagem dele como sua e, contraposto a elas, o casal protagonista, desajustado e claramente destoante do universo ao redor até mesmo na maneira de falar. Tromeo e Juliet, tanto individualmente quanto como casal, não se encaixam, não tem um lugar no mundo. Eles são estranhos, deslocados.
Assim, o filme oferece uma possibilidade de abordagem muito interessante tanto para o mundo quanto para os personagens, uma vez que se o casal é desajustado e incapaz de se adaptar à loucura do mundo, podemos nos perguntar que mundo é esse que faz com que queiram (e tenham que) sonhar para conseguir sobreviver e reinventar a vida. O mundo é tão ruim assim? É por causa da violência? Da vulgaridade das pessoas? Podemos prosseguir assim e tentar descobrir o que é que incomoda os protagonistas, observando as pessoas insanas e violentas que os circulam, as maluquices sem sem propósito que acontecem nesse universo e decidir se os dois tem razão ou não. Creio que esse é o caminho interpretativo mais fácil e talvez até o mais correto, todavia, não é o único. Vou propor outro.
Se levarmos seriamente em consideração o aspecto onírico do filme, poderemos nos perguntar qual a verdade desse mundo que nos é mostrado e assim questionar a validade da relação do casal e suas ações. Se na interpretação inicial tomamos Tromeo e Juliet como pessoas que resistem à loucura do mundo sonhando, nessa segunda interpretação podemos nos perguntar se, afinal, eles não estão sonhando a própria loucura do mundo, isto é, se as coisas não são assim tão ruins como aparecem e só soam más, feias e violentas porque é assim que os protagonistas as enxergam e sentem. Nesse ponto de vista poderíamos nos perguntar se o próprio filme que assistimos não está assumindo a visão de mundo de Tromeo e Juliet e nos fazendo concordar com sua maneira de ver as coisas.
Como, todavia, defender esse ponto de vista?
Simples: reparem que os personagens da obra são extremamente exagerados, muitíssimo caricatos, em suma, inverossímeis... Aliás, tão inverossímeis que poderiam apenas ser uma invenção da perspectiva de Juliet, por exemplo? Creio que essa é uma posição defensável. Assim, o mundo bizarro que nos é apresentado não seria exatamente aquilo que ele realmente é, mas apenas o que aparece segundo a ótica dos protagonistas. Tanto numa interpretação quanto na outra temos que interpretar se a maneira como ambos reagem ao mundo e o interpretam estaria correta. Por sinal, se você já leu ou está pretendendo ler Dom Casmurro algum, vai reconhecer que o livro suscita um problema semelhante: um dos grandes sabores da literatura do Machado é notar que estamos inevitavelmente cativos da armadilha do bruxo do cosme velho e que os elementos que nos fascinam são as grades dessa prisão, uma vez que precisamos julgar a obra só tendo para tal a própria visão de uma das partes interessadas.

O amor (não) é lindo?


É contra o contexto em que os conflitos familiares dos Capuletos e dos Ques se dão que os protagonistas se rebelam, por isso, vamos explorar um pouco o universo que circula os personagens.
Digamos que, em resumo, trata-se do seguinte: Capuletos (Juliet) e Ques (Tromeo), duas famílias bem distantes de seus melhores momentos, sustentam um ódio recíproco entre si e, para tal, conservam uma imagem própria tão irreal e carcomida quanto os motivos que alegam ter para detestar uns aos outros. Ambos dizem para si mesmos que são melhores que seus adversários, mas, no fundo, têm consciência que não são quem dizem ser e vivem uma condição igual a de seus adversários: a decadência, a miséria, a falta de propósito e a prática de tudo o que condenam nas ações do inimigo.
A partir daí o filme se estrutura em quatro atos que vão desde a apresentação das famílias até a resolução do conflito entre elas.
Essa questão entre as famílias funciona como um fio condutor dos acontecimentos do filme, obrigando a trama a não se perder muito nas loucuras sanguinárias e resolver os problemas que suscita, o que funciona muito bem, aliás, mas importante mesmo é que, além de guiar o rumo dos acontecimentos, o conflito familiar explica por que faz sentido o amor de Tromeo e Juliet. Eu sei que há tempos vários filmes e novelas por aí fazem o amor parecer uma coisa simples e boba: duas pessoas trocam olhares, pegam na mão e pronto, estão apaixonadas e terão cinco lindos bacuris e um horizonte perfeito pela frente  só que todo o mundo sabe que a coisa não é bem assim, mais que isso, todos sabem que amor não é uma coisa prontinha que experimentamos uma única vez e cabe perfeitamente em nós para o resto da vida. Há muita insistência, dor, brigas e ajustes no caminho entre um casal e sua felicidade, inclusive, muita gente (talvez até, você leitor) tem por conta disso uma opinião bem pessimista (quando não cínica) sobre o amor. Convenhamos: o mundo é cruel mesmo e é compreensível que tanta gente pense assim tão pra baixo.

