quarta-feira, 19 de abril de 2017

Literatura: Trainspotting (Irvine Welsh)


            O Café com Tripas faz uma pequena pausa na sua programação para dar um recado do ministério da saúde...
            Não use drogas, faz mal.



            “Aguento mais humilhações grosseiras pelo que me parece ser uma eternidade. Mas suporto isso sem problema. Não amo nada (exceto a heroína), não odeio nada (exceto as forças que me impedem de arranjar um pouco dela) e não temo nada (exceto ficar sem um pico).


Título original: Trainspotting
Autor: Irvine Welsh
Ano: 1993
Editora: Rocco
Páginas: 352
            Na década de 90 em Edimburgo, um grupo de jovens sem perspectiva e sem muito interesse pelo cotidiano, passam seus dias bebendo em pubs, vadiando e, principalmente, usando heroína. Entre bebedeiras, picos e confusões esses personagens terão que enfrentar as consequências da vida desregrada e inconsequente, lidando com Aids, overdoses, rehabs, família, romance, sociedade, tédio, etc.

Esquentando a colher

            Apesar de ter um grupo de personagens centrais e uma ambientação comum, Trainspotting não tem uma narrativa coesa e cronológica. Não existe um protagonista. Cada capitulo narra algum evento que ocorreu com determinado personagem, e isso causa um certo estranhamento no leitor porque não apenas a história e os personagem alternam ao longo do livro, como a forma narrativa também. Alguns capítulos são em primeira pessoa (revezando o narrador de acordo com o capitulo) e outros em terceira pessoa.
            A escrita do Welsh é bem crua e suja, uma linguagem coloquial cheia de gírias e palavrões, mas sem deixar de ser bem detalhista, seja em relação as sensações dos personagens (no uso ou abstinência de drogas) ou na construção social e cultural que ele faz através dos diálogos e situações entre os jovens. É interessante como cada um desses personagens (Renton, Begbie, Sick Boy, Spud…) tem uma personalidade própria e são bem desenvolvidos mesmo sem muitas informações sobre o passado de cada um.

Na seringa

            Abrindo um parênteses, o filme dirigido por Danny Boyle é bem fiel ao livro, entretanto, a grande diferença entre as duas obras é justamente a questão da narrativa. Enquanto o livro é construído a partir de diversas historias independentes que se conectam pela temática e personagens, sem ordem e protagonistas, o filme é mais organizado e segue uma linha cronológica. Não digo que um é melhor que o outro; são apenas propostas diferentes.
            Praticamente todas as cenas do filme existem no livro mas, para tornar mais fluido e organizado, foi definido um protagonista e consequentemente uma linha narrativa, fazendo todas as outras historias e personagens se ligarem a essa linha para seguir uma cronologia. Outro ponto que merece ser citado é a abordagem que cada um faz: ambos possuem partes engraçadas e tensas, mas o filme acaba indo pra um lado mais pro cômico enquanto o livro é mais denso.
            O livro é mais completo, tendo diversas passagens que não foram para o filme, assim como é também mais detalhado, passando alguns sentimentos e reflexões dos personagens que acabaram se perdendo na adaptação cinematográfica. Mas como já disse ambos são bons e ambos valem a pena se você se interessa por drogas… digo, assuntos relacionados a drogas.
           
Injetando

            Trainspotting é uma obra que se preocupa muito mais com seus personagens e atitudes que propriamente com a história. Não há um ponto de partida nem um caminho a ser trilhado; são apenas jovens vivendo sua vida e situações do seu cotidiano, sejam coisas simples e bobas como amigos em um bar, ou até situações estranhas com seus vícios ou com suas namoradas. Refletindo o significado do titulo, que quer dizer: “perda de tempo” ou “algo sem sentido”.
            Entretanto, é a partir desses personagens “vagabundos”, ignorados e julgados pela sociedade que o autor discute e reflete diversos temas como juventude, drogas, capitalismo e, até mesmo, sentido da vida.
            Uma das principais questões que a narrativa levanta é até que pontos somos livres ou acreditamos ser. O que difere um viciado e um cidadão comum? No decorrer vamos vendo que a única diferença são as convenções. Em certos momentos os personagens refletem sobre tudo aquilo que empurram pra eles: a necessidade de um trabalho, uma casa própria, uma vida digna, etc. Isso para muitos é visto como liberdade e independência, mas até que ponto? Independentemente das suas ações e das suas escolhas você está dentro de um padrão, seja medico, advogado ou comerciante, todos buscam a mesma vida, uma casa, uma família, um cachorro, um carro que impressione… isso tudo pra quê? Se todos vamos morrer porque eu não posso simplesmente ser um viciado e aproveitar minha vida com a drogas sem ter que me preocupar com esse monte de burocracias que os outros me impõe?
            Vivemos nessa ilusão de que temos escolhas, mas no fundo elas se resumem a decisões semelhantes a decidir sabores em uma sorveteria.
            Os personagens do livro simplesmente decidem ignorar essa angustia social de se adequar a tudo aquilo que é imposto. Eles vivem a margem de tudo isso. Inclusive, em certo momento fica claro que a heroína tem o mesmo propósito do que essas constantes satisfações materialistas. Enquanto o capitalismo gera um desejo atrás do outro, as drogas são um fim, e aquilo basta para os jovens do livro.
            A sociedade é um reflexo de insegurança, que está em uma constante busca por autoafirmação. Ao viver por um propósito diferente, eles simplesmente ignoram isso.

Ahhhhhh….

            Apesar de um tema comum, Trainspotting consegue inserir o leitor no submundo de Edimburgo por meio de personagens únicos que conseguem ser carismáticos e repulsivos ao mesmo tempo. Toda narrativa tem clima de conversas de bar, com uma linguagem bem oral que não se preocupa com nada, apenas em contar histórias, sejam elas engraçadas, tristes ou degradantes.

            Enfim, é um livro (e/ou filme) pra todo mundo que se interessa por temas como drogas, jovens problemáticos e suas consequências. A escrita e a construção pode ser meio confusa por se tratar de diversos personagens e diversas mini histórias, mas não deixa de fazer todo o sentido para a temática desenvolvida, pois cada um tem sua importância e sua contribuição dentro desse universo, que é tão confuso e caótico quanto a sua narrativa.

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