terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Literatura: Coração satânico (William Hjortsberg)


               Por mais que você tente negar e se prenda a sua educação católica, uma coisa é fato: hora ou outra nós venderemos nossa alma pro coisa ruim, algumas pessoas por mais, outras por menos, mas todos nós temos um preço pra nossa alma. A questão é: por quanto você compraria seu ticket pro inferno?
               Claro, sempre existe a possibilidade de tentar dar um calote, mas poder ter certeza que o diabo sabe de todos os truques sujos da humanidade.




               “Sombras se deslocavam de forma grotesca sob a luz incerta das velas. A batida demoníaca dos tambores dominou os dançarinos com seu feitiço vibrante. Seus olhos rolaram para dentro das pálpebras; suas bocas espumavam enquanto eles cantavam. Homens e mulheres se esfregavam uns nos outros e gemiam, as pélvis se contorcendo num êxtase sexual. Os brancos dos olhos brilhavam como opalas em seus rostos suados.”


Título original: Falling Angel
Autor: William Hjortsberg
Ano: 1978
Editora: Darkside books
Páginas: 315
               Harry Angel é um detetive particular de Nova York que foi contratado por Louis Cyphre para encontrar Johnny Favorite, um músico de grande sucesso que teve sua carreira interrompida quando voltou com várias sequelas da Segunda Guerra Mundial. Apesar dos documentos e das informações públicas dizerem que Favorite está em coma desde o seu retorno, o contratante de Angel, que tem assuntos pendentes com o músico, acredita que ele fugiu do hospital e que armou toda a situação para enganá-lo.

Tem cheirinho de enxofre aí...

Bom, sim Harry Angel é o típico detetive de conto policial, ele adora uma bebida, utiliza de métodos não muito ortodoxos no seu trabalho e tem aquele jeito canastrão já conhecido dos livros e filmes do gênero, o que basta para saber um pouco de quem é o personagem. Claro que as coisas são mais complexas, mas para esta resenha isto basta.
A história começa quando Angel recebe a ligação de um advogado falando que um de seus clientes está interessado nos serviços do detetive. Ao se encontrar com este cliente, Luis Cypher (se você tem o mínimo de malícia já entende a referência), ele lhe diz que está procurando um homem chamado Johnny Favorite, um músico que acabou sendo convocado pra guerra e voltou em coma para os EUA. Apesar de os relatórios médicos dizerem que Favorite permanece internado, Cypher desconfia que o músico já saiu do coma e que está usando de sua influência e dinheiro para passar despercebido e ninguém saber do seu paradeiro.
Angel desde o início percebe que existe algo errado, afinal seu cliente é um homem bem misterioso e não dá qualquer informação sobre a pessoa a ser encontrada ou da sua relação com a mesma, afinal ninguém gastaria tanto dinheiro assim para encontrar uma pessoa sem um bom motivo. Mesmo assim, o detetive acaba aceitando, afinal não parece um trabalho tão difícil e o pagamento é acima do esperado.
Mas como diria sua vô, quando a esmola é grande, o santo desconfia...


