domingo, 24 de novembro de 2019

Resenha: Satanic Panic


              Eu sei que vocês choraram, acenderam velas pretas na lua cheia e fizeram promessas pro tinhoso. É justamente por isso que estamos de volta: nós adoramos um drama.
Qual seria a graça de sair postando aqui todas as semanas se não rolar sangue, lágrimas e aqueles bonequinhos de vudu com nossa cara pedindo pra voltar?
Então prepare o ritual, tira a roupa, banhe-se nas vísceras do sacrifício e vem com a gente, porque hoje é dia de falar de tudo que mais gostamos: gore, demônios e claro... pizza.


Título original: Satanic panic
Lançamento: 2019
Duração: 85 minutos
Direção: Chelsea Stardust Peters
                Sam, uma jovem com problemas financeiros, consegue um trabalho de entregadora de pizzas por meio de um conhecido.  Em sua primeira noite de trabalho, ela acaba aceitando uma grande entrega fora da zona de cobertura na esperança de conseguir uma boa gorjeta, mas tudo começa a ficar meio estranho quando a gorjeta é ignorada, a gasolina de sua moto acaba e as pessoas da casa querem usá-la como sacrifício para um ritual satânico.

Uma virgem jogada aos demônios

            A primeira vista, Satanic Panic é um filme que vai direto ao assunto e não perde tanto tempo desenvolvendo personagens ou dando profundidade à situação. Sua proposta quanto ao roteiro é simples: uma jovem entregadora de pizzas precisa escapar de satanistas burgueses nada além disso.
A diretora sabe que alguém procura esse tipo de filme não está necessariamente interessada em um papo cabeça, mas sim em um escapismo divertido e sangrento. Entretanto, é impossível dizer que o filme é vazio. Existem algumas camadas de profundidade pra quem estiver interessado em observar. Durante o filme, vamos percebendo em diálogos e atitudes das personagens que existe algo além de satanistas ricos caçando uma virgem pro seu ritual demoníaco. Classes sociais, religião, feminismo, virgindade e culpa, são alguns dos temas tocados pelo filme.
               Apesar de podermos identificar todos esses temas, o detalhe que mais me chama atenção é a “inocência” da personagem. Em quase todo filme de terror fica claro a necessidade de explorar a burrice de certos personagens para existir facilitações narrativas, todavia, aqui, apesar da protagonista não tomar as melhores decisões, isso soa muito mais como uma ingenuidade perante o mundo e as ameaças que ele apresenta, do que simplesmente estupidez. É como se ela não compreendesse o mal e não estivesse preparada pra ele, o que acaba gerando uma dualidade um tanto peculiar, porque mesmo tendo esse ar de inocência e não compreendendo as reais ameaças, Sam não deixa de ser uma protagonista forte, que apesar de já ter passado por diversos outros problemas, é obrigada a continuar se adaptando pra lidar com as novas ameaças.
               Ainda nesse ponto, algo que gosto no filme é como vários detalhes (mesmo que bobos) apresentados no inicio do filme, acabam tendo conexões com a história ou protagonista, e você só vai reparando neles conforme a história se desenvolve, como se tudo estivesse ali por uma razão. Um exemplo disso é a primeira cena do filme, em que Sam está tocando violão e cantando uma musica que não parece fazer sentido nenhum, parecendo que está ali só pelo non-sense e para dar um ar cômico, mas que você acaba descobrindo a razão mais tarde e não sendo tão engraçado quanto parece. A própria “inocência” da personagem não é gratuita, existe um motivo para ela ser assim e, mesmo existindo poucos diálogos sobre isso, vamos descobrir por meio deles que sua vida foi um tanto quanto diferente das outras pessoas de sua idade.
               Dito isso, podemos fazer uma pausa nas discussões sérias, porque definitivamente não é apenas disso que o filme trata, e aproveitar todas as tosqueiras e bizarrices que o filme nos proporciona.


