quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Resenha: À meia noite levarei sua alma


Péssima noite para vocês, meus queridos, corajosos... Guardem bem essas palavras:
A todos aquele que viram jamais o rosto pálido de um cadáver, a todos aqueles que não acreditam em almas penadas...
Ao passearem neste blog, deve-se passar por lugares escuros... Sozinhos... Mas ainda há tempo! Não leiam essa resenha – vão embora!


*

Tarde demais... Vocês não acreditaram! Querem mostrar uma coragem que não existe? Então fiquem! Sofram! Leiam sobre “À meia noite levarei sua alma”...





Título original: À meia noite levarei sua alma
Lançamento: 1964 (Brasil)
Duração: 81 minutos
Direção: José Mojica Marins





À meia noite levarei sua alma
Niilismo à moda brasileira 

            “À meia noite levarei sua alma” é o melhor filme de terror brasileiro e um clássico nesse gênero. Há todo um repertório histórico do filme, tanto a propósito de sua elaboração quanto ao que se sucedeu depois dele, influenciando outros filmes, gerando uma enorme repercussão e lançando o nome de José Mojica ao patamar da genialidade. O fato é que “À meia noite” era tão inovador para o período, foi construído sobre tantos elementos originais que causou um enorme barulho em torno da figura de seu diretor e das possibilidades que engendrava, com isso, abordá-lo aqui no Café era só uma questão de tempo. Contudo, como é tradição deste espaço, não ficaremos aqui contando todo o histórico do filme, babando as botas do Mojica e enrolando você, leitor, com dados e mais dados que qualquer um pode encontrar no Google. Clique lá e descubra por si. Vamos, pois, a análise do filme e de seus temas, o que já é coisa pra caramba!
Hoje, tanto tempo depois de sua estréia, é interessantíssimo perguntar como um filme de baixo orçamento da década de sessenta pode ser proveitoso. Penso que para tal a resposta deve evitar dois erros bobos: primeiramente, aquele de desprezar os elementos do filme os quais envelheceram de lá pra cá, que eram característicos do período e que ignoraríamos a fim de torná-lo mais universal, menos datado, já que isso seria subtrair o filme do próprio contexto que o torna ainda mais extraordinário; por fim, devemos evitar também tratar a obra como sendo importante meramente por seu papel histórico, já que há nela elementos os quais podem ser apropriados em qualquer tempo.
Evitadas essas coisas poderemos olhar o filme como é: produto de certa época, mas genial ao ponto de transcendê-la. Penso que é assim que ele deve ser encarado.

O que é a vida?

Zé do caixão, um amoral e ateísta dono de uma funerária, deseja perpetuar sua existência gerando um filho com a mulher perfeita. Para isso ele manipulará e ferirá quem se opuser ao seu intento, não temendo nenhuma represália dos vivos ou dos mortos...


O que é a morte?

Basicamente, a trama se concentra no personagem Zé do caixão e na maneira como ele vai forçando a situação a produzir os resultados que deseja, isto é, o de conceber um filho. Digo “forçando a situação” porque é exatamente isso: o protagonista usa todos os meios detidos para fazer com que o mundo gire para o lado que ele quer, seja manipulando seus amigos, decepando pessoas, o que for; o importante é o resultado. Sem Zé o mundo seria um lugar harmônico e ordeiro no qual todos saberiam seus lugares e os ocupariam sem qualquer problema, sem grandes tensões entre as pessoas. Nascer, crescer, casar, comprar um carro, ter filhos, envelhecer e morrer como vegetais, tudo muito evidente. Contudo, sua presença mórbida retira o mundo de seu curso ordinário e faz com que as coisas se tornem atípicas... E sangrentas.
Por sinal, há algo de muito interessante nisso, pois ele não é só o causador da bagunça, aquele que tira a situação de seu rumo esperado, mas também quem, ao não se sujeitar à maneira como as coisas são, revela o ridículo da vida normal e submissa que as pessoas levam, sendo bastante odiado por isso, obviamente. Zé faz com que as pessoas pareçam pequenas e idiotas (e elas são), presas num modo de vida o qual tomam como “natural” e ignoram sua construção por forças externas as quais se sujeitaram sem perceber. De um modo muito engraçado, o personagem faz questão de esfregar esse fato na cara de cada pessoa que cruza o seu caminho, pisando nas crenças religiosas, nos medos e superstições das pessoas para humilhá-las e rir disso. Há para ele todo um prazer, um gozo em zombar das pessoas, em cuspir naquilo que elas tomam como sagrado, no entanto sequer buscam entender por quê. Zé é um lobo com dentes afiados no meio de um bando de ovelhas que estendem o pescoço servilmente a ele. Por sinal, uma das cenas mais famosas do filme é aquela em que ele come feliz um pedaço de carneiro bem diante da janela em que passa uma procissão... Da sexta feira santa. Poesia!
Bom, mas o que tem de interessante na vida de um coveiro ateu que quer engravidar uma mulher? Simples: ele não obedece nenhum tipo de moralidade e cria para si próprio os valores que deseja respeitar. Assim, todo o tempo o personagem está menosprezando todas as coisas que uma pessoa mais ou menos normal usualmente respeita - como a sacralidade da vida, a integridade física daqueles de quem discordam e coisas assim - a fim de conseguir seus objetivos. O que quero dizer é que o personagem Zé do Caixão é incrível, caso eu não tenha sido enfático o suficiente até agora. Ele não tem nenhum freio moral senão os entraves da própria circunstância e faz qualquer coisa para que seus objetivos prevaleçam. Ele quer e pode, logo, fará. Vale muito à pena acompanhar o que acontece.

