Talvez você seja um serzinho cético como eu e não acredite em coisas
sobrenaturais, mas se tem uma coisa que é fato é que muitas pessoas acreditam e
juram de pé junto que presenciaram certos fenômenos. Assim, por mais que você
fique aí, no auge da sua prepotência, julgando como bobinhos os mortais que
acreditam em seres extraterrenos, é bom ficar esperto, pois nunca saberemos o
quão forte é a jura de uma bruxa.
“Independente disso, a Sailor acredita que foi uma
mordida da menina. A Annie. Ela acha que a... a coisa da floresta mandou a
menina de volta, atrás dela. Ou sei lá, achava até a gente explicar pra ela que
isso é loucura.
Mas agora ela tá com o caroço, e aí---
Peraí. Caroço?
A gente levou ela num especialista e ninguém sabe o
que é o negócio. Se é linfoma, se é reação alérgica à ferida ou outra coisa.
Tamos esperando o resultado da biópsia. Mas a gente... a gente não sabe nada.”
Titulo original: Wytches
Autor: Scott Snyder
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Paginas: 192
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Após passar por alguns problemas na cidade em que morava, a adolescente
Sailor Rooks e seus pais vão pra Litchfield com o objetivo de escapar dos
traumas do passado e reconstruir a vida. Mas existe algo na floresta que está
observando sua chegada e não deixará a jovem em paz.
A jura
das bruxas
Como você já deve ter deduzido pelo título da HQ, aqui teremos uma
história sobre bruxas, entretanto, esqueça suas referências sobre o tema; aqui
elas se manifestam e comportam de um jeito bem diferente daquele que conhecemos.
Não teremos varinhas, vassouras, mulheres peladas dançando na floresta, pacto
com demônios, bodes, magias ou coisas do tipo.
Na historia de Scott Snyder, as bruxas são seres que vivem na floresta e
possuem uma fisionomia não humana, com o corpo alongado e “monstruoso”. Não dá
pra saber exatamente o que elas são ou como surgiram, a informação que temos, e
que será relevante na história, é que elas se alimentam de pessoas instáveis
emocionalmente, como é o caso da protagonista que falaremos mais adiante, e,
principalmente, pessoas juradas.
A jura é uma espécie de maldição/sacrifício. Uma pessoa jura a outra
como barganha para receber favores das bruxas, que pode ser desde coisas
simples até “imortalidade”. Ou seja, se você jura alguém, essa pessoa passa ser
um alvo das bruxas enquanto você acaba recebendo aquilo que você deseja.
Dito isso, voltamos ao núcleo central.
Jogando
os Rooks no caldeirão
A HQ começa no ano de 1919, dando uma pequena introdução do que será
visto no decorrer do quadrinho e assim despertar a curiosidade no leitor. Nas 4
primeiras paginas vemos uma mulher presa dentro de uma árvore gritando por
ajuda, seu filho se aproxima com uma grande pedra nas mãos, dando a entender
que ele ira ajudar a mãe, mas ele faz exatamente o oposto, usando a pedra para
matá-la e dizendo: “Jura é jura”.
Criando esse clima tenso e
estranho para chocar o leitor logo de cara, a história já corta para os dias
atuais apresentando a família Rooks. Após Sailor ter um problema com uma colega
da escola, seus pais acreditam que seriam uma boa mudar da cidade e tentar
recomeçar em um lugar novo onde ninguém sabe sobre o assunto. A principio, dá
pra perceber que ela tem uma relação bem interessante e próxima com seu pai
Charlie, que é o autor de uma serie de livros infantis sobre um garoto preso em
um parque de diversão; já Lucy, a mãe, é uma enfermeira (?) que devido a um
acidente de carro acabou ficando em uma cadeira de rodas.
Apesar dos problemas e do emocional abalado da família, as coisas
parecem estar melhorando e a nova cidade parece ser o lugar perfeito pra esse
recomeço. Entretanto, logo Sailor vai perceber que tem algo errado ali, existe
algo naquela cidade, e principalmente na floresta, que está te perseguindo.
Alguns fantasmas do passado sempre retornam.
Fragmentos
Algo que eu gostei bastante em Wytches é a maneira como a história é
conduzida. Do inicio ao fim, a narrativa é toda fragmentada, apesar da história
dos Rooks na nova cidade ser a principal linha temporal, a todo momento ela vai
sendo cortada com flashbacks do passado, cenas de outra localidade ou
até mesmo trechos do livro que Charlie está escrevendo. Então a todo momento o
leitor se pega confuso e sem saber exatamente onde está, como se o autor nunca
permitisse que você colocasse os pés no chão e pudesse parar pra compreender a
história, por estar sempre nesse vórtice cheio de informações que vão sendo
jogadas ao poucos, mas que no final se completam. Então as vezes você está no
meio de uma passagem super tensa, e quando vira a pagina está no lançamento de
um livro de Charlie.
Para desenvolver melhor a resenha, eu preciso falar sobre alguns
detalhes sobre a trama, não vou dar spoilers sobre o fim, mas caso você
não tenha lido e não queira saber nada além da sinopse, eu recomendo pular pro
próximo tópico. Nas primeiras paginas sobre os Rooks, temos a impressão que a
família é super unida e, apesar dos problemas recentes, eles sempre tiveram uma
relação harmoniosa e coesa, mas essas rupturas narrativas servem exatamente
para mostrar questões sobre a família que não são perceptíveis a primeira
vista.
