Então você acha que o mundo está perdido
e precisamos de heróis? Batman, super-homem e homens tão capazes e inteligentes
quanto eles, que defendam o sistema contra ameaças? Afinal, há muitos
inimigos por aí e é preciso que alguém defenda o Estado e os bons valores,
não? O que seria de nós sem o Estado para nos proteger? Teríamos o quê? Metrópoles
violentas e repletas de drogas? E sem quem defenda nossos valores? Pessoas
degeneradas e corruptas vestidas como pessoas de bem? Uma tragédia.
Pensando exatamente nisso o Café com Tripas
lança o bat-sinal sobre o céu e convoca não o homem-morcego, mas um herói
perfeito para nossos clamores hipócritas. Com vocês, “O vingador tóxico”. (Leia também a resenha de "Vingador Tóxico II" e "Vingador Tóxico III")
Título
original: The toxic
avenger
Lançamento: 1984 (EUA)
Duração: 85 minutos
Direção: Joe Ritter e Lloyd Kaufman
Duração: 85 minutos
Direção: Joe Ritter e Lloyd Kaufman
O vingador tóxico
Contra a beleza, os padrões
e o Estado
Antes de tudo, preciso confessar uma
coisa: eu não falo inglês e assisti “O vingador tóxico” com o áudio original.
Com isso, você pode pensar que estou me gabando ou desculpando pelos
possíveis erros interpretativos. Não vou negar sua sapiência, porém não é isso.
Na verdade, quero relatar outra coisa:
percebi que o legal de se ver um trash em inglês é repassar todos aqueles
diálogos bobocas com o verbo “to be” que nos ensinaram (?) na escola:
- How
are you?
- I am
ok, and you?
- I am
ok too.
-
Where you come from?
- I’m
come from Brazil, and you?
- I’m come from 'taquepariu.
Falando sério, para que uma pessoa
como eu, que não entende bem inglês, compreender sem problemas um filme falado
nesse idioma é preciso que ele seja, digamos, não muito profundo, não muito complexo;
é urgente que seus vilões sejam assim tão óbvios a ponto de usarem pinturas
para indicar que são maus, ou que pertençam a minorias raciais para que
possamos odiá-los sem pestanejar. Em outras palavras, é necessário que o filme
corresponda ao padrão Café com Tripas de qualidade,
sendo tão ruim, mas tão, mas tão tãaaaaaao ruim-minha-nossa-senhora que chega a
ser uma obra-prima.
Assim, caro leitor do Café,
esteja preparado para lidar com a fina arte de se fazer filmes podres e
conquistar gerações. Leia sobre o maior herói da história e, ao mesmo tempo, uma opera magna do cinema trash, “O vingador
tóxico”.
Nasce uma lenda...
Melvin, um jovem reprimido e sem grandes
atrativos, passa seus dias com um emprego medíocre enquanto sonha em possuir belas mulheres e ser socialmente aceito. Diariamente sofre intensas humilhações
do mesmo grupo no qual deseja se inserir, até que, numa dessas sessões, acaba caindo
num balde de produtos tóxicos. O evento produz nele profundas mudanças e o
rapaz retorna com um imenso desejo de vingança...
Monstros e heróis
“O vingador tóxico” conta a história
de Melvin - sobretudo após a mudança que sofre - mostrando a maneira pela qual
ele e a sociedade vão lidando com essa transformação. O rapaz acaba por ganhar
uma força descomunal, mas tem sua aparência alterada grotescamente, o que faz
com que seja notado pelos outros e por si como um monstro. Além disso, com o tempo
certo instinto assassino o possui, sem que nos seja permitido saber se essa é uma consequência física ou psicológica de seu estado
deformado.
Afinal, Melvin é um monstro ou apenas se
assumiu como tal?
Essa questão vai ganhando importância no
avançar do filme pois, ao passo que o personagem ajuda muitas pessoas em sua
jornada (se tornando um tipo de herói), mata tantas outras de maneiras bem cruéis. Ora, ser um herói, se é que ele o é,
não dá a ninguém o direito de assassinar pessoas, tampouco de eliminar um
inimigozinho aqui e ali quando ninguém está olhando. Logo, Melvin
frequentemente se assemelha aqueles que combate, seja por aquilo que faz ou
pelos métodos que usa. No entanto, como sempre fica do lado dos oprimidos e
derrotados, ajudando-os enquanto destroça algum inimigo, acabamos gostando de
vê-lo arrancar braços e trucidar bandidos.
