Então você fica indignado com a
violência que passa na TV? Mortes, agressões sem sentido contra pessoas
inocentes e a repetida constatação de que aqueles que deveriam nos proteger estão
corrompidos?
Tendo isso em vista, já pensou em defender
soluções radicais como pena de morte para criminosos ou mesmo o bíblico “dente por
dente”? Sim?
Pois saiba de uma coisa: essa é a solução
dos mariquinhas. Isso mesmo, leitor bundão, esse é o “modo florzinha de se
resolver as coisas”. Ele apela para que o papai Estado suje as mãos fazendo
algo que você tem vontade, mas não coragem, de fazer.
E é exatamente por isso o Café com Tripas
trará hoje uma solução “de macho”, de puro exploitation para que exterminemos os
problemas sociais. Não, não vamos solucionar nada; a palavra correta é mesmo “exterminar”.
Vamos esmigalhar os problemas sociais com martelos, chutar suas costelas até
que quebrem e cortá-los em pedacinhos enquanto gritam e o sangue jorra.
Título original: Hobo with a shotgun
Lançamento: 2011 (EUA)
Duração: 86 minutos
Direção: Jason Eisener
"Hobo with a shotgun"
"O vingador"
Um mendigo com uma espingarda.
Quer mais o quê?
Acho que desde “O dia da besta” não trato aqui no Café de um filme que tem
mais assuntos do que sou capaz de colocar numa resenha. Abordamos com mais
frequência filmes tão ruins que é difícil encontrar neles elementos dignos de
análise. Logo, é incomum vermos algum filme genuinamente bom aqui
no Café,
não porque o cinema alternativo – trash, gore, exploitation - só produza coisas
ruins, mas porque ele normalmente não consegue criar obras que possam ser
apreciadas por pessoas que não são atraídas pelo gênero. É um tipo de cinema bastante fechado e específico.
Esse não é o caso do excepcional “Hobo
with a shotgun”, um filme de 2011 que fez bem menos barulho que o devido. Vamos
discutir por quê.
Um homem qualquer...
Um mendigo acaba de chegar a uma
nova cidade tomada completamente pela violência. Ao salvar a vida de uma
prostituta e ter de lidar diariamente com as agressões que criminosos praticam,
ele decide fazer alguma coisa... Com uma espingarda.
Desabrigados
“Hobo” (que me desculpem os tradutores,
mas dizer “O vingador” é vergonhoso demais) é um filme tão gratuitamente
violento que faria sua mãe te expulsar de casa. É sério. Se você não está
habituado ao exploitation, faça um esforço mental para não se ofender com os
milhares de litros de sangue que voam na câmera a cada cena. Rigorosamente,
trata-se de um banho de sangue que muitas vezes não faz o menor sentido, todavia,
lá pelas tantas, quando então nos damos conta disso, já estamos tão bêbados de
violência e humor negro para que isso faça alguma diferença.
A história se desenvolve basicamente sobre a tentativa
do mendigo de limpar a cidade do lixo, que, segundo ele, são os criminosos que
fazem dela seu lugar. Aliás, digo “mendigo”, pois o personagem não recebe
nenhum nome na história, sendo tratado apenas por “hobo”, um termo que dá uma
conotação bem interessante. Embora seja traduzido como vagabundo ou
mendigo, “hobo” se refere, sobretudo, a desabrigados os quais buscam trabalho e
não conseguem (ou conseguem apenas aqueles mais degradantes). Na narrativa, esse termo nos sugere que o personagem está em busca de
um ofício que possa realizar, mesmo que seja o de matar um monte de gente com uma arma. Inclusive, em determinado momento, ao ser
questionado se poderia tomar outro rumo na vida ao invés desse, ele responde apenas: “só sei
fazer isso”. É como se o trabalho de matador (ou “lixeiro”) fosse o cargo perfeito que a sociedade até então não pode lhe oferecer. Alguém tratado como lixo é quem está mais apto para livrar a cidade do verdadeiro lixo a emporcalha.
Acho que é desnecessário dizer o quão ácido é isso, e mais, o quão atípico esse tipo de humor é para um filme que tenta te entreter rasgando buchos com balas de espingarda.
Não é muito comum ver no cinema críticas a maneira como desabrigados são
tratados, ainda mais num filme com muita ação. Aliás, moradores de ruas são tão irrelevantes e desprezíveis aos olhos da
cidade alta que nem mesmo se produziram muitos filmes a respeito (aqui no Café,
para quem não viu, foi dito algo do assunto na resenha de “O assassino da furadeira”).
