sexta-feira, 20 de abril de 2012

Resenha: O dia da besta (El dia de la bestia)


Você é normal? Lida bem com as situações cotidianas - enfrentando a dor, sentindo alegria, mas sem pender muito para qualquer lado - não sendo nem um depressivo, tampouco um histérico? Você faz coisas normais? Vai ao trabalho, estuda, encontra seus amigos, realiza seus projetos pessoais e busca viver dignamente? Consegue existir de um modo razoável apesar do mundo nem sempre ser justo? É feliz?
Sim?
Com efeito, você consegue suportar a vida apesar de compartilhar a terra com pessoas feridas e despossuídas? Continua pagando seus impostos para um Estado que mantém o privilégio de ricos sobre os pobres? Tem esperança no futuro quando o passado e o presente são dominados pela injustiça? Lida bem com o fato de ter o privilégio de saber ler, ter um computador com acesso a uma internet (não censurada) e ser capaz de acessar um texto de crítica cinematográfica, quando vários dos seus conterrâneos morrem pela fome e pela violência sem terem qualquer chance na vida?
Então talvez você não seja normal, mas profundamente louco.
 



 


Título original: El dia de la bestia
Lançamento: Espanha (1995)
Duração: 103 minutos
Direção: Alex de la Iglesia





 
O dia da besta
Beatitude e absurdo

“Me dê um corpo vivo para eu encher a minha pança, três quilos de alcatra com moqueca de esperança”
 (O rock do diabo, Raul Seixas)


“El dia de La bestia” é um dos filmes mais divertidos que assisti recentemente, misturando muitas temáticas interessantes com situações hilárias. O filme espanhol traz temas muito instigantes sobre um ponto de vista bastante original. Olhando de perto, ele não é propriamente trash, porém um filme underground e obscuro, que mistura uma boa medida de humor negro e ação numa trama deveras inteligente.
Antes de iniciar a resenha, porém, convém mencionar que haveria muitas outras coisas para se abordar no filme as quais deixamos de fora a fim de evitar uma resenha demasiadamente longa. Ignoramos aqui várias questões que poderiam ser bem exploradas, como os outros personagens da película que ajudam Angel em sua jornada, por exemplo. Contudo, que isso sirva de estímulo para que você, leitor, busque o assistir o filme.

Qual é a reza?

Padre Angel, um profundo estudioso de exegese bíblica, descobre por meio de suas pesquisas o dia e o local do nascimento do anticristo. Com isso, ele decide evitar o desastre se tornando um pecador e se aliando a Satã para desvendar seus planos e pará-lo. Durante sua jornada por uma Madri em ruínas, ele arrebata outras pessoas para sua busca, fazendo com que descrentes passem a ver o mundo segundo sua visão agraciada.

Na casa do senhor não existe...

“Não ameis o mundo, nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não vem do Pai, mas sim do mundo. Ora, o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus, permanece para sempre.”
 (Bíblia, João 2:15-17)

             Há vários pontos interessantes a se abordar no filme, contudo, ele é tão conciso, tendo uma trama tão bem amarrada, que encontramos dificuldade em separar os diversos aspectos para abordá-los individualmente. Ao mesmo tempo em que se vê a resolução das ações do padre, o diretor também nos informa sutilmente quais são as ideias transmitidas pela história. Uma característica dos clássicos, aliás.
 Por detrás da história de Angel e seus aliados existe um ambiente muito bem definido, elegantemente descrito na relação dos personagens com a cidade. Ao tentar descobrir e interromper os planos de Satã, o padre vaga por uma Espanha imunda, excludente e discriminadora (tipo São Paulo). Um mundinho medíocre e decadente, existente fora dos cartões postais e das touradas glamourosas. Com isso, embora a ideia de demônio faça parte da história, ela existe muito mais como um nome para a adversidade do que como um adversário concreto. O mal não aparece na forma de um ser específico que serve de oposição aos personagens, como um Sauron ou Coringa, mas de uma condição decadente do mundo que tentam salvar. Angel quer proteger um mundo que é tão podre quanto o próprio Satã que deseja dominá-lo, sem perceber que não está lutando contra alguém específico, mas contra sua própria condição humana e mesquinha. E embora ele não se pergunte se isso vale ou não à pena, podemos perguntar por nós mesmos: afinal, o que há para se salvar no mundo? Em suma: se a humanidade acabar, se estará perdendo alguma coisa?
 Angel tenta todo o tempo proteger o mundo de um mal que lhe é externo, ou seja, de Satã tentando impor sua força sobre a humanidade. Ele não concebe, porém, o mal que é intrínseco a condição mortal e que se permite seduzir pelo satanismo, criando maneiras próprias de crueldade e barbárie. Assim, de modo independente quanto às ações do padre vemos, por exemplo, um grupo criminoso conhecido como “Limpa Madri” decidir eliminar a cidade dos indivíduos que consideram indesejados: eles espancam e ateiam fogo em mendigos e desabrigados. Enquanto o cura cuida de seus afazeres, vemos que a juventude se destrói em niilismo e drogas nos subúrbios da cidade; que a mídia a qual deveria informar e elevar, na verdade aliena o povo com um sensacionalismo vulgar. Afinal, lutar contra o mal é lutar contra quem? O diabo? As autoridades? Os meios de comunicação?  A mentalidade que permite que as coisas sejam como são? O que “O dia da besta” sugere é que o mal toma o mundo de maneira tão gritante que um chifrudo de cascos parece ser o menor de nossos problemas...