No geral, todas as pessoas que conheci traziam em seus corações um espacinho para a crença de que, em algum lugar do mundo, por mais distante e custoso que fosse, os seus seus sonhos estavam lá esperando por elas. Hawaii, Universidade, Casamento, Jardim do Éden, independentemente do local, bastaria trabalhar, rezar com fé, jogar na loteria ou coisa assim e, um dia, de repente, como quem tropeça na sorte, viveríamos enfim uma vida feliz. Em todos esses casos, porém, os sonhos das pessoas acabaram encontrando namorados que dirigiam conversíveis, empregos que os levaram para longe, ou acabaram sendo cooptados por uma vida decente que essas pessoas nunca conseguiram proporcionar a si mesmas, tampouco àqueles que queriam que sonhassem consigo. Parafraseando o Oscar Wilde, viver custa tanto que talvez seja melhor apenas existir.
O romance de Tromeo e Juliet é um retrato muito bonito dessa situação. Juro. Imagine que você seja uma dessas pessoas que eu descrevi aí acima (tá, eu sei que é difícil, mas se esforce um pouco, vai), depois imagine que, logo quando sua vida está para decair no maior buraco de todos, você dá de cara com o seu sonho paradinho a sua frente: tu olhas para ele, ele olha para tu  e aí, pessoa, o que fazer? Agarrá-lo e correr o risco de levá-lo para o buraco junto contigo? Tentar melhorar sua vida antes para só depois agarrar seu sonho, correndo assim o risco de deixá-lo escapar? Pois é, não é uma questão simples. Os protagonistas se deparam com ela todo o tempo e, um dos grandes méritos do filme, é justamente mostrar que não  uma resposta pronta, bonitinha, embalada com lacinho vermelho, para respondê-la.
Tromeo representa tudo o que faltava na vida tediosa e resignada de Juliet e vice e versa, é como se por toda vida ambos tivessem projetado suas expectativas em pessoas que os decepcionaram, até o momento mágico em que encontram de fato quem sempre procuraram, mas nunca acreditaram que existissem. “Tromeo and Juliet” é sobre esse encontro, esse momento em que descobrimos que nossos sonhos são reais aqui e agora (agora mesmo, sério!), por isso ele é tão estranho para aqueles envolvidos e tem ares de impossível, pois permite que cada um seja aquilo que a vida nunca os permitiu ser.
Numa sequência de diálogos particularmente interessantes, Juliet é resgatada por Tromeo e diz que encontrá-lo é como: “acordar de um pesadelo para um sonho”, ou seja, a presença Tromeo é irreal, ao que ele  referindo-se a situação dela  pergunta:
 Por que não vai embora?
 Porque essa é a única vida que eu conheço.
 (…) a violência deixou nossas vidas distorcidas...

Devo ler Shakespeare e voltar a sonhar com a felicidade?


Com certeza, amigos e amigas do Café, “Tromeo e Juliet” é um filmaço e, ao mesmo tempo, uma linda apologia do amor e do sonhar .
Como aconteceu também a outras obras que já passaram por aqui, não foi possível abordar todos os grandes temas que o longa contém, já que eu prezo pela minha vida pessoal e não vou ficar escrevendo aqui para vocês até o fim dos (meus) dias. Por isso, procurem agora mesmo por esse filme soberbo que além de contar com tudo o que já abordei, ainda toca em temas como abuso sexual, expectativas dos pais sobre os filhos; critica a pedofilia generalizada na igreja católica, a corrupção da instituições oficiais e, por fim, mas não menos importante, conta com a participação especial de Lemmy, o próprio Kauffman e  tchan, tchan, tchan, tchan  Shakespeare (juro!).

Trailer:

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