Então você veio até aqui achando que
íamos tratar de “Mein Kampf” ou “Cinquenta tons de cinza” não é? Pois pode esquecer.
O Café com Tripas
definitivamente está fora do senso comum. Assim, se quiser navegar neste blog,
não vai encontrar amenidades, história oficial, filmes família, artistas da
moda, coisas mega conhecidas e cultuadas em cartazes, teses de mestrado e
estampas nas camisetas. Bem do oposto. Nosso compromisso é com os marginais,
com os desumanos, os desertores, os fracassados e malditos. Como diria aquele
personagem do Orwell: “Nós somos os mortos”.
E por todos esses motivos iniciamos hoje
uma série de postagens em que abordaremos, na
forma de pequenos resumos, diversas obras literárias que causaram imensas polêmicas,
mas que por vários motivos permanecem pouco conhecidas.
No entanto, antes de começarmos é preciso dizer algo: esta série não tem nenhuma relação com a programação habitual do
blog, sendo, na verdade, um tipo de pausa para o Café entre as refeições.
As próximas sairão esporadicamente e sem compromisso.
Dito isso, vamos às controvérsias!
O bom crioulo - Adolfo
Caminha
Adolfo caminha é um tipo de MacGyver dos
bafafás literários. Ele escreveu sobre um monte de coisas que as pessoas não
queriam nem saber que existiam, quanto mais ler sobre elas num romance. Emancipação
feminina, sexo fora do casamento, abuso paternal e assuntos que são tabus ainda
hoje foram abordados (com vívidos detalhes) nos livros desse escritor
fantástico e pouco conhecido. Graças a essa ousadia, ele foi posto no lugar
característico das pessoas incríveis: o ostracismo.
De sua vida poderíamos dizer que fugiu
com a esposa de um militar, que se meteu em um monte de conflitos por ter
opiniões contrárias à moral vigente, enfim, uma série de coisas mais que, embora
interessantes, não captam seu tamanho, nem a injustiça que há em fazê-lo um
rodapé na história da literatura brasileira e mundial.
“O bom crioulo”, o livro marcado aí no
título, foi publicado em 1895 e é nada mais que o primeiro romance homossexual de todo o ocidente, o que explica por
que ninguém fala dele e, mais, por que todos deveriam falar dele. Essa é a obra
mais polêmica do autor e conta a história de Amaro, um escravo fugido que entra
para a Marinha para obter a liberdade; lá ele conhece Aleixo, um adolescente marinheiro iniciante, por quem se apaixona perdidamente.
Como se não bastasse ter a pachorra de
falar dos gays num período em que esse comportamento era, até pouco tempo, considerado
criminoso (o Brasil deixa de criminalizar a homossexualidade em 1830), Caminha
ainda publicou um romance em que, menos de dez anos depois da libertação dos
escravos, tem como protagonista um negro que se apaixona por um branquinho
mirrado, loiro e de olhos azuis, representante do gene europeu “superior” que
se colocava e ainda se coloca como padrão de beleza e cultura. Claro, isso tudo dentro da Marinha, lugar que deveria primar por sua "hombridade". Heresia
e subversão as toneladas.
Por isso, fica aqui a sugestão do Café:
para que antes que você, leitor, num momento de tédio, procure por algum autor
maldito “cool” como Rimbaud, Blake ou qualquer europeu consagrado, deixe essa
adulação estrangeira para mais tarde e vá atrás de Adolfo Caminha. Descubra um
verdadeiro maldito, daqueles que nem em sua própria terra, nem em terra nenhuma será tido como boa companhia.
Onde encontrar?
Embora seja pouco discutido, “O bom crioulo” tem uma importância histórica inegável e é de domínio público, o que faz com que, apesar dos pesares, tenha várias reedições ao longo do tempo. Logo, não é difícil encontrar em
boas livrarias e sebos alguma edição desse livro.
Trecho:
“Sua amizade ao grumete
nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem
precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram
pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas
naturezas de sexo contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua,
essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as
espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo
irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca
experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão
esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o
pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a,
escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã.
Chamou-o a si, com a voz cheia de brandura,
e quis saber como ele se chamava.
Eu me chamo Aleixo, disse o grumete
baixando o olhar, muito calouro.
Coitadinho, chama-se Aleixo, tornou
Bom-Crioulo.
E imediatamente, sem tirar a vista de cima
do pequeno, com a mesma voz branda e carinhosa:
Pois olhe: eu me chamo Bom-Crioulo, não se
esqueça. Quando alguém o provocar, lhe fizer qualquer cousa, estou aqui eu,
para o defender, ouviu?
Sim senhor, fez o marinheirito levantando o
olhar com uma expressão de agradecimento.
Não tenha vergonha, não: Bom-Crioulo, gajeiro
da proa. É só me chamar.
Sim senhor...”
Memória dos pensamentos e
dos sentimentos de Jean Meslier - Jean Meslier
Resumidamente, Jean Meslier foi um
filósofo francês e racionalista do século 17 que fez críticas contundentes a
igreja católica. Porém, até aí não há nada de excepcional, afinal Sade,
Voltaire e tantos outros criticaram o catolicismo com veemência. A história da
igreja está repleta de ações tenebrosas que permitem que praticamente qualquer
um bata nela um pouquinho; nem é preciso ser filósofo para isso.
Então o que há de especial na crítica de
Meslier? Bem, duas coisas.
