Hei! Você aí que está com as sobrancelhas
arqueadas, tentando descobrir se esse filme existe de verdade e se há quem
tenha coragem o bastante para assisti-lo. É, você mesmo! Não, não! Nem pense em
sair agora e fingir que é com outra pessoa, é contigo mesmo!
Fique aqui e clique no link da resenha ou vou
acender uma velinha para que o Petter Baiestorf agarre seu pé à noite.
Quer correr o risco?
Título original: Arrombada: vou mijar na porra do seu túmulo!!!
Lançamento: 2008 (Brasil)
Duração: 39 minutos
Direção: Petter Baiestorf
Arrombada: vou mijar na porra do seu túmulo!!!
Nosso mundo e nosso país, essas latrinas
Apesar de tudo o que pode estar se passando aí
na sua cabecinha, leitor do Café com Tripas, “Arrombada” é um
filme bem singular e interessante,
sobretudo, conforme vemos que, embora o que ocorra nele seja feito para ser rude
e agressivo, colocado a fim de ofender nossa sensibilidade, sua trama possui
elementos bem familiares a nós tupiniquins e fazem com que ele seja bem legal, seja porque já vimos coisas
semelhantes em alguma edição do Jornal Nacional, ou porque se trata da narração
de uma história que poderia muito bem acontecer aqui. Enfim, é nojeira caseira,
coloquemos assim, e que por pior que pareça só pode fazer sentido porque, em algum lugar
de nosso coração canceroso, somos brasileiros.
Quê?
Um grupo de pessoas bem situadas na hierarquia
social brasileira - um padre, um senador e um médico - decidem fazer uma
festinha particular e, para tal, mandam seqüestrar uma jovem que sirva aos seus
jogos sexuais. Luz, câmera, perversão.
“Arrombada” é um filme sem
personagens e uma história relevante por detrás, estando mais para a
metáfora que para o conto, digamos. Todos os seus personagens não possuem nome
e representam tipos sociais - o traficante, a vadia - que tem importância não
por sua individualidade, propriamente, mas pelo tipo de poder que exercem publicamente
e na atitude que tem na vida cotidiana. Em outras palavras, importa menos quem seja cada um como pessoa e
mais a discrepância entre o que eles são, de um lado, na vida pública, e de um outro, na vida privada. Por isso, não se assuste ao ver o filme e notar que
nenhum ator está exatamente representando, porém encenando uma espécie de
quadro da realidade brasileira. Aliás, um quadro muito, muito feio.
Você sabe com quem está falando?
Como já disse antes, os personagens de “Arrombada”
são tipos sociais. Vamos nos deter nesse aspecto por ora, pois ele revela algo
importante acerca da obra: ela não pretende mostrar uma história
particular, um único caso que aconteceu certa vez em algum tempo e lugar
específico, mas algo bem diverso disso. Bem dizendo, ao não nos dar os nomes dos personagens, porém apenas seus
papéis sociais, o filme nos alerta para duas coisas: a primeira é que, como não
há individualidade naquilo que é mostrado, o que determina a dinâmica dos
personagens é a relação de poder entre eles dados os seus papéis; a segunda é que a trama abordará algo
que é comum àqueles que exercem tais funções sociais, ou ao menos comum a funções
como essas. Em outras palavras, pouco importa aquele médico, aquele padre, mas o
que eles representam quando vestem o jaleco e a batina, transformando-se numa
autoridade. Sobre isso, é fácil de reconhecer que em qualquer lugar deste país um uniforme
sempre tem grande impacto: militares, cientistas, aeromoças, todos se valem
desse artifício tanto por motivos específicos de suas funções - para se
proteger, guardar equipamentos, expressar hierarquia - quanto para se
identificar dentro delas como sendo o que são, ou seja, para deixar clara para
todos: sou médico, sou policial, e caso estejas procurando por um, estou aqui. Assim,
o uso do uniforme ajuda a construir uma imagem de respeitabilidade naquele que
o utiliza, fazendo com que se atribua confiança àquela pessoa. Não por acaso,
mesmo os pastores religiosos mais safados (você sabe quais) escolhem usar terno
e gravata como um tipo de uniforme, um símbolo de distinção social que os ajuda
tanto a construir sua imagem de pessoas confiáveis, quanto a se diferenciar de
seu rebanho e se apresentar como um tipo de líder.
