Você gosta de beber? Vodka de
batata, rum, vinho de jaboticaba, pinga de alambique e coisas tais já passaram
pelo seu buchinho sexy?
O que acha, porém, leitor bebum, de
experimentar uma coisa mais forte? Uma pequena dose apenas. Não, não é de
fumar. Não é para pôr no nariz também. É um vinho, um vinho muito especial. Na verdade, as uvas foram selecionadas e
colhidas com amor. Tudo realizado num processo tradicional e confiável. Elas foram
refinadas com... Bom, você não vai querer saber. Insiste? Quer mesmo descobrir
o que tem nelas? Bem... É um aditivo.
Uma coisinha muito especial.
Título original: Les raisins de la mort
Lançamento: 1978 (França)
Duração: 90 minutos
Direção: Jean Rollin
As uvas da morte
Descobri esse filme por puro acaso, sendo
atraído pelo título magnífico que ele possui. Não poderia ter sido mais feliz.
“As uvas da morte” é uma obra com a qualidade que o Café com Tripas costuma
prezar, além de ter a peculiaridade de ser francês e abordar um tema interessante. No
mais, saiba logo, leitor: ele é ruim que dói, não faz o menor sentido e jamais
te fará uma pessoa melhor. Motivos mais que suficientes para você assisti-lo
sem hesitar.
Pera, uva, maçã, salada
mista...
Elisabeth viaja pelo interior da França
em busca de um pequeno vilarejo onde há de se encontrar com um conhecido.
Porém, no meio do trajeto é atacada por um homem doente e enlouquecido.
Fugindo, ela faz descobertas terríveis sobre uma contaminação...
Agrotóxicos
A história de “As uvas da morte” se
concentra na tentativa de sobrevivência da protagonista a situação adversa na
qual está. Contaminados homicidas querem matá-la e ela pretende viver para ver
o dia de amanha. E é só. Porém, um aspecto que é mencionado, mas não explorado na
trama, é a causa dessa bagunça toda.
Trata-se de um agrotóxico usado numa
vinícola cuja ação contamina as pessoas que trabalham nela, fazendo deles uns homicidas
loucos e decompostos, quase zumbis. E o que tem de interessante nisso? Bem,
rigorosamente, nada. Contudo, se pensarmos nessa tragédia como consequência de
um problema e não como um princípio de problema, encontraremos alguns elementos
bacanas nela para fins de análise. E qual seria esse problema? Ele é
rapidamente mencionado quando um personagem alega que o agrotóxico foi
produzido por conta das altas taxas as quais são submetidos os agricultores.
Dizendo claramente, os impostos são altos, a coisa tá preta, logo, vamos bolar
um incremento que vai ajudar nossa vinícola a produzir mais e melhor.
Por falta de auxílio e alto custo de
produção (alô, alô, globalização) os agricultores produziram um catalisador perigosíssimo
para conseguir sobreviver e competir. Ou inventavam algo novo ou seriam
engolidos na luta. Nem é preciso dizer o quanto isso é emblemático e ocorre
no mundo todo. Eis algo simples de entender: os poderosos cresceram tanto que
passaram a atrapalhar os pequeninos e fracos. Em vista disso, alguns governos
tentam investir nos pequenos fazendo com que eles se desenvolvam o suficiente para
enfrentar ou, minimamente, sobreviver aos mais fortes. No entanto, como “As
uvas da morte” bem retrata, nem sempre isso funciona, nem sempre isso é feito
devidamente e, muita vez, isso sequer é feito. Assim, os fracos pouco podem fazer se
não quiserem ser estraçalhados.
Uma das saídas óbvias é o crime. As consequências
dele, contudo, vão desde uma opressão ainda maior sobre os pequenos
(cadeia, coação) até as tragédias que o crime pode produzir, como mortes ou... Uma
contaminação zumbi homicida. Na dúvida, a culpa é do governo.
Os outros
Não vejo como abordar esse filme sem
citar o final de “Um bonde chamado desejo”, peça teatral de Tenesse Williams. É o seguinte: na
última cena, a protagonista, ao perceber que enlouquece, diz ao homem que vai
interná-la: “Seja o senhor quem for, eu sempre dependi da bondade de
estranhos”. É a consumação da tragédia, a entrega absoluta da vida aos
caprichos do destino. Desisto, leve-me com você, pois por mim mesmo eu não
consegui.
Como você deve ter notado, leitor
sensível, é uma peça triste pra caramba.
Mas o que nos interessa para o filme de
hoje é essa frase aí de cima, o depender da bondade de estranhos. “As uvas da
morte” retrata uma personagem que durante todo o percurso do filme, estando num
ambiente adverso, busca encontrar alguém que a ajuda a sobreviver a ele. Apesar
disso, repetidamente se depara com aqueles mais perdidos que ela, ou com quem
pretende se aproveitar de sua nobreza.
Mais ou menos como todo o mundo nesse
longo percurso que é a vida, só que com zumbis homicidas no meio.
