quinta-feira, 27 de abril de 2017

Literatura: Ressurreição (Liev Tolstói)


            Não ouse mentir ou fingir que não é com você, nós sabemos os seus podres, pois assim como nós você já deve ter feito muita merda nessa vida, algumas delas viram historias; outros arrependimentos. E é dessas últimas que vamos conversar hoje.
            Então puxe a cadeira, sente-se e aprecie o Café porque hoje teremos uma conversa com esse velhinho simpático chamado Tolstói.




“Uma das superstições mais costumeiras e difundidas é a de que cada pessoa tem determinadas qualidades só suas, que existe a pessoa boa, a má, a inteligente, a tola, a energética, a apática etc. As pessoas não são assim. Podemos dizer sobre uma pessoa que ela é boa com mais frequência do que má, inteligente com mais frequência do que tola, energética com mais frequência do que apática, e o contrário; mas seria falso dizer sobre uma pessoa, que ela é boa ou inteligente, e sobre outra que é má e tola. Mas sempre dividimos as pessoas dessa maneira e é errado. As pessoas são como rios: a água é a mesma para todos e é igual em toda parte, mas cada rio é ora estreito, ora rápido, ora largo, ora calmo, ora limpo, ora frio, ora turvo, ora morno. Assim também são as pessoas. Cada um traz em si o germe de todas as qualidades das pessoas e às vezes se manifesta uma, às vezes outras, e não raro acontece de a pessoa ficar de todo diferente de si mesma, enquanto continua a ser exatamente a mesma. Em certas pessoas, essas transformações ocorrem de maneira especialmente abrupta. E Nekhliúdov era uma delas. Tais transformações ocorriam nele por motivos físicos e também espirituais. E nele agora ocorria uma transformação desse tipo.”


Título original: Voskressiénie
Autor: Liev Tolstói
Ano: 1899
Editora: Cosac Naify
Páginas: 432
Ao ser convocado pra ser parte de um júri que julgava o assassinato de um homem, Nekhliúdov, um jovem burguês, acaba reconhecendo a ré Maslova, uma criada com quem ele teve envolvimento no passado e a abandonou grávida. Atormentado com a situação e acreditando que ele é o responsável pelos caminhos traçados por aquela mulher, ele decide que fará de tudo ao seu alcance para reparar a situação de Maslova, com a justiça e com ele mesmo.

Ficção & Realidade

Antes de iniciarmos a resenha de fato, é bom compreendermos o contexto no qual a obra foi escrita. Tudo que vou comentar nesse tópico está no prefacio do livro (a edição da Cosac), mas acho importante ressaltar antes de começar porque permite uma resenha mais estruturada e, também, é algo bem importante que não sei se está presente em todas as edições do livro.
A ideia de Ressurreição surgiu, cerca de dez anos antes da obra ser escrita, a partir da conversa com um amigo (escritor/jurista) que lhe contou sobre o caso de um jovem da nobreza que veio solicitar seu seus serviços como advogado. O jovem, ao fazer parte de um júri, reconheceu a ré acusada de assassinato, uma garota com quem ele se relacionou na casa de uma tia e abandonou grávida. Além do desamparo de ter sido deixada sozinha e grávida, ela foi expulsa de casa, tendo que buscar na prostituição uma forma de levar a vida. Diante disso o jovem decidiu ajudá-la e, também, casar-se com ela, algo que acabou não acontecendo, pois ela morreu pouco depois da sua condenação.
A historia teve grande impacto em Tolstói porque ele mesmo já teve caso com a criada da fazenda de um parente, que foi expulsa de casa, e também tinha um filho bastardo de uma camponesa da sua propriedade. Ele começou a escrever pouco tempo depois de conhecer a historia, mas só foi retomar a ela quase dez anos depois.
A retomada do romance ocorreu por razões político-sociais. Tolstói tinha muito apreço pelos princípios dos dukhobors, uma comunidade cristã que tem como principais princípios a negação da propriedade, do governo, do dinheiro, da igreja e da bíblia, além de serem adeptos ao vegetarianismo e ao pacifismo. Mesmo tendo alguns problemas ao longo dos anos, por não serem compreendidos por quem é de fora, a situação se intensificou em 1895 quando se negaram a jurar lealdade ao imperador e se recusaram ao alistamento no exercito, o que acabou resultando em problemas pra comunidade: muitos foram mandados pros campos de trabalho forçado, outros expulsos de suas terras, etc.
Sabendo da situação dos dukhobors, Tolstói decide intervir em favor da comunidade juntando pessoas e levantando recursos. Muitos de seus amigos e seguidores que o ajudavam na causa tiveram suas casas invadidas e trabalhos queimados, coisa que não aconteceu com Tolstói por sua grande influência, mas essa influência não impediu de que fosse vigiado de perto. Como forma de levantar mais recursos, Tolstói decidiu retomar Ressurreição e aplicar uma política de publicação diferente na obra, pois ele havia renunciado o direito de muitos de seus livros, permitindo que fossem publicadas livremente tanto na Rússia quanto no exterior.
Tolstói conseguiu negociar Ressurreição por preços bem elevados, permitindo manter a comunidade viva na Rússia e, também, mandar cerca de dez mil dukhobors pro Canadá. Parte desse sucesso de vendas se deve ao fato de Tolstoi ter renunciado parte das obras anteriores, pois isso permitiu que diversas editoras publicassem pelo seu baixo custo, então quando surge uma nova obra, mesmo que paga, as editoras acabam comprando pra manter seu catalogo atualizado.
Dito isso, podemos partir pro livro que, como veremos, vai ter relação direta não apenas com o caso da mulher, mas, também, com toda a situação da época.