O que é a existência?
Para os habitantes da cidade Zé é um tipo de coisa ruim ou bicho papão, uma entidade que deve ser temido e não combatido. Ele não professa religião, zomba das pessoas, pode ser violento com quem o contraria, está num patamar financeiro melhor que os outros e tem a coragem e a força que eles jamais terão. É um homem extraordinário, portanto.
Mas o que nos interessa nisso tudo? A resposta é bem simples. Bem dizendo, o filme sugere o tempo todo que o protagonista é uma pessoa destacada, em outras palavras, o mundo em que ele está não se assemelha em nada com ele: o coveiro pensa diferentemente, age diferentemente e está numa situação diversa dos demais. Com efeito, tudo aquilo que orienta as vidas dos outros não tem qualquer importância para ele - família, fé, trabalho, o sonho miserável da casa própria e do carrinho popular... Nada disso apetece Zé. Sua circunstância é marcada por uma absoluta ausência de sentido nas coisas, que nada mais é que um jeito velho de dizer a palavra niilismo.
Esse niilismo tem duas dimensões importantes na trama: primeiramente, a de recusa de qualquer imposição sobre o personagem: ele não aceita que lhe digam o que fazer e o que respeitar; por fim, a da construção - pelo próprio Zé - dos sentidos que ele acatará em vista da recusa daqueles externos, em outros termos, já que não aceita os preceitos criados pelos outros, é ele mesmo quem decide e faz seu caminho. A meu ver, esses dois aspectos ajudam a entender bem o personagem. Ao recusar a religião, a moral, isto é, um sentido externo que lhe oriente, Zé escapa as forças externas as quais determinariam como ele deveria viver sua vida, inclusive, por isso as pessoas estranham tanto sua figura: ele não está contra as concepções delas como quem aceita uma moral diferente embora continue compactuando com os referenciais, na verdade, está simplesmente fora desse jogo vazio. O Deus que supostamente existiria além das representações religiosas e fundamentaria a idéia de bem e de mal absolutos é negado pelo personagem. Zé não pode ser julgado pelos referenciais professados por essas pessoas porque está além do bem e do mal.
Bem, se você pensou em Friedrich Nietzsche e seu bigodinho sexy, então está pegando o jeito da coisa. Seja bem vindo ao estranho mundo de Zé do caixão.

Nietzsche e Mojica

Muito bem, caro leitor, agora mude de posição na cadeira, fique confortável, abra sua mente, deixe a luz do sol bater lá enquanto os morcegos voam para fora. Vamos tratar um pouquinho de filosofia. Voltemos ao bigodudo.

Que relação pode existir entre um filósofo alemão de mil oitocentos e quadrados e um cineasta semi-alfabetizado aqui dos cafundós do mundo? Muita, digo eu (não que minha opinião de porcaria valha qualquer coisa, mas...), e a fim de defender isso farei um breve apontamento da intersecção entre o personagem Zé do caixão e as idéias do pensador alemão. Não quero de nenhum jeito sustentar que Mojica tenha lido ou conhecido a filosofia de Nietzsche para bolar seu filme, contudo apenas apontar que existe muita proximidade nas concepções levantadas por ambos.