Quem, como eu e o Victor, mora também em SP sabe dessas coisas
tão bem que pode até querer pular essa parte, pois cá no “centro pujante da
economia sul-americana seja-lá-que-merda-for-isso” os civis não se contentam em
pichar mendigos quando eles adormecem, espancá-los com pedaços de pau,
pisoteá-los; as autoridades não se cansam de castigá-los usando a política e
não criando soluções adequadas para retirá-los da miséria; não, não, nós
paulistas somos ainda mais criativos: nós os matamos, às vezes com balas, às
vezes de fome, mas também com gasolina e fósforo.
Um preço pequeno para manter as ruas
limpas e nossas consciências tranquilas.
Indiferença
Não é de se estranhar, portanto, que
viremos nossa cara ao passar perto de mendigos, que sejamos “tolerantes” com a
violência pelo medo de nos tornarmos também vítimas dela. Também não é estranho
que mesmo nossas próprias relações pessoais estejam repletas de certa violência
psíquica tida como normal. Claro, normal até que o outro revide.
Justiça? Que isso?
Em “Hobo” a violência é estetizada ao
ponto de se tornar absurda. Ele coloca do modo mais explícito e debochado os
crimes bárbaros que no linguajar do William Bonner “comovem a opinião pública”.
Pense em Champinha, o menino Hélio, Isabela Nardoni e todos esses casos que a
televisão espreme até que a última gota de audiência e sangue escorram.
Se nessa história para onde olharmos veremos
sangue e sujeira, com o tempo passamos a entender que a violência faz parte da
dinâmica desse mundo, abastecendo seu funcionamento. Com isso, não estranhamos
que a solução dada pelo protagonista seja um lindo banho de biles e proteína
líquida nas tripas dos inimigos. Ele está menos preocupado com
justiça, com a criação de um mundo melhor e com essas coisas que num filme do
Stalone só serviriam para justificar a violência que seguirá, do que com a
vontade de exterminar o mundo das pessoas que fazem mal a ele.
Logo, não espere nenhuma motivação muito
forte por parte dos personagens: eles são assim porque o mundo é assim e
pronto. Mesmo os diálogos mais próximos de um discurso sobre valores não os moraliza
como modelos éticos, quer dizer, não tome nosso protagonista como uma pessoa
boa e não torça para que ele venha surgir no nosso mundo.
A mim essa é uma das maiores virtudes do
filme, fugindo àquelas bobagens do tipo “policial que perdeu a família e matou
mais de cem para fazer justiça”. Na verdade, “Hobo” incorpora a violência como
método e inspiração de um jeito elegante e malvado - logo passamos a amá-la e a
desejá-la. Sob esse aspecto ele está ideologicamente muitos degraus acima de
filmes como “Desejo de matar”, por exemplo, que recaem nessa bobagem de que uma
injúria sofrida justifica nossa vingança sangrenta contra o mundo.
Com “Hobo” só há a devolução do mal
recebido em dobro, triplo, o que conseguirmos. O filme nos transforma em
apreciadores vulgares da mesma violência da qual somos vítimas e internalizamos.
Não importa qual mundo surgirá de um massacre ou mesmo se haverá um mundo
depois de tudo isso; mataremos todos e é só. Nem mesmo o protagonista parece
uma companhia agradável, tampouco um justiceiro (como sugere essa droga de
tradução).
É como se ele dissesse “vou te dar o que
você quer” e começasse a nos bater.
E nós? Nós gozamos.
Devo pegar uma espingarda e
massacrar os criminosos da minha cidade?
Você enlouqueceu? É claro que não, isso é
só um filme, seu maluco!
Se o Café com Tripas tivesse um
troféu “Tu é foda pra caralho”, hoje ele seria dado à “Hobo with a shotgun”.
Obviamente, não há como explorar aqui
todas as questões as quais o filme levanta. Tive que parar várias vezes no meio
dele para escrever, pois uma ideia boa ia aparecendo na tela, sendo logo depois
seguida de outra e outra. Por isso, apenas pincelei as linhas gerais do filme esperando
que vocês o assistam e vejam por si o que falta. Ignorei conscientemente qualquer
descrição dos personagens, aquele papo muito louco sobre
ursos, toda uma discussão sobre o medo como forma de controlar o outro, enfim,
muitas coisas que você, leitor, ia adorar saber. Vá atrás!
Para saber mais
Antes do trailer, temos duas boas
indicações para fazer.
A primeira é um curta bolado pelo pessoal
da USP sobre desabrigados de SP. O vídeo tem a virtude de fazer uma coisa muito
simples e pouco praticada na pesquisa social: entregar um microfone as pessoas
estudadas e deixar que falem; que sua opinião tenha relevância na pesquisa. Ele se chama “Eu existo”.
A segunda indicação é de outro curta
metragem, mais antigo e clássico, sobre um tema que não abordei na resenha e
que está colocado no filme de modo indireto, a prostituição. “69 Praça da Luz” é um documentário bem
visceral e triste, que faz a vida parecer uma merda e o torna muito necessário.
Trailer:
Nenhum comentário:
Postar um comentário