sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Resenha: A super fêmea

            
            Sabe aquele filme que você está querendo ver no cinema? Ou aquela moto sensacional que nem nos seus sonhos mais ambiciosos você consideraria comprar? E o apetrecho tecnológico super bacana que você deseja ganhar de presente? Então, sabe todos esses itens?
            Você acha mesmo que está os escolhendo?






Título original: A super fêmea
Lançamento: 1973 (Brasil)
Duração: 100 minutos
Direção: Anibal Massaini Neto




A super fêmea
Como comprar e vender pessoas
 
            Por incrível que pareça “A super fêmea” é um bom filme. Claro, não bom como “Laranja mecânica” ou “Terra em transe”. Não me entendam mal. Contudo, também não chega a ser um desastre divertido como os filmes do Ed Wood ou coisa semelhante. O que quero dizer é que para uma obra da boca de lixo, logo, com todos os motivos possíveis e inimagináveis para dar errado, ela tem qualidades que são bem incomuns nesse tipo de produção.
            Mas vocês não vivem dizendo isso de um monte de filmes?
            Sim, no entanto, o que há de particular nesse aqui é que ele não se contenta em ser apenas uma obra popular regada a sexo e humor babaca, na verdade, um dos aspectos mais interessantes dele transitar facilmente entre a estética da boca de lixo e outras formas de cinema. Esse entra e sai não é inocente, mas malicioso,  é como se, de um lado, o diretor e os atores dirigissem e atuassem e, de outro, dialogassem contigo a respeito do que estão fazendo. O que você acha disso? Você concorda? É engraçado não? Te emocionou? Enfim, há elementos sutis de metalinguagem que revelam que, quando o filme é tosco e pobre, ele é o é por uma escolha meditada e não meramente por falta de grana e talento, como era bem comum no período.
            No mais, “A super fêmea” é mais um daqueles filmes os quais tem muitas questões embutidas, de maneira que deixarei de abordar e mencionar várias delas por motivos de tamanho, trabalho e, sobretudo, preguiça. Que elas fiquem de incentivo para ti, leitor, assistir o filme.

Quem é a gata?

            Um grupo de publicitários recorrem a um guru para descobrir como aumentar as vendas das novíssimas pílulas anticoncepcionais masculinas. A solução dada por ele é criar uma campanha cujo um ícone feminino, a super fêmea, seja o grande incentivo para o consumo.

Eu escolho você


            O filme se concentra em dois focos: o que acontece com Eva, a moça escolhida para ser a garota propaganda das pílulas e, ademais, o mundo sujo da propaganda que se move em torno da moça. No meio disso rolam piadas prontas, referências a filmes famosos, Adoniram Barbosa, tiradas sexuais, personagens estereotípicos, feministas que parecem um tipo de inversão do machismo, um publicitário genial e exótico, os peitinhos da Vera Fisher, algumas críticas aos militares  e coisas mais. Por conta dessa multiplicidade creio que não é adequado falar que haja um tema no filme, o que não implica que ele seja uma sopa de letrinhas que não dê uma frase. No geral, o gosto é bom.  Entretanto, o que mais se apetece, penso, é como ele lida com a ideia da criação de símbolos coletivos por meio da propaganda e, obviamente, da política. Vamos detalhar isso.
            Os publicitários da trama tem em mãos um problema que é também uma oportunidade: um produto encanado, uma pílula que não vende, mas que poderia render muito dinheiro. Assim, para conseguir fazer com que sua mercadoria seja comprada, eles não se dedicam a repensar o produto, porém a maneira pela qual ele é apresentado aos consumidores. É uma regra rudimentar que os meios de comunicação exploram desde sempre: não importa o que você esteja vendendo, sempre há um jeito de fazer com que as pessoas acretem que aquilo é bom para elas. O que está em questão aqui é que não importa se a pílula oferecida é boa ou não, mas apenas o que ela representa para quem vai compra-la. Um produto nem sempre é vendido por sua utilidade, mesmo que tenha sido fabricado para ser útil. Um comercial de escova de dentes pode até ressaltar o quão efetiva ela pode ser para solucionar nossos problemas, contudo, um comercial da Coca-cola ou do novo carro do ano não nos vende somente um líquido gostoso e um aparelho de transporte, mas pretensas satisfações as quais teríamos consumindo aqueles produtos que estão além de sua utilidade, em outras palavras, a propaganda acaba vendendo seu produto como se fosse um fim para alguma coisa.
            Por isso, os publicitários - na vida real ou no filme – buscam transformar suas mercadorias em algo mais que úteis, em receptáculos de valores sociais, signos de prestígio e coisas mais. Para nós, os moderninhos de hoje, que estão aí pela internet o tempo todo, isso soa bastante óbvio, já que nos misturamos profundamente a propaganda a ponto de tomá-la como um artifício diário para expressar nossos sentimentos e pensamentos: vestimos camisetas de filmes, convidamos amigos para frequentar o facebook, estampamos fotos de ídolos e marcas como se elas expressassem nossa essência interior (aliás, alguém nesse mundo ainda tem algo por dentro?), entre outras coisas, todavia, o óbvio facilmente se torna banal e é por isso que deve ser dito sempre. Voltemos ao filme.
            Para que os publicitários consigam seu intento eles pesquisam informações a respeito do público alvo para então convencer essas pessoas não com a verdade, mas com expectativas que elas podem reconhecer e apreciar como se fosse uma escolha pessoal, em outras palavras, é preciso descobrir quem são essas pessoas, do que gostam, o que pensam, para oferecer algo que as reflita e transmita a ilusão de estar escolhendo, embora já tenha sido de antemão preparado para aquele público. É preciso usar a realidade para criar ficções atrativas, digamos.
            Se nos tempos dos nossos avós – talvez até aquele do filme - o cliente escolhia o produto, hoje, com o triunfo do marketing, a situação se inverteu: são os produtos que nos escolhem e com tanto conhecimento de quem somos que até acreditamos estar exercendo nossa liberdade ao adquiri-los.

