Como
o título dessa postagem denuncia, esta é a primeira parte de uma resenha sobre
“A capital dos mortos”, mais um
entre montes de filmes sobre o apocalipse zumbi que vão aparecer aqui. Bom, mas
o que ele tem de especial para merecer duas postagens? Poderão perguntar, e
respondo: é um filme com zumbis, terror, humor... E é brasileiro!
Por
isso, para melhor aborda-lo vamos serrar esta resenha ao meio; a primeira fazendo
uma pequena introdução aos problemas de análise do cinema nacional, e a segunda
abordando propriamente o filme.
Portanto,
fuja das mordidas e não morra ainda que amanhã tem mais!
Qual é a treta?
Você, leitor, pode se questionar sobre a pertinência de
se abordar o cinema brasileiro antes de tratarmos de um filme, como faremos
agora. Até certo ponto, concordo que isso é um tanto inesperado e até
dispensável, já que os filmes brasileiros não precisam de nenhum tipo de
tratamento especial na sua análise. Contudo, percebo - e você deve ter
percebido também - que muitas pessoas têm reservas com o cinema nacional e é,
sobretudo, pensando nelas que estou escrevendo isso aqui. Com isso, a todos
aqueles que se sentirem totalmente confortáveis com o cinema nacional, digo:
talvez vocês queiram pular esse texto e ler logo a resenha, mas caso não o
façam, tentarei ser claro e direto, explicando o que penso a respeito do
assunto e como isso guiou minha análise do filme que seguirá.
Caninos? Nós?
Vamos celebrar
nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
(Perfeição, Legião urbana)
Como é bem
conhecido, o Nelson Rodrigues - aquele escritor cheio de sarcasmo e erotismo -
cunhou o conceito de “complexo de vira-lata” para explicar nossa tendência
enquanto brasileiros de nos representarmos como um povo inferior aos outros. Na
presença (ou até ausência) desses povos tenderíamos a exaltá-los como se fossem
superiores e nos rebaixar como se, por nascimento, já fossemos inferiores. E
quais são esses outros povos? Da Uganda? Argentina? Vietnã? Não, não; a
resposta é muito mais curiosa e bizarra: são aqueles das mesmas civilizações
que roubaram nossa riqueza para construir a sua própria, como os EUA, a
Inglaterra, a França e europeus desenvolvidos que lucraram horrores na
colonização e neocolonização.
Melhor
dizendo, vemos superioridade naqueles que construíram sua força roubando a
nossa e nos fazendo duvidar de nosso próprio valor.
Conveniente
para eles, não?
É óbvio que não quero demonizar tais países e sugerir que, caso estivéssemos no lugar dele, não fossemos explorar os outros também. A maldade não está só no DNA dos europeus ou dos EUA, mas da humanidade. Porém, é preciso reconhecer que nós tupiniquins somos vítimas de um processo histórico muito maior que nossa pobre capacidade de apreendê-lo. Somos afetados por essa coisa. Temos muitas marcas da colonização e o complexo de vira-lata é uma delas.
É óbvio que não quero demonizar tais países e sugerir que, caso estivéssemos no lugar dele, não fossemos explorar os outros também. A maldade não está só no DNA dos europeus ou dos EUA, mas da humanidade. Porém, é preciso reconhecer que nós tupiniquins somos vítimas de um processo histórico muito maior que nossa pobre capacidade de apreendê-lo. Somos afetados por essa coisa. Temos muitas marcas da colonização e o complexo de vira-lata é uma delas.
E
por qual razão estou abordando isso? Simples: porque esse problema produz ecos
em todos os campos da vida brasileira - desde a crença boba de que os políticos
são justos lá, mas corruptos cá, até aquela que diz que, por princípio, nosso
cinema não presta. E é aí que chegamos, enfim, à “Capital dos mortos”, um filme
brasileiro independente, com trash, terror e humor.
Um
prato cheio para os colonizados de plantão.
Trash brasileiro? Ai meu deus...
“Não me
convidaram
Pra essa festa pobre
Que os homens armaram
Pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada
Antes de eu nascer...”
Pra essa festa pobre
Que os homens armaram
Pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada
Antes de eu nascer...”
(Brasil, Cazuza)
“A
capital dos mortos” assume dois rótulos carregados de preconceitos: o de ser
trash e o de ser brasileiro.
Como bem sabemos, filmes trash não são exatamente
apreciados pela crítica ou tidos como obras dignas de entrar para a história do
cinema. Isso não se deve somente à miopia dos críticos cinematográficos a tudo
o que cheire à subversão dos modos consagrados de se fazer cinema, mas também à
própria estética suja, à aproximação do amadorismo e aos montantes de defeitos
que o cinema trash carrega. Convenhamos: não é para todo o mundo, certo?
De
modo semelhante, o cinema nacional sofre muito preconceito não só por parte dos
críticos, mas dos próprios brasileiros, que frequentemente preferem os filmes
estrangeiros. Até as pedras sabem: existe uma montanha de gente que não assiste
cinema nacional pelo simples motivo de que... Bem, ele é nacional. Triste, mas
essas pessoas sequer concebem que um filme pode ser bom ou ruim
independentemente de onde venha. Para elas “é nacional, logo, é ruim”, por
isso, deixam de perceber que não estão apenas cuspindo na cultura de seu país,
mas em si mesmos como participantes e contribuintes
dessa cultura que menosprezam.
Por
isso, se duvidamos da qualidade de um filme nacional de zumbis não é porque
somos nacionalistas e cremos que não faz sentido que tais mitos estrangeiros
criem raízes aqui, mas porque somos tão pios em nossa inferioridade que temos
certeza que nem para acabar num apocalipse o Brasil presta.
Postas
essas coisas, podemos notar que, nos dias de hoje, um filme que assuma ou
receba alguma dessas tipologias (trash ou brasileiro) estará necessariamente se
condenando aos guetos do cinema. Nada de Oscar, Urso de ouro, entrevista com o
diretor pagando de cult no Jô Soares ou elogios intelectualizados no caderno de
cultura de um jornalão. Jamais.
Note
desde já, leitor: ao tratar do que estamos tratando, cinema trash nacional, não
estaremos no âmbito da convenção, do socialmente aceito, do mainstream, mas à
margem da história da arte que irá ilustrar os livros que nossos filhos
estudarão um dia. Ao ver um filme como “A capital dos mortos”, estaremos
acompanhando a arte que não vencerá; aquela que o futuro não irá se lembrar,
que não lhe trará prestígio e jamais será sinônimo de bom gosto.
Obviamente,
isso não implica de nenhuma maneira
que estejamos prestes a ver algo destituído de valor. Bem do oposto. Esse é um
mito criado por quem defende com discursos, porretes e livros a ordem
estabelecida, abominando tudo o que a conteste. Ignore-os. Aproveite a chance
para descobrir o que existe além desse mundo prontinho e tedioso que nos
empurram dia-a-dia nos jornais, nos livros, na TV. Essa é uma das raras chances
que teremos de acompanhar, dentro de nossa própria época, uma manifestação
genuína de algo que nunca será valorizado pelo que é. Veja sem preconceitos
bobocas. Veja, nem que seja para dizer que foi até bom que a história enterrou
isso tudo.
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