Ave Lúcifer


Um dos grandes trunfos de “O dia da besta” é permitir uma dupla abordagem das motivações de Angel. Por um lado, podemos vê-lo como um padre escolhido por Deus para deter a chegada do anticristo, fazendo todo o possível para cumprir sua missão; por outro, ele pode ser visto como louco que comete atrocidades por conta de uma fé insana. Com isso, embora o filme tenda mais para a primeira explicação (ou uma mistura de ambas), a segunda jamais é descartada: chega-se ao fim da história sem saber se assistimos a um conto sobre fé ou loucura. A impressão é de que a diferença entre elas não é assim tão grande. Todavia, ao mesmo tempo em que esse questionamento existe, o filme evita a mera condenação da fé e da religião como irracionalidades. “O dia da besta” não insinua que devemos adotar a Filosofia e a Ciência ao invés da fé, mas que num mundo em pedaços não há alternativas racionais à loucura. Podemos aceitar a podridão do mundo, nos alienar ou enlouquecer. Se, de um lado, é possível interpelar se Angel está mesmo lidando com o capeta ou é apenas um louco, de outro, nota-se que isso não faz a menor diferença dentro do absurdo da circunstancia. Para quem questionar isso, restarão certas questões prementes: e se a loucura for à única solução num mundo em que a normalidade é intolerável? E se o mundo se tornar tão insuportável que não haverá mais distinção entre a salvação e a condenação?
 Ao fim de “O dia da besta” não sabemos se o padre se condena, adentrando profundamente na fé irracional ou se atinge a beatitude, vencendo o demônio e redimindo seus pecados através de um ato salvador. Aliás, quem saberia? Deus?
 Ele não faz parte dessa história.


O diabo é o pai do rock

            Em “O dia da besta” nada é colocado à toa, de sorte que os detalhes tem alguma função na trama, seja ajudando a construir um clima, servindo como elementos que serão reapropriados em algum momento ou mesmo como sutilezas que ironizam a própria condição do filme (como o pôster da Xuxa no quarto do menino possuído, por exemplo). A trilha sonora é excelente, toda construída sobre rock pesado, servindo-se dos estereótipos comuns ao estilo para tornar tudo mais obscuro e decadente. Os efeitos especiais são bacanas e sombrios (quase todo o filme se passa à noite), sem ter a intenção de tirar trama do seu protagonismo para admirar pirotecnias tecnológicas. Ele tem por função reforçar as concepções dos personagens e inserir o absurdo e o sobrenatural na história.
Entretanto, ainda que existam alguns pontos menos interessantes e certas coisas até desnecessárias, isso não torna o filme menos capaz de suscitar sentimentos deliciosos e pensamentos inconvenientes. Excelente.

Devo aceitar “O dia da besta” como meu salvador?

            Sim, você deve aceitar “O dia da besta” como seu salvador. Ele é excelente, um dos melhores já resenhados aqui no Café com Tripas. Largue seu emprego, sua igreja, seus parentes, filhos, valores, alugue o filme e se converta, pois só isso te salvará.

Amém.
  
Trailer:





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