Prometo que vou tentar não me estender demasiadamente. Não morra de tédio, leitor! Corra para a luz se precisar!

*

            Uma coisa óbvia: Nietzsche era ateu, porém, esse ateísmo tem algumas conseqüências muito mais interessantes que o esperado graças à maneira como é assumido, explicando melhor, pelo fato de que não meramente uma negação de Deus, mas algo mais complexo e profundo. Detalhemos.
            O filósofo via sob cristianismo a sombra de outro pensador de peso, ninguém menos que vovô Platão, discípulo direto do todo poderoso Sócrates. Na concepção de Platão haveria um mundo transcendente (para além do nosso) o qual conteria a realidade absoluta das coisas, enquanto este aqui seria apenas um tipo de espectro do que haveria por lá, portador apenas do transitório, do transformável. No meio disso seriam valorizadas as qualidades intelectuais e morais do homem as quais estariam associadas a esse mundo externo, sua alma, em detrimento daquelas ligadas a transformação, à sua mortalidade, ao corpo. Assim, o grego compactuaria com certa valorização de uma realidade além-mundo na qual a verdade e as coisas para além de sua decadência e corrupção existiriam eternamente. Bom, mas e o Quico? Você me pergunta. Simples: Nietzsche apontava que o cristianismo era uma forma empobrecida de platonismo, um “platonismo para o povo” para ser exato - uma religião que valorizaria certa instância fora do mundo ao invés de privilegiar nossa circunstância, o aqui e agora, a vida.
Mas voltemos ao cinema brasileiro... Em certos momentos o personagem Zé do caixão expõe uma apologia da vida concreta em contraposição ao ideal - aquilo que existiria para além dela - tal como fez Nietzsche. Sinteticamente é o seguinte: é preciso valorizar nossa circunstância, nossa vida, exaltar nossos corpos ao invés de condená-los, abandonar todo o arcabouço pecaminoso e castrador da religião na lata do lixo. Tanto para o brasileiro quanto para o alemão, os crentes seriam escravizados por algo que estaria além de sua própria existência e a determinaria, assim, seria preciso acabar com essa inversão que coloca a vida a serviço de uma idéia e afirmá-la sumamente, abandonando as criações supersticiosas, hipóteses sobre um pós-mundo assumidas submissamente.
Se há algo a se temer, pensam Zé e Nietzsche, não é Deus, seus pecados, seus santos, seus padres, papas, milagres, virgens, livros sagrados, mas a própria vida, a maneira pela qual a vivemos, pois ela é o nosso único e preciso bem, aquele cujo desperdício é preciso temer.
Finalmente, convém ressaltar que há uma idiossincrasia no personagem fictício que o filósofo de carne e osso não tinha: Zé não estava nem aí para ninguém, nem deseja propor ou analisar qualquer coisa que seja. Tudo o que ele sabe, sabe para si. Dizendo de outra forma, Zé não deseja emancipar ninguém, não é um sábio que anuncia os rumos da humanidade ou aponta os problemas da história; entretanto apenas alguém preocupado com sua própria circunstância, com sua vidinha e seus objetivos. Dane-se o mundo! Dane-se o fato que coveiro talvez pudesse libertar os outros de suas vidas miseráveis! Dane-se tudo já que ele está contente (na verdade, muito contente) em ser alguém destacado e com qualidades únicas num mundo de pobres e tolos. Portanto, podemos separar o personagem do pensador nesse aspecto, ele, ao invés de filosofar, zomba da burrice dos homens, força-os a ir contra a religião, brinca com eles como uma criança que mata formigas com uma lupa - são seres insignificantes, suas a vidas não possuem qualquer significado por si mesmas, todavia apenas aquele que Zé lhe atribuir... E ele não atribui nenhum.
Um contraponto: a continuidade do sangue