Primeiramente, o período em que ela
ocorre, isto é, o século dezessete. Nele a inquisição estava plenamente
aquecida - hohoho - distribuindo afeto e calor entre os adversários do
catolicismo. Sobrou até mesmo para os próprios católicos que tinham a ousadia
de chegar a conclusões diferentes da igreja, como Galileu e Descartes. Por isso,
escrever um livro que atacava o catolicismo diretamente, e mais, que fazia isso
com uma linguagem ácida e direta (ele dizia que Jesus era um charlatão
ignorante, entre outras coisas igualmente gentis) era um feito ousado para o
período.
Por fim, Meslier, além de ateu, era
padre. O quê? Vou repetir, ó leitor desatento: Meslier, além de ateu, era
padre. Mais uma vez: além de ateu, era padre. Ateu, ateu, padre, padre.
O clérigo fazia missas durante o dia e à
noite escrevia em seu diário-testamento, lamentando o fato de que tinha que
enganar o povo ignorante contando mentiras a eles a fim de conseguir sua
submissão. Quando morreu, seus escritos foram encontrados e repassados em
grande parte da Europa, causando um alvoroço danado.
Então por que ele virou padre? Simples:
porque essa era uma das profissões mais seguras daquela sociedade. Padres têm
onde morar, padres tem o que comer e possuem uma forte autoridade por detrás de
si que os protege. Por outro lado, os camponeses de quem Meslier tinha pena e
tentava ajudar eram uns coitados: morriam de peste, passavam fome e, mais
ainda, tinham que ouvir que eram pecadores e precisavam se arrepender de seus
pecados ou iriam para o inferno. O século dezessete está cheio de injustiças
largamente distribuídas e só pequenas elites (como o clero) estavam assegurados
delas.
Portanto, ou era padre ou nada. Junte-se
ao inimigo ou morra de fome.
Contra isso o filósofo, que não podia
anunciar sua convicção, proclamou que os pobres deveriam se unir e matar todos
aqueles que queriam submetê-los, ou, em suas próprias palavras, que era preciso
“enforcar o último rei nas tripas do último padre”.
O livro “Memória” já foi chamado ironicamente
de “bíblia do ateísmo”, pois nele está circunscrita a noção que hoje temos
desse conceito (antes um ateu podia ser um não católico, dentre várias outras
coisas), além disso, ali estão alguns dos argumentos e teses mais famosas
contra a existência de deus usadas atualmente.
Seja para quem tem deus no coração e quer
refutar Meslier, seja para quem só tem sangue mesmo e quer entender melhor o
ateísmo, afirmo: leiam.
Onde encontrar?
Esse não é um livro muito conhecido e nem muito simples de se encontrar. Para dar uma ideia do descaso que envolve o autor, em Portugal o livro foi publicado tendo na capa não um retrato de Meslier, mas do filósofo Bento de Espinosa. Absurdo.
Que eu saiba há três possibilidades de
adquirir o livro. A primeira é comprá-lo em idioma estrangeiro, seja no
original em francês, nas traduções em inglês ou o que for. Fora isso há duas (e
só duas) traduções em língua portuguesa; uma lá da terra dos portugas (pela Antígona),
problemática na escolha dos termos; outra aqui do Brasil, colocada no livro
“Filosofia clandestina Vol.II” da editora Martins Fontes, que apesar de ser uma
boa tradução, tem uma história triste: ela traduz uma edição publicada originalmente
por Voltaire, que temendo os posicionamentos radicais de Meslier, suprimiu e
alterou várias partes de seu livro antes de levá-lo ao público. É preciso,
portanto, lê-la com conhecimento desse fato.
Trecho (sobre Jesus):
"Sim, eu diria, eles a atribuem [a divindade] a um louco, a um
insensato, a um miserável fanático e a um desgraçado velhaco; sim, meus caros
amigos, é a um tal personagem que vossos padres e vossos doutores e pregadores
atribuem a divindade, é um tal personagem que eles vos fazem adorar como vosso
amável e divino Salvador, ele que não pôde salvar nem a si mesmo do suplício
vergonhoso da cruz à qual ele foi condenado e onde ele terminou miseravelmente
os seus dias. Pois esse Jesus Cristo que eles vos fazem adorar como um Deus
feito homem para vos salvar e para vos remir, como eles dizem, não era,
conforme o mesmo retrato que nos fazem dele os seus evangelistas e os seus
discípulos, senão um homem vil, um miserável fanático e um desgraçado velhaco
que foi pregado e pendurado na cruz, e que poderíamos, por esse motivo, dizer
que ele foi amaldiçoado por Deus e pelos homens, conforme o que está escrito
nos seus próprios santos Livros, onde está dito que o maldito de Deus é aquele
que é pregado na cruz, maledictus a
Deo est qui pendet in ligno (Deut., 21.23). Não é necessário que eu
prove que ele era tão-somente um homem vil e desprezível no mundo. Pois não só
ele mesmo dizia que ele não tinha um único lugar onde ele pudesse repousar a
sua cabeça (Luc., 9.58), mas vós sabeis que ele veio ao mundo num estábulo, que
ele nasceu de pobres padrinhos, que ele sempre foi pobre, que ele não era filho
senão de um carpinteiro, e que desde que ele quis aparecer no mundo e fazer
falar dele, que ele não tem passado por um insensato, por um louco, por um
demoníaco e por um sedutor que sempre foi desprezado, zombado, perseguido,
chicoteado e que, por fim, foi pendurado e pregado a uma cruz onde ele
miseravelmente acabou seus dias, maledictus
a Deo est qui pendet in ligno”.
(Meslier,
Jean. Oeuvres complètes. Paris, Anthropos, Tome I, 1970, p. 391-392. Tradução de Paulo Jonas de Lima Piva).
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