Fabricando um produt... Quer dizer, construindo um país

            A pesquisa sobre o público-alvo – o homem brasileiro – dá em três coisas, especificamente, em três mitos compartilhados por eles: o do café, o da mulher e o do futebol. A partir daí, ao identificar características recorrentes entre os brasileiros, os marqueteiros as exploram como se elas representassem a totalidade deles tal qual um tipo de alma do macho nacional que gosta de um cafézinho, belas mulheres e um jogo entre amigos. Obviamente, trata-se de uma mentira, um estereótipo – aliás,  de uma arte. Quem vende ilusões sabe exatamente o que está fazendo e o que pretende conseguir com isso. É tolice pensar que marqueteiros e publicitários sejam ingênuos a respeito do que fazem, e supor que eles, quando põe jovens em propagandas de cerveja ou estereotipam as mulheres como lindas e obtusas, por exemplo, não estejam cientes dos prejuízos sociais que estão causando. Eles sabem, só não ligam. O estereótipo que criam não é desinteressado, não existe sem  ter utilidade. Nesse caso específico, identificar três mitos ao homem brasileiro serve a quem quer vender pilulas, no entanto, podemos ir um pouco além disso e perguntar a quem servem as imagens de Brasil que nos são passadas, sejam aquelas dos homens daqui, das mulheres ou mesmo de nosso país como um todo, em suma, quem lucra quando cremos que este é o país da impunidade no qual os políticos são todos desonestos e o povo alheio ao que se passa nele? Quem fatura alto com este sendo o país do futebol? E com “nosso” amor pelo carro, pela cerveja, pela praia e belas mulheres? Que motivo nos faz pensar que somos um povo pacífico?
            Como vocês bem sabem, a lista de representações caricaturais é imensa, nem preciso continuar com isso. A questão é: se adotamos qualquer uma dessas definições para o Brasil (ou para o brasileiro), a quem estaremos servindo sem perceber? Qual mito de qual agência publicitária – partido, revista, jornal, religião – estará se fazendo ouvir por nossas bocas? Que pílula estaremos prestes a tomar?

