Vejamos: o Café com Tripas já analisou
filmes sobre geladeiras diabólicas, zumbis, assassinos canibais, palhaços
espaciais, padres loucos, pessoas com órgãos sexuais deformados, monstro do
armário e bizarrices mais. Deste modo, o que nos falta? Certamente um bocado de
coisas, como tomates assassinos e fantasmas, por exemplo, afinal, este é um
blog de cinema trash e esse universo não cessa de produzir coisas
interessantes. Entretanto, o filme de hoje vai de encontro a um tipo de criatura
não das novas mitologias, mas das antigas, aliás, bem pouco mencionadas: as
gárgulas.
Título
original: Rise of
the gargoyles
Lançamento: 2009 (EUA)
Duração: 90 minutos
Direção: Bill Corcoran
Lançamento: 2009 (EUA)
Duração: 90 minutos
Direção: Bill Corcoran
Filhos da escuridão
Um monstro que não decolou
Sendo direto, podemos constatar que
“Filhos da escuridão” não é exatamente trash, porém mais um filme de baixo
orçamento que faz do sangue e das tripas um recurso. Contudo, dada a sua
temática incomum, seus recursos toscos e sua precariedade geral, ele é
exatamente o tipo de obra que importa ao Café com Tripas acolher.
Vamos a ela.
Este voo vai para?
Jack, um professor de História da
Arquitetura fracassado, tenta recuperar sua vida lecionando em Paris. Ao entrar
em contato com uma antiga igreja em fase de demolição, acha nela vestígios de
uma arquitetura desconhecida. A partir daí ele têm sua vida circundada por
bárbaros assassinatos, todos aparentemente causados por uma criatura originária
do local.
É um pássaro? Um avião? Ah,
era só um passarinho mesmo...
“Quando você elimina o
impossível, o que restar, não importa o quão improvável, deve ser a resposta”
(Sherlock Holmes)
“Filhos da escuridão” conta a
trajetória de Jack na busca de esclarecimento quanto ao que ocorre - os
assassinatos e a criatura que os provoca - e, mais tarde, o confronto com ela.
Dada a pouca verba disponível para o filme, quase toda a ação é centrada nos
personagens (o protagonista e as pessoas que o ajudam) ao invés dos recursos
gráficos, como a própria gárgula que dá motivo ao filme. Assim, esperaríamos
que as atuações fossem bem exploradas e os personagens tivessem motivações
consistentes, desenvolvidas mediante o avançar da trama. Infelizmente, isso não
ocorre; ficamos restritos a tona de personagens superficiais. Deixam entrar a
ação, enquanto o drama - que poderia ser aproveitado para dar profundidade à
história – bate à porta, mas não passa.
Um aspecto bem interessante acerca disso
é a condição pífia de Jack: ele é um historiador da arquitetura fracassado que escreveu
um livro sustentando a existência de seres mitológicos em períodos históricos
anteriores. Imediatamente surge a questão: por que não haveria mais deles,
então? Sua resposta é que a subexistência desses seres dependeria da crença
que a humanidade depositava neles, de sorte que, na medida em que se passou a
desacreditar de sua realidade, eles sumiram. [1] Em outras palavras, quando a humanidade acreditava em gárgulas, a força dessa crença os tornava reais, porém, atualmente, como não cremos mais nesses seres, eles não mais existem. Como era de se esperar, a academia escarnece da hipótese de Jack e ele fica no
ostracismo, afinal, em tempos de ciência e lógica imperativas qualquer
pensamento fantástico que se pretenda real – deus, Atlântida ou gárgulas – é
tomado como ridículo, só nos cabendo o mundo frio e xoxo do materialismo
científico. O filme resvala nesse assunto, mas infelizmente não o aborda. Não sabemos qual é a extensão da relação entre fantasia e realidade dentro do universo de "Filhos da escuridão". Se gárgulas existem, o que mais existirá também? Porém, voltemos ao personagem. Após ficar desmoralizado, Jack sai dos EUA para
reconstruir sua vida noutro país, contudo, ele o faz carregando os mesmos
ideais e as mesmas perspectivas, tentando retomar uma boa posição na vida
repetindo os hábitos que o conduziram ao fracasso. Tal fato nos leva a
interpelar se o homem crê que é vítima da situação (e ele é, pois gárgulas
existem) ou simplesmente um tapado, incapaz de perceber que é burrice esperar
que as coisas mudem agindo como sempre. Com o avançar do filme, porém, o
impasse não se resolve, não descobrimos se o personagem encontra a renovação necessária,
ou até se consegue esfregar na cara de seus detratores o fato de que estavam
errados e ele tinha razão. O fim do filme é inconclusivo, algo bastante
decepcionante na obra.
