Então você leu “Descartes e a glândula pineal” e acha que sabe tudo sobre alma, corpo e espíritos, não é?
Pois se prepare leitor, pois com pouca (ou nenhuma) filosofia os filmes trash
estão aí para nos dizer que não, nós não vimos de tudo e sempre haverá algo
novo e bizarro te esperando atrás duma porta fechada. Abra-a agora com “Do
além”.
Título
original: From
beyond
Lançamento: 1986 (EUA)
Duração: 86 minutos
Direção: Stuart Gordon
Lançamento: 1986 (EUA)
Duração: 86 minutos
Direção: Stuart Gordon
Parente de “Re-animator” (fruto do mesmo
diretor e elenco) e baseado num conto homônimo de Lovecraft, “Do além” é um
filme bizarro. Se por sua sinopse esperaríamos um algo inteligente com pitadas
de loucura, assistindo-o tomamos contato com uma obra estranha que ao mesmo
tempo em que suscita discussões diversas, parece não estar assim tão preocupada
com isso, satisfazendo-se mais em nos chocar a cada cena do que levantar
questões e defender um ponto de vista. Ao fim não sabemos bem se fomos
enganados ou provocados, talvez ambos, talvez nenhum.
Qual é a ideia?
Dois cientistas trabalhavam numa
máquina de estimular a glândula pineal, o “ressonator”, permitindo aos seres
humanos alcançar outra dimensão. O experimento produz um acidente no qual um
deles morre e o outro, Dr. Crawford, acaba sendo internado num hospício. Tempos
depois a psiquiatra Katherine
Michaels decide levá-lo novamente à máquina e testar a validade do experimento.
Penso, logo existo.
Como os leitores do Café
bem sabem, essa história toda de glândula pineal ganha força com René Descartes
lá na França Moderna, seguindo adiante com aqueles que tinham algum tipo de
concordância com a ideia de separação corpo e mente. A glândula seria o local
onde, no corpo humano, haveria maior influência da alma. Porém, não é preciso
ver mais que dez minutos de filme para perceber que não estamos no âmbito das
provas lógicas e das discussões profundas. Embora o filme suscite várias coisas
interessantes, ele não deixa de ser uma obra que tenta atingir o leitor mais
pelo estômago que pela cabeça. Como assim?
Olhe isso aqui e me diga que seu bucho não tremeu:
Além de explorar certas questões “mentais”
- como o que haveria por detrás da restrita percepção humana, a glândula pineal,
e coisas outras - o filme tange a muitos assuntos diferentes, como a ética na
ciência, os perigos de levarmos o desejo de transcendência aos limites e outros; abordando-os conforme conta às desventuras de
Crawford e Katherine ao lidarem com os efeitos do ressonator.
Limites da ciência
No princípio do filme somos levados a crer
que Crawford sofreu em alguma medida a influência da máquina, o que o levou a
uma ligeira loucura; enquanto a doutora Katherine seria o ponto de estabilidade
entre os dois, já que é psiquiatra, sã, e busca desvendar o caso. Contudo,
conforme a trama avança - e, ao contrário das expectativas da cientista, o
ressonator se mostra funcional - vemos que a moça também acaba por ser afetada
pela máquina. Mais que isso, Katherine passa a apresentar os mesmos sinais de
loucura que levaram Crawford e seu mestre ao desastre anterior. Assim, o
telespectador perde gradativamente o referencial de um personagem sólido e
controlado conforme todos eles vão sucumbindo à loucura. Por sinal, um dos
pontos altos do filme.