Espetem o alfinete, o músico sumiu

Por ser um thriller, não há muito mais o que falar sobre a história sem dar spoilers, então vamos focar nos elementos que estão presente, mas sem aprofundar muito no significado deles.
A questão principal do livro gira em torno do paradeiro de Favorite, afinal não é normal alguém tão famoso sumir sem deixar rastros. As notícias dizem que ele ainda está internado em um hospital, porém conforme Angel vai investigando vamos percebendo que não é tão simples assim, o que leva o protagonista a buscar novas fontes porque, a princípio, não existe informação nenhuma que possa ajudá-lo. Se no presente ninguém viu ou ouviu falar do músico, o detetive começa a investigar o passado para tentar encontrar qualquer coisa que possa ajudar na investigação.
Conforme Angel começa a desenterrar o passado do músico, ele vai descobrindo que o mesmo estava envolvido com a cultura vudu, fato que começa a se mostrar cada vez mais essencial para que ele consiga solucionar o caso e descobrir o que houve com Favorite.
Apesar das primeiras páginas já mostrarem referências a elementos sobrenaturais, durante boa parte da leitura ficamos na dúvida sobre o que de fato está acontecendo na história. Será que realmente há algo extra terreno e tem dedinho do tinhoso na jogada ou tudo não passa de coincidências e a mitologia desenvolvida não passa de crenças que não se concretizam? E é nisso que tá boa parte da essência do livro, pelo menos do modo como o li.
É muito interessante como o autor consegue brincar com a questão do sobrenatural e, de certa forma, ir manipulando o leitor até o momento da conclusão. A cada elemento que surge na historia, o mistério a cerca de Favorite acaba aumentando ao invés de ir se solucionando,  uma vez que a investigação que se resumia a uma pessoa desaparecida começa a envolver vudu, magia negra, seitas ocultistas, etc. Aos poucos o protagonista começa a se afundar cada vez mais em um submundo totalmente desconhecido por ele.
É bem curioso porque o protagonista é tão leigo no assunto quanto o leitor e a gente acaba entrando naquela viagem bizarrona junto com o personagem, que a todo momento está desconfiando das outras pessoas e dos elementos que rodeiam a historia. Ambos podem negar e não acreditar em vudu ou magia, no entanto é impossível ficar indiferente a todas as coisas que rodeiam Angel, de modo que sempre rola aquele desconfiança a mais que deixa esse tipo de história ainda mais interessante.


Who lets the pombas girar?

O livro é narrado em primeira pessoa, então como dito anteriormente, você acaba tendo uma maior proximidade de Angel, por saber exatamente o que ele está pensando ou tirando de conclusão sobre o caso. Além disso permite que você conheça a cidade de Nova York dos anos 50 pelos olhos do detetive, algo que é impressionante, porque mesmo não sendo tão detalhista, o autor consegue ambientar aquele cenário perfeitamente, de modo que durante a leitura você consiga ter uma ideia bem concreta de todos os ambientes pelos quais o detetive anda.
Na verdade, não apenas a questão da ambientação mas todo o desenvolvimento da sociedade é muito interessante e valida. Mesmo tratando de temas que beiram o sobrenatural, em nenhum momento a gente sente que o autor está viajando, levando em conta que é um livro de ficção e que pode ou não ter ter dedinho do cão. Toda a questão da cultura vudu e da magia negra presente é apresentado de um jeito delicado e, tirando uma coisinha ou outra, você sabe que as pessoas que participam desses cultos se comportariam de maneira semelhante, afinal, independentemente de acreditarmos ou não nisso, existem pessoas que acreditam e vivem esses cultos/religiões. Sendo assim, não espere invocações, bonequinhos de vudu, maldições, etc. Tudo aqui é muito sutil no quesito magia, mas não tanto em outras coisas...
Não apenas nessas questões, o autor também consegue mostrar a cultura urbana da Nova York dos anos 50, fazendo um apanhado dos eventos que permeavam a sociedade da época e, também, mostra outros problemas como a questão do racismo. Mostrando bem, mesmo indiretamente, o modo como os negros e sua cultura era tratada e marginalizada.

