sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Charrito, um herói mexicano (Charrito)


            Diga-me, leitor: você já ouviu falar de Charrito, herói do México? Nunca?
Ta, ta, ta, não vou insistir, mas é uma pena, pois pensei que o conhecesse, afinal, ele é um personagem de certo Roberto, um diretor de filmes mexicanos que dizem ser até importante, com alguns personagens famosinhos e tal. Não sei se você já soube de algum. Que tal então Chespirito? Já ouviu falar? E Chaves? E Chaveco? Chapolin? Doutor Chapatin? Já? Isso, isso, isso?
 
 
 
Título original: Charrito
Lançamento: 1984 (México)
Duração: 130 minutos
Direção: Roberto G. Bolaños





Charrito, um herói mexicano
Faces por detrás das faces
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

 
(Traduzir-se, Ferreira Gullar)

            Superficialmente diríamos que “Charrito” é um tipo de episódio longo do “Chapolin” ou coisa semelhante, pois todos os elementos que fizeram a série mexicana famosa estão lá, desde os atores dos personagens clássicos – Chaves, dona Florinda, professor Girafales e dona Clotildes – até o tipo de humor e história calcados na simplicidade e inocência. No geral, ele parece se encerrar nisso, contudo, como é tradição aqui no blog, vamos tentar fugir do âmbito da superfície para vermos o filme mais criticamente, isto é, sem se restringir aquilo que lhe é mais imediato e dá margem para interpretações levianas. Se fizermos isso, creio, encontraremos certos elementos que fazem dele algo mais que apenas um filme bobo.

Com uma historinha bem gostosa de se ver

            Charrito, um ator medíocre, acostumado a representar vilões nos filmes, é contratado para atuar num Western feito numa pequena cidade. Lá ele será maltratado por sua falta de talento, tendo de encontrar um modo de vencer num ambiente em que ninguém crê que ele possa.

Você não vai com a minha cara?

            Charrito é uma pessoa feinha, sem graça, com poucos talentos e as cujas qualidades não são percebidas pelas outras pessoas (mais ou menos como você aí que está lendo essa resenha – eu? Eu não; sou lindo e genial). Consequentemente, o único jeito de fazer com que sua vidinha mais ou menos seja mais que menos é pelo esforço. Porém, ainda que labute e tente realizar bem suas funções, ele é desastrado e um péssimo ator, além disso, está sempre rodeado por quem tem as qualidades que lhe faltam: bons profissionais, pessoas talentosas e outros que não se cansam de zombar e pregar peças nele, como se o punissem por ser quem é.
Bem, nesse momento poderíamos facilmente nos perguntar algo como: “mas quem é Charrito?” e assim chegaríamos ao motivo dos maus tratos identificando algo que causa desgosto nos outros, todavia, essa pergunta depende da resposta de outra: “quem ele é para quem?”. Vou explicar.
Que Charrito é desajeitado já sabemos, entretanto, por que dizemos que ele é isso ou aquilo senão porque o observamos algumas vezes se comportar de maneira a dar entender que é essas coisas? Melhor dizendo, vemos que ele é de certo modo e por isso dizemos que ele é assim ou assado. Entretanto, mesmo que Charrito seja o que dizem dele, não significa que seja apenas isso, não é? Nenhuma pessoa é apenas o que dizem dela. Obviamente, em outros momentos de convivência com o personagem perceberíamos que há muito mais por detrás dessa pessoa que dois ou três adjetivos, certo?
A partir disso surge uma discrepância interessante no filme: enquanto nós telespectadores temos a chance de ver Charrito num período grande de tempo e numa multiplicidade de situações diferentes, os personagens que o execram escolhem se encontrar com ele só nos momentos estritamente necessários (quando estão filmando), pois não querem conviver com ele, uma pessoa supostamente inferior. Por isso, acabam enxergando apenas o indivíduo desastrado e bobo que ele é nas gravações, enquanto nós, que temos a possibilidade de ter com ele período de tempo maior, o vemos de maneira muito mais favorável, como uma pessoa simpática e bondosa. Para os detratores de Charrito - que são quase todos os personagens do filme - seus os defeitos são tudo o que ele é e é por essas características que deve ser tratado e responsabilizado, logo, pouco importa que, além disso, esse indivíduo tenha várias qualidades, pois se não possui aquelas que são prezadas no meio no qual está, elas não valem de nada.
Isso é igualmente interessante de se pensar num âmbito social: aqueles que estão dentro de um padrão socialmente aceitável - os talentosos, bonitos, entre outros - tendem a olhar aqueles que não estão nele como sendo inferiores (é por isso que ninguém dá bola para você, leitor, só para constar). Por sinal, algo perverso se instaura aí: mesmo quem está fora do padrão, mas almeja entrar nele, tende a reproduzir o mesmo tipo de discurso torpe daqueles que estão confortáveis em suas belezas e talentos e se acham melhores que a maioria. No filme, até pessoas menos talentosas que o próprio Charrito se sentem no direito de desprezá-lo, já que ele está feliz em ser o que é: alguém singular.
 