A prisão da culpa

A obra é narrada em terceira pessoa e acompanhar a vida de dois personagens, Nekhliúdov e Maslova. O primeiro é um burguês, muitas vezes chamado de príncipe, que viveu tendo tudo aquilo que queria, mas mesmo assim sempre acreditou ser uma pessoa boa (todo mundo acredita nisso, não é mesmo?) e diferente dos outros de sua classe, tanto que, quando recebeu a sua parte da herança do pai, ele a recusou e distribuiu suas terras pra quem trabalhava lá. Porém, nem por isso deixou de levar sua vida regada a prazeres com o dinheiro da mãe, ou de frequentar os círculos da burguesia e de ter seu relacionamento com os mais pobres, mesmo que simpático, posto de forma hierárquica, colocando-o acima daqueles que estavam socialmente abaixo dele. Por sinal, no primeiro contato com Maslova na casa de uma tia, ele acredita estar fazendo algo bom, mas a trata de uma maneira nem um pouco respeitosa.
Já Maslova era uma criada que trabalhou por muito tempo na casa da tia de Nekhliúdov. Depois de ser abandonada grávida pelo pai de seu filho e perder a criança, ela acaba sendo expulsa da casa em que trabalhava e vai pra cidade tentar a vida. Mesmo tendo uma boa educação na infância, sabendo falar mais de uma língua, ela só encontra espaço na prostituição, emprego que ficará até ser acusada de assassinar um de seus clientes.
Ainda crianças, os dois protagonistas tiveram o primeiro contato, brincando e se divertindo juntos, criando assim uma afeição. Anos depois, quando Nekhliúdov já está na faculdade, ele acaba retornando a casa da tia e reencontrando Maslova, onde eles vão acabar se relacionando. Logo após ele vai embora, deixando-a grávida, sendo que por anos ele não tem notícias de Maslova e não sabe da sua paternidade, até reencontrá-la no tribunal. Quando descobre o outro lado da história e se convence da inocência da mulher, porém, Nekhliúdov começa a repensar toda sua vida, atitudes e, também, fazer de tudo o possível, não somente para inocentar, mas também conseguir o perdão e casar-se com a mulher que ele abandonou anos atrás, como forma de reparar seus pecados.
Nessa jornada pela burocracia russa, Nekhliúdov, com o intuito de ser uma pessoa melhor e corrigir seus pecados do passado, vai se envolver não apenas no caso de Maslova, mas em diversas outras injustiças presentes na sociedade, mas que são ignoradas pelo sistema.