Há nisso certo questionamento quanto ao
nosso desejo de saber e desvendar o mundo. Mesmo ciente em alguma medida de sua
alteração mental, a doutora prossegue com os experimentos, até chegar ao ponto
extremo de não mais se diferenciar da loucura que o ressonator criou. É a velha
sede humana de saber, que nos levou tanto a coisas positivas (quando bem
conduzida) quanto àquelas negativas. Conforme desbravamos o
desconhecido, produzindo melhor ciência, melhor tecnologia e teorias, não
descobrimos mais respostas, porém apenas mais perguntas. A cada nova ideia que surge nós
humanos ficamos menores dentro de um mundo parece ser infinito. Em alguma
medida, Katherine parece representar isso. Ela, porém, crê que encontrará as
respostas que procura e acaba se misturando com aquilo que deveria estudar e
compreender, deixando de agir como cientista para seguir com suas motivações
interiores e abandonar seus objetivos iniciais. Do mesmo modo muitos cientistas
se juntaram ao nazismo, produziram tecnologia de destruição em massa, armas
químicas e tantas outras coisas. Se bem me lembro, Santos Dumont se suicidou
após ver aviões sendo utilizados como máquinas de guerra, não é?
Mundos possíveis
A propósito, embora seja possível supor
que no momento em que entraram em contato com os efeitos da máquina todos enlouqueceram,
sendo que todos os monstros esquisitos do filme seriam apenas deformações
vindas da insanidade, não é por esse argumento que “Do além” segue. No filme
há, de fato, outras dimensões as quais nossa compreensão limitada não pode
apreender. A máquina estimuladora abriria a possibilidade da mente humana acessar
essas outras instâncias da existência. Para nós, até pode parecer pura imaginação, mas não é.
Se você teve algumas boas aulas de física no ensino médio (sobre teoria das cordas,
etc.), vai ver que esse papo de multiverso não é assim tão absurdo e que,
talvez, daqui a alguns anos, possamos pensar em propostas concretas para
conhecê-los, nem que seja teoricamente. No filme, há monstros esquisitos e
influências psíquicas negativas do lado de fora do mundo, mas cá na realidade, o
que será que haveria?
Nota: o quadro é do astrônomo francês Camille
Flammarion; foi usado para ilustrar seu livro “Astronomie populaire”.
Basicamente, é um tipo de questionamento sobre os limites físicos da existência
- o mundo tem fim? Se o tem, o que há depois dele?
Devo estimular minha pineal?
Sobretudo pela parte visual - com maquiagens
e efeitos impressionantes – “Do além” é um filme bem interessante. Se somarmos
a isso uma boa direção e a linda Barbara Cramp, teremos trash de ótima qualidade,
que merece ser visto por qualquer fã do gênero. Obviamente, há coisas negativas no filme, mas, no geral, o resultado é ótimo.
Antes do trailer, porém, cabe aqui uma
indicação. Se você já o viu ou só quer saber mais, o blog “Mundo tentacular”, especializado
em H.P. Lovecraft, fez uma resenha excelente a respeito do filme, abordando
aspectos dele que o Café com Tripas deixa de lado, como o
contexto da obra, quem fez, com que intuito, atores, precedentes, etc. Vale à
pena conferir aqui:
Trailer
Lembro com carinho desse filme, pois fez parte do início de minha adolescência e me fez começar a procurar os livros de Lovecraft, que no Brasil eram muito difíceis de se encontrar na época.
ResponderExcluirSe hoje ele parece desatualizado, por causa da idade dos efeitos especiais, quando foi lançado era realmente provocador e causava frios na espinha. E barbara Crampton era tão linda que facilmente esquecíamos que ela (tentava) interpretar uma psiquiatra.
Os filmes de Stuart Gordon baseados em Lovecraft foram sempre bons (com exceção de Dagon, onde ele realmente não acertou a mão), e a resenha ficou mesmo excelente.
Parabés. 8)
Cara, que livro você indicaria do Lovecraft para eu ler? Eu li "A tumba e outras histórias" que são uns contos da juventude dele, não muito bons. Eu queria ler alguma obra da maturidade dele, mas não manjo nada.
ResponderExcluirAgora do filme eu achei bem legal, apesar dos problemas que tem, acho que ele vai por um caminho bem alternativo. Em geral filmes trash tendem a se voltar para certos clichês, como assassinos, zumbis e coisas batidas assim. Esse filme segue por um caminho bem próprio, o que acho bem legal.