Por
falar nisso, a ideia de verdade existe como uma sombra sobre os personagens sem
jamais vir a ser evidente. No meio de sua busca, Jack conta com a
ajuda de Nicole, uma repórter sensacionalista, e seu amigo cameraman Walsh para desvendar o caso da gárgula. Todos parecem, em
alguma medida, frustrados com os caminhos que suas vidas percorreram, desejando
alcançar alguma posição melhor do que aquela em que se encontram, inclusive,
vindo a arriscar suas vidas a fim de, não apenas esclarecer o mistério em que
estão participando, mas também de encontrar algo que permita que sejam
reconhecidos como profissionais. No caso da repórter, ela sempre fez matérias
sobre coisas que não acreditava - extraterrestres, fantasmas e outras bobagens
- apenas pela audiência que produzem. Quando procura a verdade quanto ao caso
de Jack, é apenas por que ela lhe é conveniente no momento, podendo alavancar
sua carreira. Outro personagem, um detetive que persegue o protagonista
cuidando ser ele o causador das mortes, profere a emblemática frase de Holmes: “Quando
você elimina o impossível, o que restar, não importa o quão improvável, deve
ser a resposta”, contudo, mesmo buscando a verdade com afinco não consegue
reconhecer sua face improvável, mesmo quando Jack lhe avisa o que está
acontecendo. Deixa, assim, de cumprir o próprio preceito que profere. Por fim, apenas o protagonista parece ser o
único que tem algum interesse genuíno na verdade, quer dizer, o único que a
busca por si mesma. Afinal, Jack paga o preço pela verdade mesmo quando está no
auge de sua carreira e continua a buscando depois que decai.
Para o alto e avante
"Você alguma vez
se perguntou por que
Faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar?
Mas você faz, sem saber por que, você faz!
E a vida é curta, por que deixar que o mundo
Lhe acorrente os pés?"
Faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar?
Mas você faz, sem saber por que, você faz!
E a vida é curta, por que deixar que o mundo
Lhe acorrente os pés?"
(“Você”, Raul Seixas)
Em alguma medida os personagens
estão envoltos em certo desencanto relativo ao rumo que tomaram. Embora Nicole tenha
toda uma carreira assentada sobre um tipo de jornalismo, ela o desacredita,
exercendo a profissão sem muito comprometimento. O afã de ascender na carreira -
descobrindo o caso da gárgula - não advém de um desejo de provar o valor de seu
trabalho, mas apenas de reconhecimento pessoal. Em suma, mais um caso de alguém
que faz o que faz sem um porquê, tentando se arranjar com os meios que
encontra, sem, contudo, ter qualquer paixão ou ideal. Como bem sabemos,
nossas faculdades estão repletas desse tipo de gente. Mesmo Jack, que tem algum
sentimento genuíno pelo próprio trabalho, é simplesmente levado pela
circunstância enquanto tenta dominá-la, sem que isso seja feito por qualquer
motivo particular - ele não parece preocupado em fazer o que faz por
qualquer razão.
Obviamente, tais coisas se devem,
sobretudo, a problemas na montagem do filme, como as atuações ruins e falhas no
roteiro, pois há respostas possíveis a essas questões, contudo, elas não
transparecem nem impulsionam a história, existindo mais como um detalhe que um
componente constitutivo dela.
Devo pousar aqui?
Ao contrário do que pode parecer
quando colocamos em evidencia seus defeitos, “Filhos da escuridão” não é um
filme medonho. A bem dizer, ele tem muitas virtudes dentro de sua precariedade,
podendo ser assistido num fim de tarde enquanto comemos pipoca e rimos de um
padre usando um rifle de alta precisão, personagens correndo de um lado para o
outro gritando interjeições, tentando transmitir emoção com caras e bocas, entre
outras coisas. A falta de recursos impediu que houvesse cenas longas com a
gárgula ou mesmo que ação fosse mais interessante, o que pôs em foco a dramaturgia
bastante fraca do filme. Porém, independentemente
disso, o diretor consegue fazer bom uso dessas ferramentas, usando bem o que
possui e não dependendo tanto daquilo que lhe falta: dinheiro e recursos.
Talvez, com uma melhor preparação do elenco, algumas reformulações no roteiro e
uma boa injeção de dólares, “Filhos da escuridão” pudesse ter sido um filme muito
melhor. Não foi o caso desta vez, mas o resultado não é de se desprezar.
Assista se estiver ocioso e não mais que
isso.
[1]
Por sinal, eis uma ideia bastante elegante. Inclusive, o RPG “Mago A Ascensão”
a desenvolve de um modo muito semelhante a esse, só que, com mais profundidade.
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