O
Café com Tripas faz uma pequena pausa na sua
programação para dar um recado do ministério da saúde...
Não
use drogas, faz mal.
“Aguento
mais humilhações grosseiras pelo que me parece ser uma eternidade. Mas suporto
isso sem problema. Não amo nada (exceto a heroína), não odeio nada (exceto as
forças que me impedem de arranjar um pouco dela) e não temo nada (exceto ficar
sem um pico).”
Título original: Trainspotting
Autor: Irvine Welsh
Ano: 1993
Editora: Rocco
Páginas: 352
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Na década de
90 em Edimburgo, um grupo de jovens sem perspectiva e sem muito interesse pelo
cotidiano, passam seus dias bebendo em pubs, vadiando e, principalmente,
usando heroína. Entre bebedeiras, picos e confusões esses personagens terão que
enfrentar as consequências da vida desregrada e inconsequente, lidando com
Aids, overdoses, rehabs, família, romance, sociedade, tédio, etc.
Esquentando a colher
Apesar de ter
um grupo de personagens centrais e uma ambientação comum, Trainspotting
não tem uma narrativa coesa e cronológica. Não existe um protagonista. Cada
capitulo narra algum evento que ocorreu com determinado personagem, e isso
causa um certo estranhamento no leitor porque não apenas a história e os
personagem alternam ao longo do livro, como a forma narrativa também. Alguns
capítulos são em primeira pessoa (revezando o narrador de acordo com o
capitulo) e outros em terceira pessoa.
A escrita do
Welsh é bem crua e suja, uma linguagem coloquial cheia de gírias e palavrões,
mas sem deixar de ser bem detalhista, seja em relação as sensações dos
personagens (no uso ou abstinência de drogas) ou na construção social e
cultural que ele faz através dos diálogos e situações entre os jovens. É
interessante como cada um desses personagens (Renton, Begbie, Sick Boy, Spud…)
tem uma personalidade própria e são bem desenvolvidos mesmo sem muitas
informações sobre o passado de cada um.
Na seringa
Abrindo um
parênteses, o filme dirigido por Danny Boyle é bem fiel ao livro, entretanto, a
grande diferença entre as duas obras é justamente a questão da narrativa.
Enquanto o livro é construído a partir de diversas historias independentes que
se conectam pela temática e personagens, sem ordem e protagonistas, o filme é
mais organizado e segue uma linha cronológica. Não digo que um é melhor que o
outro; são apenas propostas diferentes.
Praticamente
todas as cenas do filme existem no livro mas, para tornar mais fluido e
organizado, foi definido um protagonista e consequentemente uma linha
narrativa, fazendo todas as outras historias e personagens se ligarem a essa
linha para seguir uma cronologia. Outro ponto que merece ser citado é a
abordagem que cada um faz: ambos possuem partes engraçadas e tensas, mas o
filme acaba indo pra um lado mais pro cômico enquanto o livro é mais denso.
O livro é
mais completo, tendo diversas passagens que não foram para o filme, assim como
é também mais detalhado, passando alguns sentimentos e reflexões dos
personagens que acabaram se perdendo na adaptação cinematográfica. Mas como já
disse ambos são bons e ambos valem a pena se você se interessa por drogas…
digo, assuntos relacionados a drogas.
Injetando
Trainspotting
é uma obra que se preocupa muito mais com seus personagens e atitudes que
propriamente com a história. Não há um ponto de partida nem um caminho a ser
trilhado; são apenas jovens vivendo sua vida e situações do seu cotidiano,
sejam coisas simples e bobas como amigos em um bar, ou até situações estranhas
com seus vícios ou com suas namoradas. Refletindo o significado do titulo, que
quer dizer: “perda de tempo” ou “algo sem sentido”.
Entretanto, é
a partir desses personagens “vagabundos”, ignorados e julgados pela sociedade
que o autor discute e reflete diversos temas como juventude, drogas,
capitalismo e, até mesmo, sentido da vida.
Uma das
principais questões que a narrativa levanta é até que pontos somos livres ou
acreditamos ser. O que difere um viciado e um cidadão comum? No decorrer vamos
vendo que a única diferença são as convenções. Em certos momentos os
personagens refletem sobre tudo aquilo que empurram pra eles: a necessidade de
um trabalho, uma casa própria, uma vida digna, etc. Isso para muitos é visto
como liberdade e independência, mas até que ponto? Independentemente das suas
ações e das suas escolhas você está dentro de um padrão, seja medico, advogado
ou comerciante, todos buscam a mesma vida, uma casa, uma família, um cachorro,
um carro que impressione… isso tudo pra quê? Se todos vamos morrer porque eu
não posso simplesmente ser um viciado e aproveitar minha vida com a drogas sem
ter que me preocupar com esse monte de burocracias que os outros me impõe?
Vivemos nessa
ilusão de que temos escolhas, mas no fundo elas se resumem a decisões
semelhantes a decidir sabores em uma sorveteria.
Os
personagens do livro simplesmente decidem ignorar essa angustia social de se
adequar a tudo aquilo que é imposto. Eles vivem a margem de tudo isso.
Inclusive, em certo momento fica claro que a heroína tem o mesmo propósito do
que essas constantes satisfações materialistas. Enquanto o capitalismo gera um
desejo atrás do outro, as drogas são um fim, e aquilo basta para os jovens do
livro.
A sociedade é
um reflexo de insegurança, que está em uma constante busca por autoafirmação.
Ao viver por um propósito diferente, eles simplesmente ignoram isso.
Ahhhhhh….
Apesar de um
tema comum, Trainspotting consegue inserir o leitor no submundo de
Edimburgo por meio de personagens únicos que conseguem ser carismáticos e
repulsivos ao mesmo tempo. Toda narrativa tem clima de conversas de bar, com
uma linguagem bem oral que não se preocupa com nada, apenas em contar
histórias, sejam elas engraçadas, tristes ou degradantes.
Enfim, é um
livro (e/ou filme) pra todo mundo que se interessa por temas como drogas,
jovens problemáticos e suas consequências. A escrita e a construção pode ser
meio confusa por se tratar de diversos personagens e diversas mini histórias,
mas não deixa de fazer todo o sentido para a temática desenvolvida, pois cada
um tem sua importância e sua contribuição dentro desse universo, que é tão
confuso e caótico quanto a sua narrativa.
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