No filme isso é frequentemente ressaltado: os
personagens são gente que socialmente detém de grande prestígio, o que os
coloca em posições destacadas em relação às outras. Senador, juiz, médico não são
meramente profissões, mas papéis políticos que podem até mesmo dar a quem os
exerce grandes poderes sobre as pessoas e a lei. No entanto, quando a trama se
debruça sobre isso mostrar isso, procura explorar uma coisa mais específica: o fato de que
por detrás dessa imagem de confiabilidade se escondem pessoas iguais às outras,
quiçá piores, que se valem dessa carapuça bonitinha para obter vantagens, seja
explorando, discriminando, violentando, e coisas mais. Quando essa gente se coloca
numa posição de destaque, acaba crendo que são não só destacados enquanto profissionais,
mas igualmente enquanto pessoas, logo, não precisariam se submeter às mesmas
regras e convenções que as demais. Daí
se explica que no filme (e na vida real?) o juiz não siga a lei, o padre não siga a religião e o médico a ética, afinal, eles são autoridades, pessoas que estão muito acima dos outros para ter que ser tratado como
eles.
Eis uma sugestão bem crua que a obra nos faz: por
detrás de nossas fardas, da religião que alegamos professar e da profissão a
qual exercemos, há uma criatura feia, mesquinha e desejosa, apenas esperando
sua vez de se aproveitar do outro.
Provar o proibido
A riqueza traz um benefício óbvio: ela permite
que o rico tenha acesso àquilo que o pobre não tem. Os publicitários há muito
tempo descobriram isso e passaram a enganar os endinheirados com propagandas lindas
e solenes que ressaltam a singularidade do produto que vendem. Olhe isso aqui, engravatado,
veja como esse artigo é raro e te faz alguém único e especial por adquiri-lo – compre
e seja alguém diferente. É bem comum quem pague pela experiência de se provar
algo incomum, sejam restaurantes exóticos, viagens a lugares a lugares
caríssimos e coisas do gênero (você não pagaria?). Por sinal, uma conclusão
curiosa segue daí: para que haja prazer em adquirir mercadorias raras é preciso
que elas permaneçam pouco acessíveis, melhor dizendo, que os pobres nunca
possam adquiri-las. É bem comum ver por aí os chiliques de pessoas que viram
seus produtos favoritos se tornarem populares – “Perdeu a graça” dizem. Acontece
todo o tempo.
Um pouco disso está expresso em “Arrombada”.
Como os personagens tem poderes e recursos,
buscam acessar prazeres que outras pessoas não poderiam, no entanto, com um
agravante: já que são também uns monstros pervertidos, não vão atrás de qualquer
produto, de qualquer prazer, contudo somente daqueles os quais ressaltem a
diferença que existe entre eles, os poderosos, e os outros, os destituídos. As
relações entre os personagens de autoridade - o padre, o senador e o médico - e
aqueles sem autoridade - o traficante e a vadia - acaba sendo determinada pelo
poder que os primeiros exercem sobre os segundos. As autoridades mandam no
traficante, podendo comprá-lo com favores, e fruem da vadia como se ela fosse
um produto, não tendo qualquer empatia por ela. A ideologia expressa nos personagens acaba sendo a seguinte: aqueles que não tem
poder e recursos são coisas que podem ser negociadas de acordo com a vontade de
quem pode pagar. Consequentemente, leitor do blog, não espere ver um filme em que os personagens
passam uma tarde no shopping, passeiam num lugar chique, fazem comprinhas de artigos
de luxo ou coisas assim para se divertir, mas por uma coisa bem mais sangrenta.
Não deixe esse meu papinho intelectual te iludir, ainda estamos falando de um
filme trash. Repetidamente, “Arrombada” insiste em exibir cenas desagradáveis como
que para forçar nosso senso estético a se acostumar, quiçá fruir, delas. É como
se dissesse: acostume-se porque é o que temos para hoje, esse é o nosso mundo e
se você tem dinheiro, poderá pagar por isso também, mas se não tem... Talvez
alguém pague e compre você.
Não por acaso, o filme termina com a alegre “Singin ’in the rain” rindo de nós... Talvez até possamos enforcar um rei ou prender
um político, pois, de fato, os figurões passam, mas a igreja, o estado e as
instituições permanecem oprimindo para sempre. Outro dia feliz e sanguinário debaixo do céu,
just singin’ in the rain...
Esse mundo horrível...
