sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Resenha: O vingador (Hobo with a shotgun)


        Então você fica indignado com a violência que passa na TV? Mortes, agressões sem sentido contra pessoas inocentes e a repetida constatação de que aqueles que deveriam nos proteger estão corrompidos?
Tendo isso em vista, já pensou em defender soluções radicais como pena de morte para criminosos ou mesmo o bíblico “dente por dente”? Sim?
Pois saiba de uma coisa: essa é a solução dos mariquinhas. Isso mesmo, leitor bundão, esse é o “modo florzinha de se resolver as coisas”. Ele apela para que o papai Estado suje as mãos fazendo algo que você tem vontade, mas não coragem, de fazer.
E é exatamente por isso o Café com Tripas trará hoje uma solução “de macho”, de puro exploitation para que exterminemos os problemas sociais. Não, não vamos solucionar nada; a palavra correta é mesmo “exterminar”. Vamos esmigalhar os problemas sociais com martelos, chutar suas costelas até que quebrem e cortá-los em pedacinhos enquanto gritam e o sangue jorra.
Tá com medinho?





Título original: Hobo with a shotgun
Lançamento: 2011 (EUA)
Duração: 86 minutos
Direção: Jason Eisener





"Hobo with a shotgun"
"O vingador"
Um mendigo com uma espingarda. Quer mais o quê?


Acho que desde “O dia da besta” não trato aqui no Café de um filme que tem mais assuntos do que sou capaz de colocar numa resenha. Abordamos com mais frequência filmes tão ruins que é difícil encontrar neles elementos dignos de análise. Logo, é incomum vermos algum filme genuinamente bom aqui no Café, não porque o cinema alternativo – trash, gore, exploitation - só produza coisas ruins, mas porque ele normalmente não consegue criar obras que possam ser apreciadas por pessoas que não são atraídas pelo gênero. É um tipo de cinema bastante fechado e específico.
Esse não é o caso do excepcional “Hobo with a shotgun”, um filme de 2011 que fez bem menos barulho que o devido. Vamos discutir por quê.

Um homem qualquer...

            Um mendigo acaba de chegar a uma nova cidade tomada completamente pela violência. Ao salvar a vida de uma prostituta e ter de lidar diariamente com as agressões que criminosos praticam, ele decide fazer alguma coisa... Com uma espingarda.

Desabrigados


“Hobo” (que me desculpem os tradutores, mas dizer “O vingador” é vergonhoso demais) é um filme tão gratuitamente violento que faria sua mãe te expulsar de casa. É sério. Se você não está habituado ao exploitation, faça um esforço mental para não se ofender com os milhares de litros de sangue que voam na câmera a cada cena. Rigorosamente, trata-se de um banho de sangue que muitas vezes não faz o menor sentido, todavia, lá pelas tantas, quando então nos damos conta disso, já estamos tão bêbados de violência e humor negro para que isso faça alguma diferença.
A história se desenvolve basicamente sobre a tentativa do mendigo de limpar a cidade do lixo, que, segundo ele, são os criminosos que fazem dela seu lugar. Aliás, digo “mendigo”, pois o personagem não recebe nenhum nome na história, sendo tratado apenas por “hobo”, um termo que dá uma conotação bem interessante. Embora seja traduzido como vagabundo ou mendigo, “hobo” se refere, sobretudo, a desabrigados os quais buscam trabalho e não conseguem (ou conseguem apenas aqueles mais degradantes). Na narrativa, esse termo nos sugere que o personagem está em busca de um ofício que possa realizar, mesmo que seja o de matar um monte de gente com uma arma. Inclusive, em determinado momento, ao ser questionado se poderia tomar outro rumo na vida ao invés desse, ele responde apenas: “só sei fazer isso”. É como se o trabalho de matador (ou “lixeiro”) fosse o cargo perfeito que a sociedade até então não pode lhe oferecer. Alguém tratado como lixo é quem está mais apto para livrar a cidade do verdadeiro lixo a emporcalha.
Acho que é desnecessário dizer o quão ácido é isso, e mais, o quão atípico esse tipo de humor é para um filme que tenta te entreter rasgando buchos com  balas de espingarda. Não é muito comum ver no cinema críticas a maneira como desabrigados são tratados, ainda mais num filme com muita ação. Aliás, moradores de ruas são tão irrelevantes e desprezíveis aos olhos da cidade alta que nem mesmo se produziram muitos filmes a respeito (aqui no Café, para quem não viu, foi dito algo do assunto na resenha de “O assassino da furadeira”).

Quem, como eu e o Victor, mora também em SP sabe dessas coisas tão bem que pode até querer pular essa parte, pois cá no “centro pujante da economia sul-americana seja-lá-que-merda-for-isso” os civis não se contentam em pichar mendigos quando eles adormecem, espancá-los com pedaços de pau, pisoteá-los; as autoridades não se cansam de castigá-los usando a política e não criando soluções adequadas para retirá-los da miséria; não, não, nós paulistas somos ainda mais criativos: nós os matamos, às vezes com balas, às vezes de fome, mas também com gasolina e fósforo.

Um preço pequeno para manter as ruas limpas e nossas consciências tranquilas.