“A meia noite levarei sua alma” é o início da busca de Zé pela perpetuação através do sangue. A possibilidade de ter um filho e produzir vida, e mais, produzir uma vida que seja de certo modo a continuidade da sua, é o valor mais estimado pelo protagonista e que motivará suas ações principais. Não vou contar o que acontece, mas digamos que no decorrer do filme esse objetivo seja (violentamente) ameaçado.
A partir daí, quando vê a possibilidade de perder o único sentido que criou para si, a continuação pelo sangue, o personagem desaba e entra num estado de confusão e tormento mental que o fará ter fortes alucinações. Faz-se tentador o ímpeto de mostrar que nesse aspecto a obra pode ser lido tanto de um ponto de vista laico, que encararia as visões de Zé como ilusões criadas por sua mente embotada, quanto também por aquele místico, para o qual Zé estaria de fato sendo vítima do sobrenatural. Contudo, essa leitura é bem óbvia (embora talvez fosse uma novidade no período) e vou evitá-la, pois acho que há algo mais interessante em questão.
Voltemos a um detalhe crucial: qual é mesmo o nome do filme? “A meia noite levarei sua alma” se bem me lembro. Todavia, isso parece esbarrar com o que acontece na trama, já que o protagonista é um ateu niilista que faz as pessoas parecerem baratas tontas, percebe? Não? Vou explicar melhor. Pergunto a você, leitor: se o título é “À meia noite levarei sua alma”, exatamente em que lugar da história está o sobrenatural? Onde está o assustador e fantástico? Em suma, qual é a alma que será levada embora já que, segundo a visão do protagonista, não há fantasmas ou espíritos imortais, sendo nós meramente carcaças de carne e sangue? Não há nada para ser levado para outro mundo porque Zé não tem nenhuma alma... Ou tem?
 Aqui, precisamente, José Mojica dá uma beijoca de língua na boca de Deus e atinge uma rara genialidade. Essa questão da alma funciona como um tipo de contraponto à visão sustentada por Zé do caixão, pois levanta dúvidas relativas à veracidade dela. É o seguinte: e se Deus nosso senhor, o velhinho malvado do antigo testamento de fato existir? E se os espíritos daqueles que foram violentados pelo coveiro voltarem para assombrá-lo? E se o inferno for tudo o que o aguarda após o fim da vida tal como professam as crenças primitivas das quais o personagem busca se distanciar?
A possibilidade de que sua concepção de mundo esteja errada e que aquilo que ele combata seja a própria verdade é o grande tormento de Zé do caixão. Toda a sua vida e (por que não?) existência perderia o sentido se ele estivesse errado. Essa é a alma que Zé teme perder, aquela pode ser roubada pelas conseqüências de seus atos e não um gasparzinho interno, dormindo preguiçoso até o momento da morte. 

Devo ler Nietzsche, virar ateu, niilista, comprar uma capa, um chapéu, uma funerária, deixar que as unhas cresçam e gerar um filho para promover a continuidade do sangue?


Antes de acabarmos com essa bagunça toda tenho que dizer que se você teve paciência de ler até aqui, dou-lhe os parabéns, você deve ser uma daquelas raras pessoas de bom gosto que sabe reconhecer que eu sou um gênio literário ainda desconhecido. Desfrute de minha sabedoria gratuitamente. De nada.
Ademais, tenho que ressaltar uma coisa: esta resenha não abrange nem metade das coisas que seriam possíveis de se abordar. Especificamente, meu plano era realizar ao menos mais duas comparações entre Nietzsche e Zé do caixão, mas eu acabaria matando você de sono, leitor. Então, caso queira saber mais, eu recomendo que veja alguma introdução ao pensamento do Nietzsche.
Finalmente, a resposta é sim, você deve mesmo fazer todas essas coisas - ler Nietzsche, virar ateu... - ou, caso não possa, deve, no mínimo, correr agora mesmo, mas agora mesmo (é sério), já, corra, corra até que as pernas doam, corra até que seus órgãos saiam pela sua boca, vá rápido assistir um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, que é também o melhor filme de terror brasileiro de todos os tempos feito pelo maior diretor brasileiro de todos os tempos, sacou? Se ele não puder ser perpetuado pelo seu sangue, que ao menos seja pelo seu bom gosto.

Trailer:

2 comentários:

  1. Excelente postagem, e vocês têm razão. Nietzche tem lá suas similaridades com o nobre Oaxiac. Além do quê, esse realmente é meu filme favorito entre os dele.

    Grande abraço. 8)

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  2. Mais pra frente eu quero escrever o que faltou colocar aqui. Na verdade, pra resenha não ficar grande demais eu suprimi umas coisas que aprofundam mais essa relação do Zé com o Nietzsche. No futuro pretendo retomá-las com uma postagem extra.

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