Desprincesamento

Durante a leitura de Ressurreição fica claro a intenção de Tolstói com o livro. Toda a trama utilizada por ele é apenas uma forma de criar uma crítica em cima da sociedade da época, mostrando desde a burocracia até a podridão que existe no meio jurídico e político do país. O primeiro contato que teremos com isso é o julgamento de Maslova, em que vemos que aqueles que estão ali — tanto o juiz quanto o júri — não estão preocupadas com a situação e com a vida daquelas pessoas que estão sendo julgadas, mas querem apenas representar seus papeis e ir embora pra casa, como se ao pisar fora do tribunal tudo aquilo acabasse, sem qualquer necessidade de questionar se tomaram a decisão correta ou não. Isso fica bem claro no julgamento: a condenação é feita devido um erro na hora de redigir a decisão do júri, mesmo que as pessoas tenham votado contra. O juiz simplesmente ignora o fato e os outros jurados veem como caso fechado e ignoram a decisão.
É nesse momento em que vemos uma mudança mais abrupta em Nekhliúdov que o faz repensar sua vida e decidir ser uma pessoa melhor. Ele começa um processo de desconstrução, reparando em diversas questões que até então passavam despercebido. Começando com a condenação de Maslova, ele vai percebendo que aquele é apenas mais um dos diversos casos de injustiça que acontecem diariamente, e, ao olhar mais de perto, percebe que boa parte da culpa por esses diversos problemas é da sua classe e dele próprio, mesmo que indiretamente.
Após a prisão de Maslova ele começa a visitar a penitenciária para visitá-la e, com isso, ser informado de outros casos em que inocentes foram condenados. Sensibilizado ele tenta intervir, entrando em uma burocracia interminável e sem sentido, evidenciando os problemas da época. Algo que fica bem perceptível a partir disso é que as resoluções dos problemas não se davam por evidências ou provas pra inocentar o acusado, mas a principal arma de Nekhliúdov no processo judicial era sua influência e seus contatos. Por mais que todo mundo reconhecesse a inocência de um preso, ele só conseguia avançar no caso se conversasse com as pessoas certas, o que começa a dar nojo nele, porque eles conheciam os casos, sabiam da inocência, mas mesmo assim não faziam nada simplesmente por indiferença.
No meio dessas questões que vão sendo levantadas nas constantes visitas a penitenciaria, Tolstói vai desenvolver não apenas os problemas da justiça falha e da burocracia, porém também vai entrar em outras questões  relacionadas, como a situação dos presos políticos e a diferença de tratamento que eles recebem, a precariedade das condições do presídio, os trabalhos forçados na Sibéria e, não menos importante, os diversos problemas da sociedade que levam ao desequilíbrio, fazendo uma clara crítica à situação do país, à burguesia e ao imperador, citando até mesmo o caso dos dukhobors para deixar ainda mais claro o seu ponto de vista.
Paralelamente a isso, Nekhliúdov vai lidar com outra questão que vai contribuir para o seu “desprincesamento”, permitindo que ele passe a olhar as outras pessoas de outra perspectiva, que é a morte de sua mãe e a herança deixada por ela.