Vudu televisionado

Em 1987 o livro ganhou uma adaptação cinematografia dirigida por Alan Parker e com Robert De Niro no elenco fazendo o papel de Louis Cyphre.
Bom, eu tive o primeiro contato com a história através do filme uns bons anos atrás, tanto que eu só fui descobrir que ele era baseado em um livro esse ano quando a Darkside anunciou que iria publicar. Quando peguei o livro pra ler, eu lembrava que tinha gostado bastante do filme, mas por ter uma memoria péssima eu não me recordava de quase nada, tinha apenas uma ideia vaga do desfecho, algo que permitiu eu ter uma melhor experiência de leitura, mesmo já sabendo como acabaria.
Logo que eu terminei a leitura, eu decidi rever o filme para poder fazer uma comparação e confesso que eu sai um pouco decepcionado. Não digo isso pelo filme ser ruim, pelo contrario, o filme é bom e consegue manter parte da essência do livro, sem contar que é bem legal ver o De Niro interpretando Cypher, mas eu gosto muito mais do tom e da abordagem usada pelo livro. Apesar de ambos terem a mesma base e o mesmo desfecho, ambos são bem diferentes entre si.
O livro parte do mesmo ponto e chega na mesma conclusão, mas cada um vai ter suas peculiaridades, pois existem cenas do livro que não tem no filme e vice versa. Mas vamos por partes, lembrando que essas são as minhas impressões, talvez você tenha tido uma experiência diferente. A primeira coisa que eu senti de diferença foi a personalidade de Angel, apesar de ele ser um detetive típico desse gênero, eu senti que no filme abordam ele de um jeito mais cômico do que no livro, não que seja uma comédia, mas sempre tem algo meio malicioso na atuação, sendo que em nenhum momento consegui levar o personagem a serio de fato, mesmo quando ele tava atolado nos problemas. Já no romance, o protagonista tem aquele tom sarcástico, mas você percebe um maior comprometimento com tudo aquilo que está acontecendo ao seu redor.
Como dito anteriormente, uma das grandes qualidades do livro é toda a ambientação de Nova York, você consegue visualizar todo aquele cenário durante a leitura. Já no filme, por algum motivo, a história perde um pouco do clima urbano, ainda que seja ambientado em NY. Em diversos momentos o protagonista acaba indo pra regiões do interior, algo que pra mim tirou um pouco do impacto das coisas relacionadas ao vudu, porque acabou criando uma distancia entre as coisas, pois enquanto no livro as coisas estavam acontecendo do ladinho do protagonista, no filme, o vudu aparece como algo que está relacionado às pessoas do interior. Além disso, o filme parece muito mais interessado em abordar questões raciais  que o livro, enquanto na obra original tudo é bastante sutil, o filme está a todo momento colocando cenas que envolvem manifestações culturais/religiosas.
Por fim, existe a questão da investigação. No livro a sensação de causa e efeito é muito mais aparente, você percebe os entraves da investigação e a dificuldade de cada pista. O protagonista entra constantemente em caminhos que não tem saída, segue direções falsas e age com uma cautela maior, sem contar que a questão da magia negra é quase tão importante quanto a do vudu, coisa que no filme fica em segundo plano e o vudu é muito mais importante. Já na obra cinematográfica, eu sinto que o roteiro se atropela um pouco, as coisas simplesmente vão acontecendo e todo o clima de investigar, coletar pistas estão ali só pra justificar o avanço do detetive, algo que prejudica um pouco a própria relação de Angel com Cypher, que na obra original a estranheza que ele causa é muito mais impactante, tanto pro protagonista quanto pro leitor.


E ai, devo fazer negócios com Louis Cypher?

Como eu disse na introdução desta resenha, cada um tem seu preço, então caso ele lhe faça uma boa proposta, por que não?
Agora em relação ao livro, que foi enviado pra gente em parceria com a Darkside Books, a única coisa que posso falar é: Leia. Não é apenas a parte estética da edição que é incrível, seu conteúdo também. O autor consegue trabalhar muito bem a a história que fica no limiar entre o thriller e o terror e, apesar de seguir alguns padrões do gênero, em nenhum momento ele chega a ser clichê ou entediante. A trama consegue prender o leitor de modo que você fique sempre desconfiado de tudo que está acontecendo e, por mais que as informações comecem a acumular, você sempre vai estar se perguntando até que ponto as coisas são naturais ou se o vudu e a magia negra realmente funcionam. Algo que provavelmente só vai descobrir no desfecho da história.
Apesar dos elementos de terror, o livro é todo construído em cima de uma narrativa policial, então não espere sustos, manifestações sobrenaturais ou qualquer coisa semelhante. Mas pode ficar tranquilo que o livro vai te incomodar diversas vezes e com certeza algumas cenas vão ficar na sua cabeça por um bom tempo.
Como dito anteriormente, o filme é legal, mas não supera a experiência do livro, então caso você esteja receoso de ler algo que você já conhece a história, pode pegar sem medo que o livro é bem bacana. Apesar o desfecho ser o mesmo, o percurso do protagonista acaba sendo bem diferente.
Então assina o contrat... digo, compra o livro logo e vem brincar de vudu com a gente.


Nenhum comentário:

Postar um comentário