Hipocrisia? Com certeza. Banhada a sangue
e testosterona, daquele jeitinho que a gente gosta.
O próprio personagem percebe isso e passa
a questionar sua humanidade, tentando entender sua condição: sou monstro ou sou
humano? De uma maneira esquisita o filme tenta lidar com essa questão,
afirmando que Melvin, por sua condição incomum, tem um imenso desejo de
destruir o mal e promover a justiça, o que não parece assim muito crível...
Porém, num universo estranho como esse qualquer teoria maluca pode bem ser
verdade, não?
Apesar disso, o filme não se resume
a pura exaltação de um herói torto, como se tudo o que ele fizesse fosse bom. Na
verdade, o Vingador só existe porque o mundo é um lugar horrendo e injusto em
que, até um inocente como Melvin, tem que se transformar num monstro para
sobreviver. Portanto, só uma sociedade muito decadente - em que a política é
corrupta, em que os valores são degenerados, em que as autoridades só fazem
valer a lei em causa própria - é que surgem salvadores. Nada pode ser mais
triste do que um herói: ele é o símbolo de que o mundo fracassou e necessita pôr
o peso da renovação sobre as costas de uma única pessoa. Pronto, já dei minha lição de moral de hoje.
O vingador contra o Estado
Um aspecto bem interessante de “O
vingador tóxico” é a relação entre o herói e o Estado, sendo muito bem explorada na
história. Recapitulando: Melvin é um monstro fortão que tem sede se justiça, derrota
criminosos e reestabelece a paz na cidade, apesar de ser feinho que dói. E o
que há de mal nisso? Você poderá me perguntar. E responderei com outra questão:
não era esse o dever do Estado? O que aconteceria se, de repente, tudo aquilo
que os governos fossem pagos para fazer, começasse a ser realizado pelos
próprios cidadãos? Quanto tempo demoraria até que alguém perguntasse: afinal,
se há violência, corrupção e injustiça, para que serve o Estado?
Esse conflito é muito interessante e
pouquíssimo explorado em filmes de super-heróis. Ele lida com um tema muito caro
à política: a ilusão de segurança que o Estado transmite as pessoas. Não é o
caso de dizermos que o Estado não proteja as pessoas, mas que, para quem governa, ter
seus cidadãos se sentindo seguros é mais importante do que efetivamente
protegê-los.
No filme isso é colocado de um modo bem
legal: conforme o vingador começa a ganhar visibilidade e trazer
segurança real para a cidade, a população passa a gostar dele.
Consequentemente, o governo e seus agentes ficam preocupados com o efeito que
Melvin exerce sobre as pessoas. Como solucionar isso? Simples: matá-lo e mostrar,
afinal, quem é que manda na bagaça.
Nessa queda de braço do vingador contra o
Estado, morre um monte de gente inocente e a cidade vira um caos na medida em
que a polícia, ao invés de realizar suas funções habituais, passa a caçar Melvin,
o que mostra que, para o poder oficial, o que importa é o controle sobre a
população exercido através da ilusão de bem-estar e não o bem-estar dessa
população. Em suma, tudo está bem enquanto parece bem.
Barbie e Ken
Uma questão bem explorada pelo filme -
aliás, bastante atual - é aquela da crítica à padronização da beleza. Minimamente, o que todos conhecemos: tipificamos certas características físicas como
belas e outras como feias, com isso, qualquer um que busque ver as coisas de
uma maneira diferente (ou mesmo negar esse padrão) é tido com desaprovação.
Em “O vingador tóxico” temos a figura
desajeitada de Melvin que, apesar de estar fora do padrão, consegue viver bem
assim. Com sua vidinha, defeitos e virtudes ele é feliz; mesmo desejando, às vezes, ser um pouco mais valorizado (e quem não gostaria?). No entanto, sua felicidade
e modos desagradam profundamente os que estão no padrão e que, por isso, se
consideram melhor que ele. Bonitos e bonitas passam a desprezar Melvin não
apenas pelo que ele é - um rapaz estranho -, mas pelo que não é: uma pessoa
bonita; como se o fato do rapaz conviver bem consigo mesmo fosse uma afronta à
existência deles. Afinal, como um feio pode ter a audácia de ser feliz? Ou melhor, como
uma gorda pode usar uma camisa curta? Ela não tem vergonha? Por que não se
esconde? Por que não morre? Por que não a jogamos num barril de lixo tóxico
para ver se ela aprende?
