Sabe aquele filme que você está
querendo ver no cinema? Ou aquela moto sensacional que nem nos seus sonhos mais
ambiciosos você consideraria comprar? E o apetrecho tecnológico super bacana
que você deseja ganhar de presente? Então, sabe todos esses itens?
Título original: A super fêmea
Lançamento:
1973
(Brasil)
Duração:
100
minutos
Direção:
Anibal
Massaini Neto
A super fêmea
Como comprar e vender pessoas
Como comprar e vender pessoas
Por incrível que pareça “A super
fêmea” é um bom filme. Claro, não bom como “Laranja mecânica” ou “Terra em
transe”. Não me entendam mal. Contudo, também não chega a ser um desastre divertido
como os filmes do Ed Wood ou coisa semelhante. O que quero dizer é que para uma obra da boca de lixo, logo, com todos os motivos possíveis e
inimagináveis para dar errado, ela tem qualidades que são bem incomuns nesse
tipo de produção.
Mas vocês não vivem dizendo isso de
um monte de filmes?
Sim, no entanto, o que há de
particular nesse aqui é que ele não se contenta em ser apenas uma obra popular
regada a sexo e humor babaca, na verdade, um dos aspectos mais interessantes dele transitar facilmente entre a estética da boca de lixo
e outras formas de cinema. Esse entra e sai não é inocente, mas
malicioso, é como se, de um lado, o diretor e os atores dirigissem e atuassem
e, de outro, dialogassem contigo a respeito do que estão fazendo. O que você
acha disso? Você concorda? É engraçado não? Te emocionou? Enfim, há
elementos sutis de metalinguagem que revelam que, quando o filme é tosco e
pobre, ele é o é por uma escolha meditada e não meramente por falta de grana e
talento, como era bem comum no período.
No mais, “A super fêmea” é mais um
daqueles filmes os quais tem muitas questões embutidas, de maneira que deixarei
de abordar e mencionar várias delas por motivos de tamanho, trabalho e,
sobretudo, preguiça. Que elas fiquem de incentivo para ti, leitor, assistir o filme.
Quem é
a gata?
Um grupo de publicitários recorrem a
um guru para descobrir como aumentar as vendas das novíssimas pílulas
anticoncepcionais masculinas. A solução dada por ele é criar uma campanha cujo um ícone feminino, a super fêmea, seja o grande incentivo para o consumo.
Eu
escolho você
O filme se concentra em dois focos:
o que acontece com Eva, a moça escolhida para ser a garota propaganda das
pílulas e, ademais, o mundo sujo da propaganda que se move em torno da moça. No
meio disso rolam piadas prontas, referências a filmes famosos, Adoniram Barbosa, tiradas
sexuais, personagens estereotípicos, feministas que parecem um tipo de inversão do
machismo, um publicitário genial e exótico, os peitinhos da Vera Fisher, algumas
críticas aos militares e coisas mais.
Por conta dessa multiplicidade creio que não é adequado falar que haja um tema
no filme, o que não implica que ele seja uma sopa de letrinhas que não dê uma frase.
No geral, o gosto é bom. Entretanto, o
que mais se apetece, penso, é como ele lida com a ideia da criação de símbolos
coletivos por meio da propaganda e, obviamente, da política. Vamos detalhar
isso.
Os publicitários da trama tem em
mãos um problema que é também uma oportunidade: um produto encanado, uma pílula
que não vende, mas que poderia render muito dinheiro. Assim, para conseguir fazer
com que sua mercadoria seja comprada, eles não se dedicam a repensar o produto,
porém a maneira pela qual ele é apresentado aos consumidores. É uma regra
rudimentar que os meios de comunicação exploram desde sempre: não importa o que
você esteja vendendo, sempre há um jeito de fazer com que as pessoas acretem que
aquilo é bom para elas. O que está em questão aqui é que não importa se a
pílula oferecida é boa ou não, mas apenas o que ela representa para quem vai compra-la.
Um produto nem sempre é vendido por sua utilidade, mesmo que tenha sido
fabricado para ser útil. Um comercial de escova de dentes pode até ressaltar o
quão efetiva ela pode ser para solucionar nossos problemas, contudo, um
comercial da Coca-cola ou do novo carro do
ano não nos vende somente um líquido gostoso e um aparelho de transporte, mas
pretensas satisfações as quais teríamos consumindo aqueles produtos que estão
além de sua utilidade, em outras palavras, a propaganda acaba vendendo seu
produto como se fosse um fim para alguma coisa.
