segunda-feira, 13 de abril de 2015

Resenha: Dead sushi (Deddo sushi)


            Algumas comidas acabam caindo no gosto popular de uma hora pra outra gerando um boom, não apenas alimentício mas também comercial, em que  mais e mais empreendedores tentam lucrar com comidas da moda. Assim foi com as paletas mexicanas, os hambúrgueres gourmet, food trucks e, principalmente, os restaurantes japoneses. Por um lado, temos um movimento interessante no cenário gastronômico, no entanto, por outro, existem muitos espertinhos querendo apenas fazer dinheiro fácil vendendo comida ruim. Tendo isso em vista, é bom prestar atenção onde vai comer, afinal, acho que ser comido por sushis assassinos não está nos seus planos de sábado a noite.





Título original: Deddo sushi
Lançamento: 2013 (Japão)
Duração: 92 minutos
Direção: Noboru Iguchi




Dead Sushi
Rodízio de carne humana

            Alimentos assassinos não são novidade aqui no blog, pois já falamos sobre Biscoito Assassino, entretanto Dead Sushi é um filme que, apesar dos moldes de trash japonês que aposta nos absurdos e no cômico, consegue dialogar – intencionalmente ou não – com a relação moderna que as pessoas mantém com o alimento.
            Mesmo um filme produzido em uma cultura diferente, do outro lado do mundo, ele é capaz de dialogar com uma situação presente em algumas cidades brasileiras, sobretudo São Paulo. Não digo que a crítica e as referencias contidas nele sejam intencionais, bem, talvez até sejam na cultura oriental, entretanto, nossa vivencia como brasileiros e compreensão sobre a situação gastronômica daqui nos permite fazer uma co-relação entre um filme japonês e o simples ato de comer do brasileiro.

Um temaki de tripas pra começar



            Keiko, filha de um famoso chef de sushi, foge de casa após não atender as expectativas do pai. Ao conseguir emprego em uma pousada, ela percebe que seus talentos com o sushi são maiores do que o que seu pai dizia. Simultaneamente, um grupo de pesquisadores se hospedam na pousada devido a fama do sushi da casa, mas eles não esperavam que um antigo companheiro de trabalho planejasse uma vingança transformando simples sushis em monstros comedores de gente.

Sushi, mulheres e o patriarcalismo

            Dead Sushi começa com Keiko sendo treinada por seu pai para se tornar uma mestre do sushi como ele. Tanto as cenas quanto as falas deixam claro que o preparo do bolinho de arroz com peixe é muito similar ao das artes marciais, na qual o aprendiz precisa mostrar dedicação, comprometimento e constante treino, porque os resultados só irão surgir depois de anos de dedicação.
            Todo esse treinamento recebido por Keiko parece não alcançar os resultados esperados, não porque seus sushis são mal feitos, mas por seu pai sempre encontra defeitos no seu sushi. Entre os defeitos apontados está o fato de Keiko ser mulher, e, conseqüentemente, passar seu cheiro para o sushi.
            Com isso, a personagem se sente culpada pela própria sexualidade e decide fugir, tentar a vida em outro lugar e não decepcionar mais seu pai. Uma cena com menos de 5 minutos consegue nos dizer muito sobre a importância do sushi para a cultura japonesa e o papel da mulher nessa sociedade.
Pessoalmente, desde que eu comecei a escutar a falar sobre comida japonesa eu escuto a teoria de que mulheres não podem preparar por possuírem o corpo mais quente e, consequentemente, influencia no sabor do sushi. Mas até que ponto isso é verdade e não apenas um desculpa para manter as mulheres longe desse símbolo gastronômico e cultural japonês?
Uma pesquisa rápida na internet mostra que é normal as mulheres possuírem corpo mais quente durante o período fértil, mas essa temperatura é irrelevante se considerarmos que o manejo do peixe ocorre durante 2 ou 3 minutos. Além disso, cada corpo é um corpo, minha mão é muito mais quente do que de muitas garotas que conheço e tenho a leve impressão de que eles não medem a temperatura do chef, apenas julgam pelo sexo.
Esse mito foi construído, me corrijam se eu estiver errado, pelo fato do sushi não ser um prato cotidiano do Japão, ele era apenas consumido em datas comemorativas. As mulheres, antigamente, tinham um papel essencialmente doméstico e dependente do marido, sendo assim, caso elas começassem a preparar sushis nos eventos elas começariam a ter sua própria renda e acabariam se tornando independente dos maridos. Ou seja, era mais conveniente criar uma explicação para afastar as mulheres do sushi do que permitir uma mudança na estrutura social.
Outro ponto que não se aplica apenas ao filme mas também a sociedade como um todo é o fato de Keiko em nenhum momento desafiar o pai ou os mitos criados na preparação do sushi. Ela apenas os aceita pelo fato de que desde de pequena vive em uma sociedade que colabora com essa idéia. Por melhor que a moça seja como cozinheira, ela foi condicionada a acreditar em todos os mitos socialmente criados para mostrar o local da mulher na sociedade. Esse fato está muito próximo de nós no Brasil de hoje, em que muitas mulheres simplesmente aceitam a sua “condição inferior” porque foram criadas em uma sociedade patriarcal que fazem com que acreditem na diferença entre homens e mulheres. Muita gente (entre elas, muitas mulheres) ainda defendem (ou corroboram com) as diferenças salariais, com o mito de que a mulher é menos capacitada pra determinados serviços, que a mulher que tem que cuidar da casa ou, pior ainda, que elas merecem todos os abusos sofridos pelo marido. Todas essas coisas há muito tempo já foram desmentidas, mas ainda permanecem na sociedade na esperança de manter um sistema dominantemente masculino.

