sábado, 10 de novembro de 2012

Resenha: As uvas da morte (Les raisins de la mort)


            Você gosta de beber? Vodka de batata, rum, vinho de jaboticaba, pinga de alambique e coisas tais já passaram pelo seu buchinho sexy?
            O que acha, porém, leitor bebum, de experimentar uma coisa mais forte? Uma pequena dose apenas. Não, não é de fumar. Não é para pôr no nariz também. É um vinho, um vinho muito especial. Na verdade, as uvas foram selecionadas e colhidas com amor. Tudo realizado num processo tradicional e confiável. Elas foram refinadas com... Bom, você não vai querer saber. Insiste? Quer mesmo descobrir o que tem nelas? Bem... É um aditivo.
Uma coisinha muito especial.





Título original: Les raisins de la mort
Lançamento: 1978 (França)
Duração: 90 minutos
Direção: Jean Rollin



 
As uvas da morte
Bondade, uvas e agrotóxicos


Descobri esse filme por puro acaso, sendo atraído pelo título magnífico que ele possui. Não poderia ter sido mais feliz. “As uvas da morte” é uma obra com a qualidade que o Café com Tripas costuma prezar, além de ter a peculiaridade de ser francês e abordar um tema interessante. No mais, saiba logo, leitor: ele é ruim que dói, não faz o menor sentido e jamais te fará uma pessoa melhor. Motivos mais que suficientes para você assisti-lo sem hesitar.
Pera, uva, maçã, salada mista...
Elisabeth viaja pelo interior da França em busca de um pequeno vilarejo onde há de se encontrar com um conhecido. Porém, no meio do trajeto é atacada por um homem doente e enlouquecido. Fugindo, ela faz descobertas terríveis sobre uma contaminação...
Agrotóxicos
A história de “As uvas da morte” se concentra na tentativa de sobrevivência da protagonista a situação adversa na qual está. Contaminados homicidas querem matá-la e ela pretende viver para ver o dia de amanha. E é só. Porém, um aspecto que é mencionado, mas não explorado na trama, é a causa dessa bagunça toda.
Trata-se de um agrotóxico usado numa vinícola cuja ação contamina as pessoas que trabalham nela, fazendo deles uns homicidas loucos e decompostos, quase zumbis. E o que tem de interessante nisso? Bem, rigorosamente, nada. Contudo, se pensarmos nessa tragédia como consequência de um problema e não como um princípio de problema, encontraremos alguns elementos bacanas nela para fins de análise. E qual seria esse problema? Ele é rapidamente mencionado quando um personagem alega que o agrotóxico foi produzido por conta das altas taxas as quais são submetidos os agricultores. Dizendo claramente, os impostos são altos, a coisa tá preta, logo, vamos bolar um incremento que vai ajudar nossa vinícola a produzir mais e melhor.
Por falta de auxílio e alto custo de produção (alô, alô, globalização) os agricultores produziram um catalisador perigosíssimo para conseguir sobreviver e competir. Ou inventavam algo novo ou seriam engolidos na luta. Nem é preciso dizer o quanto isso é emblemático e ocorre no mundo todo. Eis algo simples de entender: os poderosos cresceram tanto que passaram a atrapalhar os pequeninos e fracos. Em vista disso, alguns governos tentam investir nos pequenos fazendo com que eles se desenvolvam o suficiente para enfrentar ou, minimamente, sobreviver aos mais fortes. No entanto, como “As uvas da morte” bem retrata, nem sempre isso funciona, nem sempre isso é feito devidamente e, muita vez, isso sequer é feito. Assim, os fracos pouco podem fazer se não quiserem ser estraçalhados.
Uma das saídas óbvias é o crime. As consequências dele, contudo, vão desde uma opressão ainda maior sobre os pequenos (cadeia, coação) até as tragédias que o crime pode produzir, como mortes ou... Uma contaminação zumbi homicida. Na dúvida, a culpa é do governo.
Os outros
Não vejo como abordar esse filme sem citar o final de “Um bonde chamado desejo”, peça teatral de Tenesse Williams. É o seguinte: na última cena, a protagonista, ao perceber que enlouquece, diz ao homem que vai interná-la: “Seja o senhor quem for, eu sempre dependi da bondade de estranhos”. É a consumação da tragédia, a entrega absoluta da vida aos caprichos do destino. Desisto, leve-me com você, pois por mim mesmo eu não consegui.
Como você deve ter notado, leitor sensível, é uma peça triste pra caramba.
Mas o que nos interessa para o filme de hoje é essa frase aí de cima, o depender da bondade de estranhos. “As uvas da morte” retrata uma personagem que durante todo o percurso do filme, estando num ambiente adverso, busca encontrar alguém que a ajuda a sobreviver a ele. Apesar disso, repetidamente se depara com aqueles mais perdidos que ela, ou com quem pretende se aproveitar de sua nobreza.
Mais ou menos como todo o mundo nesse longo percurso que é a vida, só que com zumbis homicidas no meio.