Minha superfêmea


            Ok, mas vamos ao que interessa: onde entra a Vera Fisher pelada nesse história?
            Bem, ao final desse processo de identificação do brasileiro e do uso dos mitos que poderiam dominá-lo chega-se a conclusão de usar uma moça linda para alavancar o mercado de pílulas. Cria-se então a super fêmea, um símbolo sexual que viria atiçar a vontade dos homens e os estimular ao sexo livre, consequentemente, também à compra do medicamento. Vera Fisher, quer dizer, Eva, acaba se tornando um ícone da volúpia nacional e faz o remedinho vender indecentemente.
            Esse aspecto da trama é muito interessante, pois ela se demora em mostrar o fascínio que a superfêmea exerce sobre os homens: alguns tentam agarrá-las, outros ficam enlouquecidos e assim por diante. Todavia, esse frenesi geral se inicia somente depois que Eva assume o papel de propagandista de pílulas, isto é, enquanto ela era apenas uma moça qualquer não havia montantes de pessoas a buscando. Com efeito, perguntemos: o que mudou de um momento para o outro? Basicamente nada, afinal ela ainda é a mesma, no entanto, retomo o que já tinha dito: embora a essência da moça tenha sido mantida, o que é apresentado as pessoas foi radicalmente alterado. Ao ser cooptada pelo capital, Eva se torna algo mais que uma “mera” mulher porque deixa simplesmente de ser alguém e se torna algo sobre-humano e desejável, um símbolo de valores - sexualidade, independência, riqueza - cujos homens querem possuir. Por sinao, quando digo “possuir” não expresso unicamente um significado sexual, mas de detenção, de posse, também. Por um lado, Eva é vendida como um objeto - a superfêmea, a coisa sobre-humana que garantiria ao homem um orgasmo cósmico -, por outro, ela é uma pessoa como qualquer outra, que também precisa ser amada e com quem as pessoas podem manter uma relação de afeto. Sintetizando: ela é um objeto vendido coletivamente como sendo pessoal. Todos a amam, pois creem que ela foi feita para cada um deles e, por isso, ignoram sua condição artificial, acreditando que tem uma relação particular com ela. É como um jogo em que todos sabemos que é mentirinha e mesmo assim “escolhemos” acreditar.
            Com isso, começam a surgir coisas bizarras na vida da moça que vão desde o ricaço que acha que pode compra-la como uma meretriz (olhando assim seu aspecto de objeto), até o publicitário que enlouquece e cria uma boneca a qual nomeia como Eva (olhando então seu aspecto humano). Nos dois casos trata-se do mesmo impulso: aquele de ter privadamente o que é de todos. Cedo as meninas descobrem isso através de banalidades: veem uma boneca na TV a qual desejam e, quando a possuem creem que, embora ela seja um produto fabricado para as massas, possam manter com ela uma relação pessoal. Dão até nome. Igualmente adolescentes estampam seus quartos com posteres de seus artistas prediletos, decorando detalhes da vida dessas pessoas nem elas mesmas se lembram. Por fim, sempre que alguém diz algo como: “meu Johny Dep”, estará fazendo isso também. Colocando claramente é o seguinte: as pessoas criam maneiras de tirar seus idolos do coletivo e torna-los pessoais, algo impossível, pois se os ídolos fossem pessoais não exerceriam qualquer fascínio sobre as massas e não seriam ídolos. O amor de fã (ou consumidor) é contraditório: deseja-se possuir algo que é amado por todos mantendo o caráter publico e coletivo disso, mas tendo o  amado só pra si.
            No correr do filme Eva vai se dando conta minimamente desse processo, não o suficiente para deixar de ser a gostosa alienada que os anúncios vendem, porém o bastante para querer encontrar um caminho que a faça mais feliz, onde possa ser não uma imagem, uma boneca, mas “apenas” ela mesma.

Devo tomar a pílula?


             Sim, sempre!
            Pode ter acontecido que depois de fazer tanta teoria social vocês estejam achando que esse é um filme complexo e chato, porém não se enganem, leitores do Café, ele é boca do lixo do começo ao fim, logo,  divertido, sujo e aprazível.
            Malgrado isso, as ideias propagadas nele podem se passar por ingênuas caso não sejam bem analisadas. Nesse sentido “A superfêmea” tem muitos méritos, muito mais que a diversas produções toscos feitos aqui no país. De um modo geral, ele mostra como um mundo artificial criado pela propaganda pode controlar um povo, e embora soe mais ligado à economia e ao mercado, está intimamente associado a propaganda política do regime militar também. Tal como Eva é um símbolo de consumo, poderia ser também um símbolo político. No fundo, ela é os dois e tantos mais... Uma ilusão criada para controlar as pessoas e lucrar com a ignorância delas, seja sobre o que consomem, o que compram ou quais poderes apoiam.
            Assista, aprecie e duvide.


Trailer

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