Indiferença


Françoise Sagan, “a última existencialista”, uma importante escritora francesa do século vinte, muito influenciada pelo Sartre, Merleaux Ponty e o pessoal da filosofia existencialista, disse em um dos seus melhores momentos que: “O que falta à nossa época é a gratuidade, fazer algo por nada”. “Hobo with a shotgun” retrata isso muito bem, claro, ao seu modo. No seu universo as pessoas foram engessadas pelo medo até o ponto em que não conseguem sequer ajudar a quem precisa. Isso se dá por conta da violência extrema a qual todos estão sujeitos quando abrem qualquer espaço para a interferência alheia em suas vidas. Nesse mundo em que qualquer exposição pessoal, qualquer passo fora de nossa zona de conforto pode significar que seremos atingidos pela maldade do outro, que teremos nossa gratuidade usurpada por pessoas ruins; as pessoas decidem (ou são levadas a decidir) pela indiferença. Afinal, porque vou estender a mão ao outro se ele pode arrancá-la? Como é possível que pessoas (ditas) normais simplesmente abandonem outras pessoas quando a situação aperta? “Hobo” deixa bem claro por que.
Não é de se estranhar, portanto, que viremos nossa cara ao passar perto de mendigos, que sejamos “tolerantes” com a violência pelo medo de nos tornarmos também vítimas dela. Também não é estranho que mesmo nossas próprias relações pessoais estejam repletas de certa violência psíquica tida como normal. Claro, normal até que o outro revide.

Justiça? Que isso?

Em “Hobo” a violência é estetizada ao ponto de se tornar absurda. Ele coloca do modo mais explícito e debochado os crimes bárbaros que no linguajar do William Bonner “comovem a opinião pública”. Pense em Champinha, o menino Hélio, Isabela Nardoni e todos esses casos que a televisão espreme até que a última gota de audiência e sangue escorram.
Se nessa história para onde olharmos veremos sangue e sujeira, com o tempo passamos a entender que a violência faz parte da dinâmica desse mundo, abastecendo seu funcionamento. Com isso, não estranhamos que a solução dada pelo protagonista seja um lindo banho de biles e proteína líquida nas tripas dos inimigos. Ele está menos preocupado com justiça, com a criação de um mundo melhor e com essas coisas que num filme do Stalone só serviriam para justificar a violência que seguirá, do que com a vontade de exterminar o mundo das pessoas que fazem mal a ele.
Logo, não espere nenhuma motivação muito forte por parte dos personagens: eles são assim porque o mundo é assim e pronto. Mesmo os diálogos mais próximos de um discurso sobre valores não os moraliza como modelos éticos, quer dizer, não tome nosso protagonista como uma pessoa boa e não torça para que ele venha surgir no nosso mundo.
A mim essa é uma das maiores virtudes do filme, fugindo àquelas bobagens do tipo “policial que perdeu a família e matou mais de cem para fazer justiça”. Na verdade, “Hobo” incorpora a violência como método e inspiração de um jeito elegante e malvado - logo passamos a amá-la e a desejá-la. Sob esse aspecto ele está ideologicamente muitos degraus acima de filmes como “Desejo de matar”, por exemplo, que recaem nessa bobagem de que uma injúria sofrida justifica nossa vingança sangrenta contra o mundo.
Com “Hobo” só há a devolução do mal recebido em dobro, triplo, o que conseguirmos. O filme nos transforma em apreciadores vulgares da mesma violência da qual somos vítimas e internalizamos. Não importa qual mundo surgirá de um massacre ou mesmo se haverá um mundo depois de tudo isso; mataremos todos e é só. Nem mesmo o protagonista parece uma companhia agradável, tampouco um justiceiro (como sugere essa droga de tradução).
É como se ele dissesse “vou te dar o que você quer” e começasse a nos bater.
E nós? Nós gozamos.

Devo pegar uma espingarda e massacrar os criminosos da minha cidade?


Você enlouqueceu? É claro que não, isso é só um filme, seu maluco!
Se o Café com Tripas tivesse um troféu “Tu é foda pra caralho”, hoje ele seria dado à “Hobo with a shotgun”.
Obviamente, não há como explorar aqui todas as questões as quais o filme levanta. Tive que parar várias vezes no meio dele para escrever, pois uma ideia boa ia aparecendo na tela, sendo logo depois seguida de outra e outra. Por isso, apenas pincelei as linhas gerais do filme esperando que vocês o assistam e vejam por si o que falta. Ignorei conscientemente qualquer descrição dos personagens, aquele papo muito louco sobre ursos, toda uma discussão sobre o medo como forma de controlar o outro, enfim, muitas coisas que você, leitor, ia adorar saber. Vá atrás!

Para saber mais

            Antes do trailer, temos duas boas indicações para fazer.
A primeira é um curta bolado pelo pessoal da USP sobre desabrigados de SP. O vídeo tem a virtude de fazer uma coisa muito simples e pouco praticada na pesquisa social: entregar um microfone as pessoas estudadas e deixar que falem; que sua opinião tenha relevância na pesquisa. Ele se chama “Eu existo”.
            A segunda indicação é de outro curta metragem, mais antigo e clássico, sobre um tema que não abordei na resenha e que está colocado no filme de modo indireto, a prostituição. “69 Praça da Luz” é um documentário bem visceral e triste, que faz a vida parecer uma merda e o torna muito necessário.

Trailer:

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