Não por acaso, o verbo que mais se repete no decorrer do filme é o “aider” ou “ajudar”. O interessante disso consiste em certa contradição que a personagem vivencia: em vários momentos ela tem que se ajudar, mas também auxiliar alguém que está pior que ela mesma, contudo, nessas horas Elisabeth falha - mais ainda, ela sequer sabe o que fazer e acaba estragando tudo. É como se as situações desesperadoras criassem uma camada em torno das pessoas que atinge a qual dificilmente pode ser quebrada, que se torna mais espessa com o tempo e impregna todas as relações que essas pessoas mantêm. Por isso, elas acabam ficando um tanto à parte dos outros humanos não desesperados, pois vivem em sofrimento e espalham-no todo o tempo, sendo que, quando tentam manter alguma relação com outros - seja tentando ir além da dor que paira em torno de si, ou deixando que alguém penetre através dela - falham. O sofrer seria um tipo de prisão que atormenta e brutaliza quem nele vive, tornando seu prisioneiro incapaz de se relacionar sem reproduzir sobre os outros o mesmo que sente. Por isso, Elisabeth, que só enxerga dor, só reproduz dor e não pode ajudar ninguém, nem mesmo uma pessoa que sofre como ela.
Com efeito, só haveria duas saídas para alguém imerso numa adversidade da qual não consegue se desvencilhar: a primeira seria não sair dela, abraçar a dor e ficar assim; já a segunda seria esperar que alguém que não esteja imerso na mesma adversidade que você o ajude, em suma, entregar-se à bondade dos estranhos. Por sinal, durante a maior parte do filme, é essa a escolha da protagonista.
Sementinha de personagem
Um aspecto interessante de “As uvas da morte” é que a personagem nunca é diminuída pelo diretor a condição de apenas uma vítima de uma situação ruim. Mesmo estando na pior, Elisabeth continua sendo responsabilizada e pensando sobre a consequência de suas ações. Em poucos momentos suas ações se tornam mero reflexo do desespero que vive e ela prossegue consciente e responsável pelo que faz, tomando decisões boas e más que interferem no seu destino e no de outros.
Bem dizendo, esse é um grande trunfo da trama.
Pensando noutra possibilidade, um filme pior lançaria para o telespectador uma visão mais simplista do tipo: “os fins justificam os meios”, defendendo que tudo o que ela fizesse para sobreviver nesse inferno seria válido e desculpável, subtraindo da personagem toda a responsabilidade por seus atos. Quem já viu muitos filmes de zumbis sabe que isso acontece todo o tempo nesse gênero; certa apologia de que na necessidade tudo vale. Se eu precisar matar meus pais, meu cão, roubar, ferir, ou o que for, estarei desculpado porque dada essa situação desesperadora, minhas ações só podem ser igualmente desesperadoras.
            Uma demonstração disso no filme é o fato de que a protagonista não tem nome até quase o fim da história, quando começa a fazer coisas que nem numa situação de terror nós aprovaríamos. É como se conforme ela agisse como qualquer um, não precisasse de um nome, no entanto, a partir do momento cuja sua liberdade é usada para realizar algo incomum, que não se esperaria de qualquer um, passasse a merecer ser tratada por um nome particular. Quando ela faz algo singular se torna alguém singular; aí ela vira Elisabeth. Esse processo de sair das ações comuns e repetitivas, iguais a de todos, até aquelas singulares, não praticadas por todos, é como um tipo de evolução da personagem rumo à criação de sua própria personalidade. É o processo de se tornar consciente do custo de suas ações.
Quanto mais Elisabeth, menos alienada, mais convicta do preço de sua liberdade e ações. Ao fim da história, nossa protagonista é uma personagem completa, mas também
arrasada pelo peso das ações que a constituíram.
Devo provar dessa fruta?


            “As uvas da morte” é uma obra bem genérica, sem grandes virtudes que a diferencie daquela montanha de filmes pós Romero. Ele não merece um lugarzinho no céu, porém, não é também um filme ofensivo ou tão ruim que dê vontade de enterrá-lo no quintal. Trata-se de um produto de sua década, com tudo o que ela tinha de bom e ruim, sem grandes destaques. É um filme que está no meio, o lugar da multidão e dos medíocres.
Com isso, se você quiser experimentar esse vinho, ó sedento leitor, saiba que não irá nem se deleitar, nem ficar bêbado.
Nem vale uma recomendação, nem um linchamento. No máximo, um brinde.
Tim-tim.
Trailer:

2 comentários:

  1. Independente da ressaca (que, como se diz, é sempre pior quando se bebe vinho) a resenha de vocês foi tão boa que não posso deixar de querer assistir. Grande abraço. 8)

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  2. Opa, valeu pensador. Sabia que você ia gostar de ver o filme!

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