Não por acaso, o verbo que mais se repete
no decorrer do filme é o “aider” ou “ajudar”. O interessante disso consiste em certa
contradição que a personagem vivencia: em vários momentos ela tem que se
ajudar, mas também auxiliar alguém que está pior que ela mesma, contudo, nessas
horas Elisabeth falha - mais ainda, ela sequer sabe o que fazer e acaba estragando
tudo. É como se as situações desesperadoras criassem uma camada em torno das
pessoas que atinge a qual dificilmente pode ser quebrada, que se torna mais
espessa com o tempo e impregna todas as relações que essas pessoas mantêm. Por
isso, elas acabam ficando um tanto à parte dos outros humanos não desesperados,
pois vivem em sofrimento e espalham-no todo o tempo, sendo que, quando tentam
manter alguma relação com outros - seja tentando ir além da dor que paira em
torno de si, ou deixando que alguém penetre através dela - falham. O sofrer
seria um tipo de prisão que atormenta e brutaliza quem nele vive, tornando seu
prisioneiro incapaz de se relacionar sem reproduzir sobre os outros o mesmo que
sente. Por isso, Elisabeth, que só enxerga dor, só reproduz dor e não pode
ajudar ninguém, nem mesmo uma pessoa que sofre como ela.
Com efeito, só haveria duas saídas para
alguém imerso numa adversidade da qual não consegue se desvencilhar: a primeira
seria não sair dela, abraçar a dor e ficar assim; já a segunda seria esperar
que alguém que não esteja imerso na mesma adversidade que você o ajude, em
suma, entregar-se à bondade dos estranhos. Por sinal, durante a maior parte do
filme, é essa a escolha da protagonista.
Sementinha de personagem
Um aspecto interessante de “As uvas da
morte” é que a personagem nunca é diminuída pelo diretor a condição de apenas uma
vítima de uma situação ruim. Mesmo estando na pior, Elisabeth continua sendo
responsabilizada e pensando sobre a consequência de suas ações. Em poucos
momentos suas ações se tornam mero reflexo do desespero que vive e ela prossegue
consciente e responsável pelo que faz, tomando decisões boas e más que
interferem no seu destino e no de outros.
Bem dizendo, esse é um grande trunfo da
trama.
Pensando noutra possibilidade, um filme
pior lançaria para o telespectador uma visão mais simplista do tipo: “os fins
justificam os meios”, defendendo que tudo o que ela fizesse para sobreviver
nesse inferno seria válido e desculpável, subtraindo da personagem toda a responsabilidade
por seus atos. Quem já viu muitos filmes de zumbis sabe que isso acontece todo
o tempo nesse gênero; certa apologia de que na necessidade tudo vale. Se eu
precisar matar meus pais, meu cão, roubar, ferir, ou o que for, estarei
desculpado porque dada essa situação desesperadora, minhas ações só podem ser
igualmente desesperadoras.
Uma demonstração disso no filme é o
fato de que a protagonista não tem nome até quase o fim da história, quando
começa a fazer coisas que nem numa situação de terror nós aprovaríamos. É como
se conforme ela agisse como qualquer um, não precisasse de um nome, no entanto,
a partir do momento cuja sua liberdade é usada para realizar algo incomum, que
não se esperaria de qualquer um, passasse a merecer ser tratada por um nome
particular. Quando ela faz algo singular se torna alguém singular; aí ela vira
Elisabeth. Esse processo de sair das ações comuns e repetitivas, iguais a de
todos, até aquelas singulares, não praticadas por todos, é como um tipo de
evolução da personagem rumo à criação de sua própria personalidade. É o
processo de se tornar consciente do custo de suas ações.
Quanto mais Elisabeth, menos alienada,
mais convicta do preço de sua liberdade e ações. Ao fim da história, nossa
protagonista é uma personagem completa, mas também
arrasada pelo peso das ações que a constituíram.
arrasada pelo peso das ações que a constituíram.
Devo provar dessa fruta?
“As uvas da morte” é uma obra bem
genérica, sem grandes virtudes que a diferencie daquela montanha de filmes pós
Romero. Ele não merece um lugarzinho no céu, porém, não é também um filme
ofensivo ou tão ruim que dê vontade de enterrá-lo no quintal. Trata-se de um
produto de sua década, com tudo o que ela tinha de bom e ruim, sem grandes
destaques. É um filme que está no meio, o lugar da multidão e dos medíocres.
Com isso, se você quiser experimentar
esse vinho, ó sedento leitor, saiba que não irá nem se deleitar, nem ficar
bêbado.
Nem vale uma recomendação, nem um
linchamento. No máximo, um brinde.
Tim-tim.
Trailer:
Independente da ressaca (que, como se diz, é sempre pior quando se bebe vinho) a resenha de vocês foi tão boa que não posso deixar de querer assistir. Grande abraço. 8)
ResponderExcluirOpa, valeu pensador. Sabia que você ia gostar de ver o filme!
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