Colocando o peixe em seu lugar

            Decepcionada com sua “inabilidade” para as artes do sushi, Keiko foge e arruma um emprego onde ela, como mulher, se enquadraria melhor: o de empregada em uma pousada. Ela larga as facas e aceita sua condição de apenas servir.
            Assim que começa a trabalhar na pousada, um grupo de executivos de uma empresa farmacêutica se hospeda no local devido a fama de sua comida, recomendada por diversos críticos gastronômicos. Um detalhe interessante de notar é que todos os membros dessa indústria são homens, com exceção da secretaria. Mais uma vez a dominância masculina se mostra presente mais uma vez ligado a posição das mulher no mercado.
O filme, apesar de tocar nesse lado do machismo, também consegue dialogar com o papel social do alimento. Paralelamente ao que ocorre na pousada existe uma cena na qual um casal de jovens está caminhando quando observam um sem teto comendo sushi, ficando tão ofendidos com a situação que o garoto acaba agredindo o mendigo – nada mais justo não é? Como um pobre se atreve a comer a mesma comida que eu? Enfim, trataremos isso daqui a pouco, o que você precisa saber por enquanto é que o casal acaba tendo a cabeça atravessada por uma lula.
Voltando a pousada, os novos clientes estão loucos esperando para provar a refeição tão comentada. Na hora de servir, o “chef”, cheio de pose, faz os sushis sem nenhuma novidade e sem fazer nada fora do convencional a não ser o marketing e a apresentação fingindo ser algo grandioso, mas mesmo assim, todos aplaudem, afinal, ninguém estava ali pelo sushi em si, mas sim pelo espetáculo. Ao provar, o líder do grupo fala que é algo fabuloso, o melhor que já comeu.
Tudo muda quando nossa protagonista deixa escapar um comentário sobre o paladar do grupo e a técnica do chef. Pressionada sobre sua insolência, ela acaba desmascarando o alimento e mostrando que os clientes foram subestimados, depois da revelação, a opinião sobre a comida também muda, algo que era delicioso passa a ser uma comida de baixa qualidade. Como a própria Keiko diz: “vocês não passam de falsos gourmet”
A partir desse momento o filme se transforma em uma mistura de artes marciais, filme de zumbi, com sushis assassinos e toda a bizarrice característica do trash japonês.

Gourmet, o nosso sushi assassino



Com isso em vista vamos sair um pouquinho do Japão infestado de sushis assassinos e vamos observar a nossa São Paulo de 2015 (falo SP porque é o lugar que conheço, mas creio que esteja acontecendo em vários outros lugares).
Bom, ainda não temos sushis carnívoros (infelizmente), mas nem por isso podemos ignorar que existe uma praga se alastrando no mercado, o gourmet. Assim como no filme, ele surgiu de uma hora para a outra e consumiu a alma – e a carteira – de muitas pessoas.
Bem, mas... o que é o gourmet?
Teoricamente, faz referencia a uma pessoa que entende de boa comida e vinhos. Entretanto, a mesma palavra pode ser usada para se referir a comidas com técnicas mais elaboradas, ingredientes diferenciados ou, até mesmo, algo exclusivo.
Você deve estar pensando: ”Ok, mas se a comida gourmet realmente utiliza ingredientes mais caros e técnicas mais elaboradas o seu preço é justificável, certo?”. Certo, jovem padawan, o problema é que muito do se vende como gourmet não é gourmet, e boa parte dessas pessoas que estão surgindo no meio dessa onda entraram pela oportunidade de mercado. Muitas delas não tinham experiência nenhuma no ramo. O que ocorre é que o gourmet começou a se tornar um padrão, tudo se tornou gourmet e a partir do momento em que tudo se torna gourmet... nada é gourmet. A qualidade da comida acaba ficando abaixo do próprio rótulo.
Isso acaba gerando sintomas não apenas no mercado como nos consumidores, tanto pelo aspecto econômico quanto pelo “ego gourmet”. Por um lado, as pessoas se acostumam a pagar um preço elevado por coisas simples com nomes complexos, ou seja, o preço se tornou um sinônimo de qualidade – sabe aquele hot dog do foodtruck que custa 20 reais e não vem nem metade dos ingredientes daquele que custa 5 reais na praça? Então. Por outro lado, isso também gera um grupo de pessoas chatas que se acham experts em comida, mas que no fundo apenas seguem as tendências. E é exatamente isso que ocorre no filme: o chefe do grupo de executivos, em diversos momentos, se diz super entendedor de sushi, tanto que ele fala que tem o jeito certo de comer e coisas assim, porém, ao provar e falar que é fantástico e, logo depois, mudar de opinião, mostra que o seu paladar está totalmente ligado às críticas que ele escuta, e não ao seu gosto pessoal.
O “gourmet” acabou se tornando um predador da própria comida, um zumbi que infecta tudo aquilo que está em torno dele, do mesmo modo que no filme um sushi é capaz de morder o outro e transformá-lo em assassino. Um alimento gourmetizado começa a fazer pressão para que os outros se gourmetizem, gerando uma reação em cadeia. Algo interessante de notar é que muito disso caiu sobre a comida de rua que, teoricamente, deveria ser barata e rápida, o oposto do que ocorre.
O alimento tornou-se um objeto de consumo, uma demonstração de status social. Do mesmo modo que as pessoas criam barreiras entre elas pelas roupas que usam, a comida, que deveria ser um conector, também assume esse papel de diferenciação. O estrangeirismo da moda age do mesmo modo sobre os alimentos. Quer impulsionar as vendas e ainda cobrar mais caro por um produto? Coloque um ingrediente que não seja nacional e deixe isso bem claro no cardápio. Isso retoma uma das primeiras cenas do filme, como um morador de rua se atreve a comer sushi? Olha que absurdo ele comer as mesmas coisas que eu.
Isso justifica o surgimento das marmitas gourmet e dos PF de 50 reais, uma forma de se afastar da visão de “comida de operário” e mostrar que você está acima daquilo.

