Imaginem um jantar em família:
pessoas sorridentes, piadinhas entre velhos amigos, camaradagem, o tio do pavê
repetindo a piada pela bilionésima vez, pratos passando por cima de pratos,
pessoas se servindo e atropelando as falas umas das outras. De repente, um
grande assado é tirado do forno e posto sobre a mesa. É exuberante. Todos
sorriem. Aquele cheiro forte preenche o aposento. Respirem fundo, leitores, é
carne humana.
Lançamento: 1989
Duração: 88
minutos
Direção: Bob
Balaban
O que
há para jantar?
O preço
da boa carne
No centro do sonho americano nos
anos cinquenta está a família Laemle, com sua vida bem ajustada e repleta de
confortos tais como eletrodomésticos, lençóis limpos e uma despensa cheia. E no
centro dessa família está Michael Laemle, uma criança calada e introvertida,
dominada por pesadelos que começam à noite e preenchem seus dias com medos e
paranoias. Será que a família está certa em mudar de bairro? E comer carne de seres
mortos está certo? Aliás, de onde vem a carne?
Trash
cult?

Pessoalmente, essa obra me fez refletir
por um bom tempo logo depois que a assisti. Apesar de ter esse enredo engraçado
em que uma criança desconfia que os pais sejam canibais, dando a impressão de
que se trata só de um filme bizarro e cômico, ela é na verdade muito bem
produzida, “séria” e, sob vários aspectos, surpreendente. Quase um trash cult,
eu diria.
O motivo principal disso talvez seja
que a maior parte de sua trama não se desenvolve a partir de acontecimentos, mas
do ponto de vista de uma criança, que vai sendo explorado à medida em que as
coisas acontecem. Com isso, o espectador acaba ficando muito mais perto dos
medos e dos anseios dela que de uma
percepção isenta de como as coisas sejam realmente, o que faz com que vários
pontos do filme possam ser questionados: seriam fatos ou são só imaginações de
criança?
No geral, a obra brinca com as duas
possibilidades e estamos constantemente em dúvida sobre o que se passa, ao
mesmo tempo em que percebemos algumas coisas que são inegavelmente “reais” e
podem explicar o ponto de vista do menino, como o fato de que ele não entende
muito bem o mundo adulto (nem o infantil, aliás, ele é meio bobo) e facilmente
acredita nas histórias que as pessoas contam para manipulá-lo, ou mesmo seu
difícil relacionamento com seu pai, um homem imbecil que não consegue criar uma
relação de afeto com o filho. Nesse jogo em que tentamos pensar o que se deve
ao ponto de vista da criança e o que independeria dele, diversas coisas não são
explicadas tintim por tintim e ficam abertas à interpretação, tornando o filme
um pouco mais intrincado e interessante.
Olhos
recheados de medo
A história da família Laemle começa
com a mudança para um novo bairro, um evento que até o fim do filme serve para
relacionar diversos pontos da trama. O mais visível deles é o desconforto do
jovem Michael numa situação inteiramente nova na qual ele tem que morar em
outra casa, fazer novos amigos e coisas assim, de modo que, em diversos
momentos, o rapaz precisa preencher as lacunas dessa nova vida e habitar esse
novo mundo. Mas essa é uma tarefa árdua, principalmente para alguém que vê seus
medos em toda parte e acredita em toda tolice que escuta.
Um dos maiores méritos filme a esse
respeito é fazer com que a construção das cenas exponha percepção da criança, sendo
que o espectador é levado a nunca saber exatamente se está vendo os medos da
criança e projetando um mundo terrível a partir dele, ou se as coisas são mesmo
tão horríveis quanto parecem. Além disso, em diversos momentos somos colocados na
posição de ver o mundo pelos olhos dessa criança, sendo transportados para uma
perspectiva “em primeira pessoa” para a qual os outros atores se dirigem, como
se falassem com conosco por sermos,
naquele momento, o próprio Michael. Por meio desse recurso e de alguns outros (como
certos ângulos de câmera que se aproximam muito do rosto dos atores de maneira
a fazê-los mais assustadores ou bizarros) vamos entendamos o personagem e sentindo
um pouco daquilo que ele sente, de maneira que, ainda que quase não ocorram
mortes na obra ou mesmo cenas de grande violência, esses elementos
aparentemente simples vão formando um clima de tensão em torno dos personagens
e dando o tom da história. Há uma aura em cada fato que fica perceptível
conforme vemos o mundo pelos olhos da criança assustada.
No fim das contas, O que há para
o jantar? acerta justamente porque, por meio do filme que efetivamente
mostra, consegue fomentar um outro filme dentro de nossas cabeças.
Cadeia
alimentar