Um cintaralho da morte

               Apesar de ter assuntos legais pra pagarmos de inteligente e fingirmos que entendemos de subjetividades artísticas e do mundo que nos cerca, nada disso seria importante se o filme não cumprisse sua proposta como filme de “terror/humor”. E isso ele faz muito bem.
               Satanic panic entrega exatamente aquilo que você busca (talvez um pouco mais) quando decide ver um filme cuja sinopse diz “satanistas da alta sociedade, pizza e virgem para sacrifício”. Aceitando os temas propostos nas entrelinhas ou não, o entretenimento é garantido. Em nenhum momento o filme se leva a sério, satisfazendo os desejos de todo fã de filmes trash: mortes bizarras, efeitos práticos, non-sense, atuações duvidosas, roteiro que vai por caminhos estranhos, gore, etc.
               Algo que gosto bastante no filme é que ele faz uma homenagem as produções oitentistas, mas sem perder o frescor da modernidade. Ele consegue resgatar coisas que ficaram lá atrás e que não são muito utilizadas hoje em dia (pelo menos em produções mais comerciais) e ainda apresentar de uma nova forma, indo na contramão de um terror mais “realista” e “pé no chão” ou cheios de efeitos especiais duvidosos. É claro que existem muitos filmes atuais que bebem dessa fonte oitentista e que aproveitam tão bem quanto ou até melhor que Satanic Panic, mas acho importante destacar isso por ser um filme que possivelmente tem/terá um alcance maior por ter alguns atores um pouco mais famosos no elenco.
               Ok, o filme tem gore, nojeiras, algumas discussões relevantes, mas existe um outro fator que deixa tudo ainda mais interessante, que é a perspectiva feminina sobre os filmes de terror.

           
Horror feminino

"Women have a relationship with blood that men do not and will never have. Also, unfortunately, in the world fear is something women have to live amongst every day in their daily life. It's a way to exorcise any of those demons you're carrying around that no other genre lets you do." (STARDUST, Chelsea)

            Se você é como nós e gosta de ver o filme além das tripas, vai perceber que ele é um tanto quanto diferente do que estamos acostumados, afinal temos uma mulher na direção, dando uma nova perspectiva e mostrando que é possível fazer filmes de terror sem os estereótipos femininos com pouca roupa sendo alvo de assassinos predadores de armas grandes. Ou o conservadorismo típico dos filmes dos anos 80 que sempre matavam jovens enquanto transavam, como um castigo divino por se deixar levar pela luxúria. Ou a exploração da nudez feminina, sem necessidade, em diversos títulos de terror.
Resumindo, por mais que amemos o gênero, não dá pra negar que o terror costuma tratar as mulheres de um jeito um tanto quanto questionável. E isso não é sem o motivo: boa parte do público do gênero anseia por sangue e peitões, mas é ótimo ver que as coisas estão mudando com o tempo. Não apenas por existirem mais mulheres na direção, mas também por elas apostarem em ideias diferentes que não se resumem a um louco armado correndo atrás de boazudas. Não me entenda mal, nós adoramos os slashers, mas não podemos ficar repetindo as mesmas fórmulas eternamente sem inová-las/atualiza-las.
               Dito isso, vamos nos ater ao filme. Satanic Panic é um filme sobre mulheres, todos os papeis de destaque são destinados a elas, os homens no filme não passam de elenco de apoio. O protagonismo, as vilãs, o elenco coadjuvante, ou seja, o poder está todo na mão das atrizes. Aqui o elenco masculino não é explorado nem mesmo como ameaça, o que é muito interessante, pois todos os homens acabam representando uma certa infantilidade, seja na figura do homem babão que não pode ver um rabo de saia ou na figura daquele que acha que vai resolver os problemas com seu pau. Pequenas ilusões de poder em um mundo dominado por mulheres.
               A partir dessa postura, a diretora, como dito anteriormente, vai entrando em outros temas ligados ao assunto com certa ironia, jogando na cara do telespectador cenas cômicas porem cotidianas: homens se dizendo feministas prestes a abusar de alguém, a exaltação da virgindade, pessoas de uma mesmo grupo puxando tapete um do outro em busca do poder, etc.
               Enfim, as ameaças que Sam enfrenta no filme são uma alusão às ameaças sociais diárias, uma sátira social com um pouco mais de humor e sanguinolência. Se você prestar atenção, verá que praticamente todos os personagens que estão ao redor da protagonista tentam se aproveitar dela de alguma maneira, a relação nunca é balanceada; sempre há um interesse. O conhecido arruma o emprego pra ela porque tem interesse sexual, o dono da pizzaria se aproveita da sua situação econômica para conseguir um trabalho barato, as pessoas que pedem pizza nunca querem só a pizza, os satanistas (que não se diferem muito dos cristãos que conhecemos) querem ela como oferenda para conseguir dinheiro e poder, outro se propõe a ajuda-la mas de um jeito bem duvidoso. E assim por diante. O mundo é uma grande ameaça que a todo momento está obrigando a protagonista a ser mais resistente.
               Entretanto, apesar de haver muita merda ao seu redor, Sam encontra o suporte em outra mulher que, mesmo de um mundos e criações completamente diferente, está passando por coisas semelhantes. Como se a diretora quisesse dizer: “eu sei que tá foda, mas se uma der a mão pra outra, é possível lutar”. Apesar de parecer uma mensagem um tanto quanto positiva (e nesse sentido é), o filme deixa claro que o problema é sempre maior do que ele aparenta, seja pelo problema ser cíclico (um malvado cai; outro toma seu lugar), seja por sempre haver alguém mais forte e você nunca saber o tamanho do problema a ser enfrentado ou, até mesmo, por ele não ser necessariamente externo ao indivíduo (no caso, a protagonista).
                             