Em dois mil e sete, o filósofo paulista Renato
Janine Ribeiro publicou um texto a propósito do assassinato do menino
Hélio no qual, ao analisar a contradição entre seus sentimentos (que desejavam a
morte e a tortura dos assassinos) e sua posição intelectual (que deveria
analisar friamente o caso), se viu na condição de hipócrita, alguém que
defenderia coisas diferentes de seus sentimentos pessoais (apenas a punição legal
cabível), ou de monstro, isto é, de quem agiria especialmente por conta de seus
ímpetos de ódio. Como era de se esperar dada a baixa qualidade do debate
público brasileiro, ninguém entendeu nada e o filósofo foi execrado como um tipo
de diabo audacioso por confessar sua agonia.
Independentemente disso, a reflexão do
filósofo é muitíssimo importante e merece ser citada aqui. Ela ressalta a
experiência de viver num país em que o que deveria funcionar não funciona, algo que tem conseqüências abomináveis na vida de todos nós. A cada desvio de verba
para a saúde uma nova pilha de corpos é criada sem necessidade, cada novo policial
violento formado por um sistema ineficiente detona miseravelmente a vida de
alguém que tenha topado com ele, cada futuro professor medíocre afunda o destino de um
monte de alunos, cada prostituta foi um dia alguém com sonhos e esperanças que
caiu numa vida desgraçada por motivos que lhe ultrapassam e ninguém, ninguém
mesmo parece estar preocupado com essas coisas como deveria. Não é casual, portanto, que tanta
gente trate o Brasil com desprezo. Temos que reconhecer que é mesmo difícil
viver neste país, para não falar neste mundo.
Claro que podemos pensar em transformação da
ordem social e propor todas essas coisas que são propostas todos os dias, esperando
causar alguma mudança importante que diminua essas desgraças todas. Devemos
fazer isso. Porém, quem dentre nós viverá para ver um mundo justo? De que
adianta essa justiça que só existe no futuro? E quem já morreu, quem já sofreu,
como fica? Devemos suportar essa condição miserável porque um dia, em tese, o
futuro redimiria essas injustiças?
Tanto o texto do filósofo como “Arrombada”
exploram isso, a experiência do horror, do absurdo que se repete tanto que acabamos
abandonando nossa esperança e passando a aceitar o mal como se fosse natural,
passando a endossar as opiniões de quem se beneficia do derrotismo. As coisas
são assim, o Brasil é assim, o país da impunidade. Bom mesmo é lá nos EUA. Obviamente, tais concepções são inaceitáveis e
só surgem quando a coisa aperta, mas nem por isso deixam de passar pela nossa
cabeça e, pior, pelo nosso coração.
Devo dar um mergulho nesse poço de sangue e detritos do cinema nacional?
Se tudo o que eu disse até aqui
ainda não te convenceu que sim, eu sinceramente não sei mais o que dizer. Minto,
sei sim: o filme tem peitinhos, sacanagem e sangue. Se discussões sobre o
horror cotidiano do Brasil não vão te interessar, talvez uma dose de sexo explícito consiga. Por isso, pelo sim e pelo não você tem ao menos um bom motivo para
acompanhar esse filme sujo, feio e desagradável. Logo, vista sua roupa de banho e
mergulhe nesse mar de sangue e violência antes que as ondas tenham ido embora.
Trailer:
Eu sempre fiquei com um pé atrás em relação aos filmes do Petter Baiestorf, principalmente no caso do Arrombada. A sinopse me faz imaginar um filme que tem que ser tratado com muito cuidado pra não cair na misoginia pura, glamorizando o momento em que uma mulher é violentada para um público sedento por esse tipo de cena. Mas não acuso o filme de nada antes de assistir e admito que esse texto - como todos os textos daqui - me deixou curioso. Tem outros filmes do diretor que vocês também recomendam?
ResponderExcluirOi, Felipe,
ResponderExcluirEntendo bem sua dúvida, já resenhamos alguns filmes aqui que tratam a violência com uma estética que facilmente a incita.
Do Petter, eu vi, além desse, o "Vadias do sexo sangrento", lembro que era parecido com o "Arrombada". Creio que o Victor viu o "Deus, o matador de sementinhas" e não curtiu muito.
De qualquer modo, o cinema dele tem essa coisa de esbanjar vulgaridade, muitas vezes até para a fruição. Acho que uma coisa que você pode fazer é procurar pelos curtas dele na net, eu sei que tem alguns no tube (eu não conheço, mas já vi por lá). Aí você pode ter uma prévia e decidir se vai encarar um filme mais longo e pesado.
Onde eu consigo ver esse filme? É sério isso -' não acho em canto algum
ResponderExcluirNão encontro esse filme, só trailer
ResponderExcluirDá uma olhada no site e no facebook do diretor. Ele sempre vende bem barato uma porrada de filmes dele.
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