O pecado da terra

O grande foco do livro é a questão jurídica/penitenciária e todos os problemas ligados a ela, entretanto, o autor estende a discussão da desigualdade e dos problemas sociais em outros setores à outras temáticas, e uma delas é a questão da terra, que vai evidenciar bastante da posição política de Tolstói.
Antes mesmo da trama de Maslova começar, Nekhliúdov está lidando com as questões jurídicas da morte da mãe, que lhe deixou como herança diversas propriedades, incluindo a casa em que mora e algumas fazendas de onde vem boa parte do dinheiro da família. O protagonista, apesar de já ter uma visão contrária à mercantilização da terra, sempre tratou de uma maneira mais romantizada, de burguês que acredita se preocupar com o povo, mas nunca deixou de usufruir do dinheiro da família para seu lazer. A exemplo disso, apesar de sabermos que ele estudou e etc., não sabemos de fato se ele realmente tem uma profissão, posto que tudo dá a entender que ele vive com o dinheiro da família e com a popularidade da sua classe.
Quando ele se depara com o caso do tribunal e começa a entrar mais a fundo nessas questões de classes e injustiças, Nekhliúdov decide dar fim as desigualdades nas quais ele está envolvido, então ele luta não apenas por Maslova e por todas aquelas pessoas que foram presas injustamente, no entanto também por aquelas que estão presas a terra por sua causa, gente que trabalha em suas propriedades, são os responsáveis por toda a sua riqueza, mas que estão em condições precárias, sem recursos pra viver dignamente.
E isso que, a meu ver, vai levantar questões mais interessantes da obra tanto na questão das terras quanto de Maslova, pois Nekhliúdov acredita estar fazendo tudo o que pode para se redimir com o passado e melhorar a condição de vida daqueles que um dia ele prejudicou, mas quando ele se aproxima e começa a agir em favor dessas pessoas, ele sente receio dos mesmo, fazendo com que ele começa a se questionar ainda mais: “Ué, eu venho ajudar essas pessoas, proponho algo que vai melhorar a vida delas e mesmo assim eu sou tratado com certa hostilidade?”. O exemplo mais claro disso é sua decisão de libertar Maslova da cadeia e casar-se com ela, como forma de se redimir, mas em nenhum momento ele pergunta se ela quer casar, colocando sua necessidade de ajudar acima da vontade dos outros. É perceptível a vontade de ajudar e tornar-se uma pessoa melhor, entretanto tudo é feito a partir de sua própria perspectiva.
Algo semelhante acontece com as terras: em certo momento ele vai nas suas propriedades decidido a distribuí-las para as pessoas que de fato trabalham ali, libertando-os da relação empregado e patrão, permitindo que eles tenham poder sobre a terra que eles usam diariamente. Entretanto, quando faz o anuncio, as pessoas recuam e não aceitam. Algo que deixa o protagonista meio inconformado, afinal ele está dando a custo zero algo que vai melhorar a vida das pessoas e mesmo assim elas não querem, o que mostra bem a diferença de visão entre as duas classes: pra Nekhliúdov aquilo era uma proposta irrecusável, ao passo que para os empregados existia um motivo obvio para não aceitarem a oferta.
É nesse constante conflito que o protagonista terá com diversos setores da sociedade que a narrativa se constrói, permitindo uma transformação para Nekhliúdov e para o próprio leitor.

A resenha já está acabando,
logo você estará livre pra resolver as merdas do passado

Antes de começar a ler, eu não planejava resenhar Ressurreição, mas diante de uma leitura tão bacana e com temas tão relevantes, achei que seria interessante conversar um pouco sobre ele e deixar a recomendação, afinal é um livro do Tolstói que não vejo tanta informação circulando quanto Guerra e Paz, Anna Karenina e Ivan Ilitch.
A partir de uma história real, utilizada como base, o autor desenvolve uma nova trama que engloba não apenas o caso, mas também discute os diversos problemas sociais que eram enfrentados na época. Com essa influência das questões do dia a dia e com traços autobiográficos, a narrativa trabalha o externo e o interno, tratando desde os problemas estruturais até os as questões pessoais do protagonista, criando uma obra simples na sua ideia mas complexa em sua execução.
A escrita de Tolstói é algo que merece ser destacado: ela é simples e acessível sem deixar de ser elegante e com característica bem próprias. Ele consegue conversar com o leitor, contar a história e explicar tudo aquilo que está por trás de uma maneira tranquila, mantendo-se no meio termo entre algo didático, explicando alguns conceitos e ideias sobre aquilo que está acontecendo, e o subentendido, que é possível decifrar as entrelinhas pelas ações e diálogos dos personagens. Eu gostei bastante do ritmo do livro, mas sei que por se tratar de temas mais densos e questões sociais que merecem cuidado, a leitura em alguns momentos pode ser um pouco mais travada, afinal não vamos ter cenas de ação nem aliens invadindo a terra. Muito da trama gira em torno de reflexões, questões jurídicas e criticas ao modo de vida burguês.
É bizarro como um livro escrito em 1899, mais de cem anos atrás, lá nos cafundós da Rússia consegue ser tão atual e dialogar tão bem com aquilo que se passa no Brasil nos dias de hoje. Pessoalmente, tive um pouco de problema com algumas partes, principalmente o final, mas nada que diminua a qualidade ou que tenha me feito gostar menos. Então, vá lá resolver seus podres do passado e na volta passe na livraria/biblioteca pra pegar sua copia de Ressurreição.

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