Misto? Só se for com Jamón espanhol e queijo de cabra produzido nos alpes noruegueses por monges tibetanos e um toque de azeite trufado italiano



Mas calma, não precisa sair tacando fogo em tudo que tiver o nome gourmet, até no filme tem um sushi zumbi bonzinho. Eu, como estudante de gastronomia, seria meio hipócrita em falar que não existem coisas boas. Por mais que tenha seu lado negativo é legal ressaltar que muitas coisas boas começaram a surgir e que o mercado alimentício está se fortalecendo. As pessoas estão começando a prestar mais atenção naquilo que comem, estão cozinhando mais ao invés de simplesmente tacar aquelas melecas congeladas no microondas, estão começando a perceber que é possível fazer comidas gostosas em casa (e em alguns casos sem gastar muito). Eu vejo que muitas pessoas começaram a se juntar com amigos para cozinhar junto, usando o alimento como um meio para a interação social, algo que força os profissionais da área a serem mais criativos e não caírem no comodismo. Com isso, o alimento passa a ser visto não como uma mera fonte de subsistência mas também como um símbolo cultural que precisa ser valorizado. E, apesar de muitas coisas me incomodarem, a ideia desses festivais gastronômicos é interessantíssima, do mesmo modo que os food trucks também são conceitos legais (apesar do status gourmet que ele aderiu no Brasil). Ou seja, essa moda tem dois lados, cabe a nós não cair no marketing e ter bom senso quando for comer algo, por que por mais que existam coisas boas tem muita comida que não vale nem metade do preço cobrado.
Por fim, ao rever o filme me veio uma questão: será que, além de machismo, o fato de só homem fazer sushi não seria também uma forma de gourmetizar? Pois, assim como pessoas colocam nomes difíceis em coisas simples para tentar elevar a qualidade pelo marketing e não pelo alimento, o simples fato de falar que a mulher faria um sushi de qualidade inferior e o homem superior acaba gerando um mito e “elevando” a qualidade do mesmo. Por que se você oferecer para uma mesma pessoa uma “macarronada” e um “fettuccine com ragú” talvez a percepção da comida mude pelo nome, e não pelo alimento em si que é o mesmo, assim como oferecer uma “torta de banana” e uma “banoffee pie”. Quer dizer, pode ser que dois sushis iguais seja interpretados de duas maneiras diferentes caso um seja apresentado como feito por um homem e o outro por uma mulher.

Devo criar meu foodtruck de sushis assassinos?

            Sim, afinal, quem não gostaria de viver em um mundo com alimentos zumbis?
            Voltando ao filme, Dead Sushi é um trash divertido, bizarro e gostoso de assistir - cheio de sangue, referencias sexuais, zumbis, nojeiras, artes marciais e é claro sushis voadores dentados que além de matarem também transam. Embora seja um filme simples, com pouco cenarios e com efeitos bem duvidosos, ele cumpre muito bem o seu papel. A trilha sonora, em diversos momentos, remete a séries como Power Ranger e derivados, assumindo um ritmo mais acelerado durante as lutas, mas que tem seus momentos dramáticos a lá novela mexicana.
Enfim, liguem naquele japa gourmet mais caro da cidade e peça um combinado de sushis zumbis para acompanhar essa obra prima do cinema oriental. Ah... mas não se esqueça de se certificar que só homens trabalham no lugar.

Obs: lembre-se de aprender artes marciais antes de fazer o pedido.

Trailer

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