Por isso, os publicitários - na vida
real ou no filme – buscam transformar suas mercadorias em algo mais que úteis,
em receptáculos de valores sociais, signos de prestígio e coisas mais. Para
nós, os moderninhos de hoje, que estão aí pela internet o tempo todo, isso soa
bastante óbvio, já que nos misturamos profundamente a propaganda a ponto de
tomá-la como um artifício diário para expressar nossos sentimentos e
pensamentos: vestimos camisetas de filmes, convidamos amigos para frequentar o
facebook, estampamos fotos de ídolos e marcas como se elas expressassem nossa
essência interior (aliás, alguém nesse mundo ainda tem algo por dentro?),
entre outras coisas, todavia, o óbvio facilmente se torna banal e é por isso
que deve ser dito sempre. Voltemos ao filme.
Para que os publicitários consigam seu
intento eles pesquisam informações a respeito do público alvo para então
convencer essas pessoas não com a verdade, mas com expectativas que elas podem
reconhecer e apreciar como se fosse uma escolha pessoal, em outras palavras, é
preciso descobrir quem são essas pessoas, do que gostam, o que pensam, para
oferecer algo que as reflita e transmita a ilusão de estar escolhendo, embora
já tenha sido de antemão preparado para aquele público. É preciso usar a
realidade para criar ficções atrativas, digamos.
Se nos tempos dos nossos avós –
talvez até aquele do filme - o cliente escolhia o produto, hoje, com o triunfo
do marketing, a situação se inverteu: são os produtos que nos escolhem e com
tanto conhecimento de quem somos que até acreditamos estar exercendo nossa
liberdade ao adquiri-los.
Fabricando
um produt... Quer dizer, construindo um país
A pesquisa sobre o público-alvo – o
homem brasileiro – dá em três coisas, especificamente, em três mitos
compartilhados por eles: o do café, o da mulher e o do futebol. A partir daí, ao
identificar características recorrentes entre os brasileiros, os marqueteiros
as exploram como se elas representassem a totalidade deles tal qual um tipo de
alma do macho nacional que gosta de um cafézinho, belas mulheres e um jogo entre
amigos. Obviamente, trata-se de uma mentira, um estereótipo – aliás, de uma arte. Quem vende ilusões sabe
exatamente o que está fazendo e o que pretende conseguir com isso. É tolice
pensar que marqueteiros e publicitários sejam ingênuos a respeito do que fazem,
e supor que eles, quando põe jovens em propagandas de cerveja ou estereotipam
as mulheres como lindas e obtusas, por exemplo, não estejam cientes dos
prejuízos sociais que estão causando. Eles sabem, só não ligam. O estereótipo que
criam não é desinteressado, não existe sem ter utilidade. Nesse caso específico,
identificar três mitos ao homem brasileiro serve a quem quer vender pilulas, no
entanto, podemos ir um pouco além disso e perguntar a quem servem as imagens de
Brasil que nos são passadas, sejam aquelas dos homens daqui, das mulheres ou
mesmo de nosso país como um todo, em suma, quem lucra quando cremos que este é o
país da impunidade no qual os políticos são todos desonestos e o povo alheio ao
que se passa nele? Quem fatura alto com este sendo o país do futebol? E com
“nosso” amor pelo carro, pela cerveja, pela praia e belas mulheres? Que motivo nos faz pensar que somos um povo pacífico?
Como vocês bem sabem, a lista de
representações caricaturais é imensa, nem preciso continuar com isso. A questão
é: se adotamos qualquer uma dessas definições para o Brasil (ou para o
brasileiro), a quem estaremos servindo sem perceber? Qual mito de qual agência
publicitária – partido, revista, jornal, religião – estará se fazendo ouvir por
nossas bocas? Que pílula estaremos prestes a tomar?
Minha
superfêmea
Ok, mas vamos ao que interessa: onde
entra a Vera Fisher pelada nesse história?
Bem, ao final desse processo
de identificação do brasileiro e do uso dos mitos que poderiam dominá-lo
chega-se a conclusão de usar uma moça linda para alavancar o mercado de
pílulas. Cria-se então a super fêmea, um símbolo sexual que viria atiçar a
vontade dos homens e os estimular ao sexo livre, consequentemente, também à compra
do medicamento. Vera Fisher, quer dizer, Eva, acaba se tornando um ícone da
volúpia nacional e faz o remedinho vender indecentemente.