Em sua, eis o grau máximo do culto da
beleza: a pregação de ódio e execração contra aqueles que não correspondem ao que
se convencionou enquanto belo, como se, por isso, fossem pessoas piores,
erradas, e precisassem se corrigir... Isto é, entrar no padrão.
Com efeito, num mundo desses, o máximo que nós
esquisitinhos podemos dizer em autodefesa é: sou feio, mas também sou gente. Não me odeiem, por favor.
*
Apesar de sua felicidade habitual,
Melvin vai gradativamente se dando conta do padrão vigente e percebe, assim,
que ninguém verá beleza fora dele. Consequentemente, começa a desejá-lo. Se as
pessoas só vem um tipo de beleza, buscarei um meio de fazer desse tipo o meu. Com isso, ele vai ao espelho e mede o muque...
Pequeníssimo. Desanima. Descobre a triste verdade: é uma pessoa feia e não pode
mudar isso.
Esse não é um grande drama, com podemos ver, todavia,
não é também um problema irrelevante, constituindo um mal que aflige qualquer
pessoa que tenha acesso, por exemplo, aos meio de comunicação de massa e as
influências que ele promove. Revistas fotografando estrias no corpo de artistas,
divulgação constante de dietas milagrosas, negras representadas como tendo
“cabelo ruim” e assim por diante. Em tempo, quem nunca duvidou da própria
beleza e com isso do próprio valor? Quem nunca viu pessoas consideradas feias sendo reprimidas ou
destratadas; mudando suas personalidades, quiçá suas próprias vidas, por que
são consideradas inferiores?
No filme essa questão é tratada de
uma maneira bastante irônica: a única personagem que consegue “ver” as
qualidades de Melvin - sua beleza - é uma moça cega e, justamente por isso, alheia
aos padrões de beleza. Quer dizer, somente alguém que não reconheceu o padrão pôde
ver a beleza natural das pessoas. Assim, podemos nos pôr uma questão bem
maldosa: se a moça enxergasse, gostaria do que veria? Ou melhor, conseguiria perceber
alguém digno de amor ou só veria um monstro... Como nós mesmo fazemos?
Devo pular num barril de
lixo tóxico?
Matt Murdock ganhou poderes, mas ficou
cego, Melvin ficou fortão, mas feio. Se você for feio e cego, não
perca tempo e pule já; não há muito a perder. Porém, se não for, o risco é todo o seu.
No mais, se quiser apenas acompanhar a vida
de um herói inusitado, “O vingador tóxico” é um filme muitíssimo divertido e
uma das maiores bilheterias do cinema trash, o que deve corresponder mais ou
menos a umas vinte e cinco pessoas. Nele, são abordadas um monte de questões bacanas
sem desviar das tosquices características do gênero. Aqui no Café
apenas pincelamos algumas delas, pois há várias outras que não abordamos. Pessoalmente, recomendo muito o filme; ri pra caramba. Contudo,
se não puder ver não se preocupe, porque, segundo o narrador do filme, onde houver injustiça, onde houver
necessidade e clamor, o Vingador Tóxico estará lá.
Para saber mais:
Antes de encerrar, há três indicações legais que podemos fazer.
Primeiramente, o pessoal do contracampo -
um site de crítica cinematográfica - fez um artigo excelente sobre a Troma e o
cinema trash, comentando ligeiramente “O vingador tóxico”. Está assinado por
Eduardo Valente.
Além disso, o pessoal do "The dark one podtrash" fez um excelente podcaste sobre o filme, em que resgatam muitas informações técnicas e contextuais dele.
Ouça aqui.
Por fim, o site da Troma, produtora de “O
vingador tóxico” está no ar e é bem divertindo, vendendo exemplares do filme em
VHS, contendo joguinhos e coisas igualmente trash.
Trailer:
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