Faces públicas

Uma das coisas mais legais do cinema “de baixo-orçamento e pouco talento” é que ele frequentemente cria coisas que nunca esperaríamos dada a sua origem. “Charrito” tem um bocado disso e acaba acertando no que faz sem olhar. Algumas de suas qualidades aparecem justamente nos lugares em que pouca atenção foi dispensada. Especialmente, isso surge na distribuição dos nomes dos personagens. Bem dizendo, pouquíssimos deles tem nomes e isso nos diz muito sobre o filme e sua mensagem. No geral, são intitulados pelas funções que exercem na vida, sendo o galã, o diretor, a professora e assim por diante, todos eles subjetivamente vazios e construídos a partir uma ou duas características (o caridoso e ingênuo, o ganancioso e egoísta, etc.). São personagens tipo, se quiser. Charrito, obviamente, é uma exceção a isso, o que o torna mais interessante que os demais e promove um contraste interessante, embora involuntário, na obra.
Ocorre o seguinte: cada uma dessas pessoas nunca é algo mais que essa classificação externa (professora, diretor, etc.) que recebe e adota. Durante toda a história, embora os vejamos em várias situações, contentam-se em usar mais ou menos a mesma face pública todo o tempo. Melhor dizendo, enquanto Charrito é o ator desastrado, mas também a pessoa capaz de fazer coisas admiráveis, os outros são apenas aquilo que lhes dá uma identidade social, o que lhes confere legitimidade diante da maioria das pessoas. Nos momentos em que poderiam agir normalmente e nós os veríamos como pessoas mais complexas que meramente uma face pública, falta-lhes outros rostos para exibir. Eles são apenas o delegado, o bandido e assim por diante. Mesmo a professora - que é a mocinha da história - fica durante algum tempo vacilante entre Charrito e o galã do filme, contudo, ao passar um tempo com o bonitão, descobre que ele só tem a face que exibe publicamente (a de galã) e que por detrás delas não há nada; ele sequer recebe um nome já não tem nenhuma individualidade. Em outras palavras, o galã nunca deixa de ser aquilo que aparenta: um rosto, uma superfície cuja sociedade em que está pintou um rosto que ele há de representar como se fosse seu. Diferentemente dele, Charrito não é apenas aquilo que mostra usualmente, o bobo desastrado, mas também alguém valente e prestativo, uma pessoa complexa que, por isso mesmo, merece um nome.

Idealizando um herói

            O mundo de “Charrito, um herói mexicano” tem algo de muito atual: ele é regido pelas aparências, pelo fato de que as pessoas se relacionam umas com as outras baseadas em algumas poucas características que reconhecem umas nas outras. Alguns se aproximam do galã só porque ele é bonito, outros se aproximam da atriz porque ela é famosa, enquanto outros odeiam Charrito, pois ele é uma pessoa banal que não liga para essas coisas, digamos, importantíssimas... Colocando mais claramente, nesse universo a dinâmica dos relacionamentos entre as pessoas ressalta todo o tempo a superficialidade, o fato de que, tanto quem valoriza quanto quem é valorizado, estão reduzindo o outro e a si mesmo a admirador ou detentor umas poucas características.
            Aliás, há um caso que ressalta bem isso.
Dois criminosos costumam assaltar a cidade em que o filme está sendo gravado; eles são conhecidos como os temíveis Irmãos... Brothers (é sério). No entanto, ocorre algo curioso: sempre que ambos vão à cidade cometer suas ilegalidades acabam cruzando com Charrito no exato momento em que ele está interpretando o vilão do filme. Assim, confundindo imaginação com realidade os irmãos acabam crendo que o pobre ator é, na verdade, um grande pistoleiro assassino, o que faz com que o temam e respeite.  Daí surge algo muito interessante: os irmãos brothers enxergam o Charrito idealizado pelos filmes e por isso o temem; eles vêem somente a superfície imaginativa, ideal, criada sobre ele; já as outras pessoas - aquelas que o desgostam - o vêem como o péssimo profissional que é e não lhe reconhecem nenhuma qualidade.
São visões desencontradas, como você pode ver. Enquanto os vilões enxergam em Charrito algo bom oriundo de uma imagem ideal que tomam como verdadeira, os outros vêem seus defeitos verdadeiros e utilizam-se deles para idealizar o ator numa imagem falsa e ruim, a de um mero idiota. Ao fim da história, Charrito, num momento de necessidade, consegue enfrentar os criminosos mesmo quando eles descobrem que ele não é o grande pistoleiro que acreditavam ser, o que faz com que ele se transforme em alguém respeitável tal como era na visão dos criminosos e faça com que a realidade que o representava como um mero desastrado idiota soe agora como uma ilusão, um ideal bobo.

Devo ficar todo atento olhando pra TV?

“Charrito, um herói mexicano” se apóia naquele mesmo tipo de humor que fez “Chaves” tão famoso, contudo, ele é bem mais fraco que a série clássica. Além disso, é um tantinho mais adulto, porém não tanto a ponto de precisar ser assistido por outro público.
            Não vou comentar a trilha sonora, os efeitos, as atuações, porque, sério, se vocês já viram o seriado, sabem exatamente o que irão encontrar. Não é um filme que mereça uma indicação do Café (não que isso valha alguma coisa também), contudo, também não é nenhuma tragédia da arte mexicana que deva ficar oculta nos calabouços sombrios do cinema latino-americano.
Se formos olhá-lo por sua proposta, por suas idéias, ele é completamente dispensável, todavia, como entretenimento e rememoração da infância será bastante divertido.
Contanto que você seja um fã ardoroso ou simplesmente ache que as cento e cinqüenta horas semanais de Chaves que o Silvio Santos nos faz ver não são suficientes, talvez queira assistir "Charrito". Porém, do contrário, uma tarde acompanhando os velhos capítulos do seriado genial do Bolanõs pode ter o mesmo efeito que o filme, isto é, nos lembrar como é ser criança e sentir felicidade.

Trailer:

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