Esse aspecto da trama é muito
interessante, pois ela se demora em mostrar o fascínio que a superfêmea exerce
sobre os homens: alguns tentam agarrá-las, outros ficam enlouquecidos e assim
por diante. Todavia, esse frenesi geral se inicia somente depois que Eva assume
o papel de propagandista de pílulas, isto é, enquanto ela era apenas uma moça
qualquer não havia montantes de pessoas a buscando. Com efeito, perguntemos: o
que mudou de um momento para o outro? Basicamente nada, afinal ela ainda é a mesma, no
entanto, retomo o que já tinha dito: embora a essência da moça tenha sido
mantida, o que é apresentado as pessoas foi radicalmente alterado. Ao ser
cooptada pelo capital, Eva se torna algo mais que uma “mera” mulher porque
deixa simplesmente de ser alguém e se torna algo sobre-humano e desejável, um
símbolo de valores - sexualidade, independência, riqueza - cujos homens
querem possuir. Por sinao, quando digo “possuir” não expresso unicamente um
significado sexual, mas de detenção, de posse, também. Por um lado, Eva é vendida como um
objeto - a superfêmea, a coisa sobre-humana que garantiria ao homem um orgasmo
cósmico -, por outro, ela é uma pessoa como qualquer outra, que também precisa
ser amada e com quem as pessoas podem manter uma relação de afeto.
Sintetizando: ela é um objeto vendido coletivamente como sendo pessoal. Todos a amam,
pois creem que ela foi feita para cada um deles e, por isso, ignoram sua
condição artificial, acreditando que tem uma relação particular com ela. É como
um jogo em que todos sabemos que é mentirinha e mesmo assim “escolhemos”
acreditar.
Com isso, começam a surgir coisas
bizarras na vida da moça que vão desde o ricaço que acha que pode compra-la
como uma meretriz (olhando assim seu aspecto de objeto), até o publicitário que
enlouquece e cria uma boneca a qual nomeia como Eva (olhando então seu aspecto
humano). Nos dois casos trata-se do mesmo impulso: aquele de ter privadamente
o que é de todos. Cedo as meninas descobrem isso através de banalidades: veem uma
boneca na TV a qual desejam e, quando a possuem creem que, embora ela seja um
produto fabricado para as massas, possam manter com ela uma relação pessoal.
Dão até nome. Igualmente adolescentes estampam seus quartos com posteres de
seus artistas prediletos, decorando detalhes da vida dessas pessoas nem elas mesmas
se lembram. Por fim, sempre que alguém diz algo como: “meu Johny Dep”, estará fazendo
isso também. Colocando claramente é o seguinte: as pessoas criam maneiras de
tirar seus idolos do coletivo e torna-los pessoais, algo impossível, pois se os ídolos fossem pessoais não
exerceriam qualquer fascínio sobre as massas e não seriam ídolos. O amor de
fã (ou consumidor) é contraditório: deseja-se possuir algo que é amado por
todos mantendo o caráter publico e coletivo disso, mas tendo o amado só pra si.
No correr do filme Eva vai se dando
conta minimamente desse processo, não o suficiente para deixar de ser a gostosa
alienada que os anúncios vendem, porém o bastante para querer encontrar um
caminho que a faça mais feliz, onde possa ser não uma imagem, uma boneca, mas
“apenas” ela mesma.
Devo
tomar a pílula?
Sim, sempre!
Pode ter acontecido que depois de
fazer tanta teoria social vocês estejam achando que esse é um filme complexo e
chato, porém não se enganem, leitores do Café, ele é boca do lixo
do começo ao fim, logo, divertido, sujo
e aprazível.
Malgrado isso, as ideias propagadas
nele podem se passar por ingênuas caso não sejam bem analisadas. Nesse sentido
“A superfêmea” tem muitos méritos, muito mais que a diversas produções toscos
feitos aqui no país. De um modo geral, ele mostra como um mundo artificial
criado pela propaganda pode controlar um povo, e embora soe mais ligado à
economia e ao mercado, está intimamente associado a propaganda política do
regime militar também. Tal como Eva é um símbolo de consumo, poderia ser também
um símbolo político. No fundo, ela é os dois e tantos mais... Uma ilusão criada
para controlar as pessoas e lucrar com a ignorância delas, seja sobre o que
consomem, o que compram ou quais poderes apoiam.
Assista, aprecie e duvide.
Trailer
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