Dois coelhinhos peludos

Por fim, outro detalhe que o filme explora é a questão do nome da protagonista, Sam. Durante todo o filme, Sam vai acabar encontrando diversos outros personagens que também são chamadas de Sam, e é algo tão recorrente que não podemos dizer que está ali por acaso. E é curioso perceber como as relações com o nome vão se alterando. No início, por ela ainda demonstrar certa ingenuidade, o outro Sam se utiliza daquilo para tirar proveito dela, porém, no fim quando ela já está mais ciente do mundo que a cerca, ela passa a ter mais controle não apenas da situação, mas também do seu nome.
               Não sei exatamente a intenção da diretora/roteirista com essa coisa dos nomes, mas uma das interpretações que podemos tirar é que os outros personagens são projeções da protagonista, e cada um desses outros personagens refletisse o momento pelo qual ela passa. O filme reforça que existe uma conexão entre as/os Sams do mundo. É claro que não existe uma obrigatoriedade, mas ela sente necessidade de fazer parte disso, talvez por ser uma forma de pertencer a algo, ou até mesmo se conhecer melhor, afinal compartilham algo em comum. Entretanto, a vida (ou no caso o filme), vai mostrando que as coisas não são bem assim, e que ela precisa entender o próprio nome, sem depender dos/das “xarás”.
               Ou seja, esse conflito com o próprio nome pode ser visto como um conflito com sua própria identidade, há tantos Sams por ai: “Quem sou eu?”, “Qual é o meu lugar no mundo?”, “Qual a minha ligação com eles?”. Não acho que o filme explora tão bem esse assunto, pelo menos da perspectiva que eu vejo, mas, no fundo, ele acaba caindo naquela discussão sobre somente se conhecer a partir da perspectiva do outro, afinal, a protagonista começa a amadurecer sua visão a partir do momento em que existem outros Sams olhando pra Sam.
              

Devo pedir minha pizza com sangue de virgem e linguiça de bode?

               Logico, não há sabor melhor para comer após dançar pelado na floresta em volta da fogueira enquanto assiste pessoas de bem queimando.
               Apesar de um filme divertido e com boas ideias, Satanic panic não tem nada de muito inovador. É claro que é bacana ver como as ideias são desenvolvidas e a mudança de perspectiva é trabalhada, mas, no fim, ele é um filme de terror que segue os padrões do gênero. Temos uma “final girl” que mesmo enfrentando perigos, vai dar a volta por cima. Temos mortes estilizadas para satisfazer a sede de sangue dos espectadores, efeitos duvidosos (porem divertidos), cultos satânicos, etc.
               Mas não me entendam mal, a falta de inovação em questão de roteiro não é nenhum problema. O filme parece ter plena consciência disso e utiliza isso a seu favor.                Ele pega essa estrutura que estamos cansados de ver (mentira: é difícil cansar desses pastelões do terror) e dão uma nova vida, conseguindo encontrar certa singularidade mesmo em meio a tantas produções, e parte disso é justamente pelas discussões que podem ser levantadas nas entrelinhas, mesmo que possivelmente muitos não irão ignorar.
               Então, independente de querer se envolver nessas discussões pseudo-inteligentes que levantamos ou simplesmente ver um filme trash divertido, Satanic Panic é uma obra que merece atenção de qualquer um que curta o gênero, servindo até mesmo pra apresentar para coleguinhas que não conhecem muito do universo trash, antes de ir pras drogas mais pesadas.
              
 Trailer

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