Se no presente vemos uma relação bem bacana entre pai e filha, no
passado não era exatamente assim, afinal Charlie teve problemas com a bebida
por bastante tempo, o que gerou uma instabilidade familiar; do mesmo modo,
podemos ver o acidente de Lucy, que foi algo que mudou a família como um todo,
afinal eles tiveram que se adaptar a nova situação da mãe. E agora, no momento
em que a historia se passa, é a filha que está passando por problemas. Então durante
a leitura ficamos com a impressão é que sempre há uma adversidade rodeando
aquelas pessoas, e sempre que as coisas parecem se acalmar e melhorar, algo
acontece e as joga novamente em algum tipo de crise.
Apesar de ser uma historia curta que dá pra ler em uma sentada, é
interessante como ele consegue trabalhar a complexidade dos personagens mesmo
sem focar diretamente nessa questão. É claro que não há desenvolvimento como um
romance, mas dentro desse formato enxuto o autor consegue dar vida para as personagens.
A
verdadeira bruxaria
Uma coisa que não está explicitamente na obra, mas que acho bastante
relevante pra aprofundar a discussão sobre a HQ, é a força da “jura” nesse
contexto em que a história se passa. Bom, aqui também poderá ter uma coisa ou
outra de spoiler.
Durante a leitura não vamos ter muitos detalhes a respeito disso, o que
sabemos é que você joga a jura sobre alguém, e essa pessoa serve de sacrifício
para que as bruxas realizem algo que você deseja. Se pararmos pra pensar sobre
isso, já podemos chegar a algumas conclusões e entrar em questões que estão na
HQ, mas que em que em nenhum momento são diretamente enunciadas. A principal
delas é a importância da sociedade nesse sistema de juras.
As bruxas têm muita força e isso é indiscutível, tanto que elas
conseguem fazer um morto voltar a vida, por exemplo. A todo momento no entanto
fica o sentimento de que elas só desfrutam desse poder porque aquela sociedade
permite, logo, caso houvesse uma resistência das pessoas em jogar juras sobre
as outras, será que essas bruxas continuariam relevantes naquele cenário?
A primeira vista as bruxas são as vilãs da HQ, mas elas só agem com o
aval das pessoas que jogaram maldições umas sobre as outras, e muitas vezes as
próprias pessoas cometem o crime sobre o pretexto de que é a vontade da bruxa.
Acho que você, jovem leitor, já deve ter entendido onde eu quero chegar.
As bruxas são más? Provavelmente, não tem jeito de um bichinho feio
desses ser bonzinho, mas após a leitura parece que elas são apenas um instrumento
do verdadeiro mal, que é a o egoísmo e a ganância humana, afinal um desejo seu
vale muito mais do que a vida do outro. Então Wytches não deixa de ser
uma metáfora pra varias coisas que vemos por aí —
é muito fácil cometer crimes que te beneficiam e jogar a culpa em outro ser. “O
problema não sou eu que jurei você de morte pra ganhar dinheiros, o problema é
da bruxa que realiza os meus desejos”.
Entendeu o problema, né?
Quem você
irá jurar?
Bom, apesar de ter gostado de Wytches, eu não achei a obra muito
criativa ou surpreendente. Embora ela até tenha um plot twist, não é
nada que você ja não tenha visto antes. Continua valendo a pena, mas
dificilmente (acho eu) será um quadrinho que você levara pra vida toda. Logo
que terminei eu fiquei na dúvida se tinha gostado ou não, mas quando acaba a HQ
tem uns extras que me fizeram passar a ver a obra com outros olhos e simpatizar
mais com ela. Algo que é bem interessante, porque a partir do momento em que você
conhece aquele contexto, a obra passa a ter um significado diferente e se torna
mais atrativa.
A edição conta com alguns textos do autor falando sobre seu processo
criativo, de onde veio a ideia, algumas curiosidades sobre ele e sobre a HQ, e
tal, além de rascunhos iniciais da arte e do processo de coloração. Eu achei
esse conteúdo adicional tão bacana quanto o quadrinho em si, pois eles se
complementam bem, é bem provável que sem esses extras eu tivesse gostado menos
de Wytches.
Eu sou bem leigo nesse assunto, mas a arte de Wytches é incrível: ela
combina perfeitamente com o texto, tendo um estilo bem sombrio com uma espécie
de aquarela que deixa tudo muito bonito. Esse estilo valoriza ainda mais o tema
principal da HQ que são as bruxas, pois consegue manter o clima de
estranhamento o tempo todo. Em nenhum momento vemos com clareza a aparência das
bruxas, elas sempre são apresentadas nas sombras, ou com close em algum
parte do corpo, o que é legal porque em impede ainda mais de sabermos
exatamente o que elas são, como já falamos anteriormente.
Resumindo, Wytches, que foi mandado aqui para o QG do Café
graças à nossa parceria com a Darkside, é uma HQ muito bonita e com uma
história bem interessante, que tem extras quase tão interessantes quanto o
conteúdo principal. Apesar de ser bem curta, ela cumpre seu objetivo e consegue
entregar aquilo que buscamos no terror: sangue, gore e criaturas
amendrontadoras. Assim, caso você goste de terror e se interesse pelo tema,
fica a recomendação, mas caso sua referencia de bruxa seja Harry Potter, acho
melhor evitar.
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