Essa história pessoal serve bem para
introduzir um aspecto importante do filme: o consumo de carne pelos Laemle. A família não só
consome esse alimento, como o consome em quantidade exacerbada, causando até
nojo – a bem dizer, a imagem da carne é uma espécie de metáfora (de
significados nem sempre evidentes) que perpassa todo o filme, seja durante as
cenas à mesa do jantar ou mesmo em outras. Há um momento, por exemplo, em que o
jovem Michael vê os pais transando e a mesma imagem é encenada: dois adultos se
mordendo, se comendo, como se fossem carne devorando carne.
Particularmente, acho que não
entendo todas as camadas dessa metáfora, contudo há uma em especial que
gostaria de explorar aqui e que se relaciona com a história que contei há
pouco.
Como sempre estamos perto do ponto
de vista do menino, é natural que compreendamos seu estranhamento com o mundo
adulto, com os pais e até mesmo seu questionamento sobre o consumo de carne.
Apesar disso, a perspectiva do filme sempre ressalta o quão bem sucedido o
casal Laemle é no interior da sociedade: eles tem bons amigos, se amam e são pacientes com seu filho lento e apagado,
de modo que é fácil acharmos (ou que as pessoas do filme achem) que, na
verdade, o grande problema da família é justamente o menino e seu jeito calado.
Se esse filme fosse ruim, ele criaria uma sensação de tensão unicamente em
torno da possibilidade dos pais serem canibais ou não, e caso fossem, a criança
teria razão em sentir mal estar em relação a eles, todavia caso não fossem, a
criança e seu desajuste com os demais é que seria o problema; entretanto, O
que há para jantar? é um bom filme e escapa dessa armadilha óbvia.
Um modo pelo qual faz é isso é
tornando os pais de Michael bizarros mesmo como pessoas ajustadas ao seu meio
social, ou seja, ainda que não sejam canibais malucos, eles são assustadores
pelos próprios papéis que desempenham na vida do filho: a figura de pai
repressor provedor e a da mãe afetuosa e rainha do lar. Existem várias cenas
que mostram isso, todavia, mais importante que apontá-las é perceber a própria
atmosfera estranha a qual, por meio de diversos elementos visuais e sonoros (como
a trilha repleta de rocks antigos), faz com que achemos ainda mais atemorizante
os adultos e suas idiossincrasias. Mesmo que o pai não seja um canibal,
percebemos facilmente o quão medonho é um pai que só consegue se relacionar com
o filho tentando controlá-lo pelo medo, ou mesmo que os adultos sejam tão
dissimulados e falsos, escondendo motivos e práticas ocultas, mudando
radicalmente de comportamento quando estão fora do olhar das crianças. Se mudam
de acordo com quem está olhando, quem eles serão de verdade quando ninguém os
olha? A dúvida de Michael é pertinente. Extremamente pertinente. Contudo, ter
dúvidas é um sintoma de que a criança não adota o modo de vida dos pais com
facilidade, e que está mais perto dos rejeitados, contestadores e outsiders.
Quando Michael é apresentado aos colegas de turma em sua nova escola, por
sinal, ele é tão estranho e desajustado que está no mesmo nível dos repetentes.
Sendo uma sombra se comparado aos
seus pais, pessoas sorridentes e saciadas, o filho é alguém que não toma parte
nos valores e no bem estar da família e no bem estar social. E é aí que entra a
metáfora da carne.
A carne – sempre farta, sempre
exuberante sobre a mesa dos Laemle – é uma espécie de símbolo da prosperidade
do modo de vida dessa família, por isso, quando Michael a recusa ou evita
comê-la, ele está hesitando em participar da família e ter os mesmos hábitos e
contentamentos que ela. A exemplo disso, numa das últimas cenas do filme o pai
tenta fazer as pazes com o filho lhe oferecendo carne – é um dos momentos mais
emblemáticos da obra, pois comer é ingressar na lógica bizarra dos pais.
Mas Michael não quer saber o gosto
da carne, ele quer mesmo é saber de onde ela vem, o prato pode até parecer
bonito, porém ele requereu um abate, não? Algo (alguém?) teve que morrer para a
carne chegar na mesa, e é essa realidade obscura por detrás das coisas que
assusta o menino. Analogamente, seus pais também parecem belos: têm uma casa
com cerquinha branca, um emprego respeitável e põe vegetais coloridos em seus
pratos, no entanto para além dessa fachada social que tipo de pessoas são
realmente? O que na verdade escondem debaixo da pele?
O questionamento do menino e do
filme está entre o social e o pessoal, e assim como achamos curiosa a trama
envolvendo canibalismo, também ficamos curiosos quanto a acidez que envolve os
moldes de sucesso e de família expostos ali. Por isso, ver a resolução do filme
e saber se os pais são ou não comedores de gente, é menos importante que
acompanhar a experiência da dúvida.
Carne
humana bem passada ou mal passada?

De certo modo, dá até dó que seja o
Café a resenhar este filme e não alguém que possa dar mais
publicidade a ele e analisá-lo com mais desenvoltura, entretanto, às vezes, os
melhores pratos ficam mesmo restritos à grupos pequenos e não há nada que
possamos fazê-los para convencer os outros de seu sabor. Sendo assim,
amiguinhos e amiguinhas, saboreiem bem a iguaria, pois é exclusividade nossa,
amantes do trash.
Trailer
Nenhum comentário:
Postar um comentário