Você
tem um herói? Ele é forte, inteligente, criativo? E se, além disso, ele fosse uma
pessoa bem desagradável, você ainda o teria como um herói? Sim? Afinal, o Wolverine
é antissocial e nem por isso deixamos de gostar dele, não é? Mas suponhamos que
seu ídolo fosse, também, pouquíssimo higiênico, ele deixaria ser seu herói? Não?
Afinal, o Dicaprio só toma dois banhos semanais e nem por isso é menos
interessante, não é? Mas e se seu herói,
além de sujo e desagradável, fosse também machista, péssimo atirador, bêbado, racista,
feio, inconsequente, e outras coisas que eu não poderia escrever sem que meu
editor me censurasse; ele continuaria sendo seu herói? Mais que isso: ele
continuaria sendo um herói?
Ah,
não responda ainda, leitor. Não sem antes conhecer um pouco desse inusitado personagem...
Título original: Torrente, el brazo tonto de La ley
Lançamento: 1998 (Espanha)
Duração: 97 minutos
Direção: Santiago Segura
Torrente, o braço tonto da lei
Porco e herói
Intencionalmente escroto, “Torrente” é uma das maiores
bilheterias da Espanha e uma das melhores amostras de que o cinema absolutamente
tosco, o trash, pode ser ótimo dentro de sua estética suja e grosseira.
Influenciado por “O dia da besta”, o filme foge de qualquer clichê
americanizado sobre policiais, protagonistas, piadas prontas ou roteiros,
exibindo toda a força de um cinema bem feito, existente foras das hegemonias
tradicionais.
Qual é a ocorrência?
Torrente, um policial corrupto, de valores morais
questionáveis, divide a vida com seu pai num apartamento moribundo nos
subúrbios de Madri. Quando uma nova família chega à vizinhança, ele se aproxima
do jovem da casa tendo em vista sua prima ninfomaníaca, Amparita. Ao se
envolver mais com o rapaz e com o bairro como um todo, Torrente descobre
movimentações criminosas de tráfico de drogas relacionadas a um restaurante
estrangeiro.
Clichês que você vai encontrar:
Estrangeiros
marginalizados. Mensagens edificantes. Personagens caricatos.
Tão ruim que é bom
O
filme se constrói sobre a relação de Torrente com seu vizinho e as peripécias de
ambos na investigação das atividades ilícitas do bairro. No meio disso, ambos
vão se envolvendo com uma rede grande de criminosos sem que se deem conta,
sendo cada vez mais impelidos ao centro dela.
Para
quem viu o filme por dois minutos que seja, fica um tanto óbvio de dizer, mas
direi ainda assim: o personagem-protagonista é o maior atrativo do filme.
Torrente é um porco completo. E o mais curioso disso: é tão escroto que quanto
pior se mostra mais passamos a amá-lo e a aceitar suas ações. Esse fato levanta
no mínimo uma questão: afinal, por que nos filiamos às pessoas apesar de seus defeitos?
Por que nos atraímos não só pela virtude, mas também pelos vícios das almas
alheias?
Sinceramente,
não sei, porém talvez entender isso ajude a explicar o comportamento eleitoral
de muita gente. Seja como for, qualquer esperança de ver o homem se redimir com o passar do tempo e se enquadrar nos estereótipos conhecidos desaparece. No fim do filme não ficam dúvidas sobre a moral
do personagem: ela é torta e absolutamente torta. Essa constatação, contudo,
não faz com que o condenemos, desejando que ele sofra pelas consequências de
seus atos, mas que consideremos, durante uns dois, três
segundos ou menos, que ele, no fundo, mas bem no fundo (bem no fundo mesmo) até pode ser
uma boa pessoa.
Não é Charles Bronson
Se
pensarmos em termos históricos, notaremos que, em geral, somos todos
influenciados pelo cinema americano. Depois da Segunda Guerra os filhos do tio
Sam enriqueceram gradativamente e, não contentes em dominar tudo por meio das
armas, conquistaram outros povos por meio da cultura. Assim, não é estranho que
muitos de nossos referenciais estéticos (mas muitos mesmo) venham lá da terra
do hambúrguer com fritas, por meio dos filmes estadunidenses. Quando esperamos
que o herói seja um sujeito um pouco desencontrado, mas que, em seguida, arruma
um modo próprio de mudar a realidade, enfrenta revezes, passa por um período de
queda e depois volta ainda mais convicto de seus ideais tendo encontrado seu
lugar no mundo, não estamos esperando por um herói qualquer, mas por um herói norte
americano, seja ele estadunidense ou não. Torrente, felizmente, não é assim.
Ele faz parte de um grupo muito particular de personagens globalizados que se
constrói por referenciais regionais, sendo construído pela cultura de seu país
sem deixar de ter traços universais que tornem o gordinho interessante e
carismático. Isso, claro, mesmo sendo também um porco.
Do
começo ao fim de “O braço tonto da lei”, por mais que existam (obviamente)
concessões e clichês, somos levados para um mundo onde os referenciais que
estamos acostumados não existem, nem para que seja para serem subvertidos. Eles
sequer são considerados. Não há cercas brancas, mocinha loira e pura que se
guarda para o protagonista, um herói com ideais, pessoas boas para proteger,
nada disso. A Madri de Torrente é engordurada, corrupta e conformada assim como
seus personagens. Talvez até valha à pena lutar por alguma coisa, mas para que
é que eu vou me meter nessas coisas se não for para ganhar algo?
*
No
geral a história é bastante simples, transmitindo até a (falsa) impressão de
que o diretor não tem o controle do enredo. Durante algum tempo somos levados
pela vida medíocre de Torrente achando que, tal como ela, o filme será vagante
e indefinido, encerrando-se a qualquer momento de maneira tosca. Pois embora
aconteçam coisas grandes ao redor do personagem, vemos que ele não consegue
tomar as rédeas do curso dos fatos, apenas os influenciando timidamente. Com
efeito, a certa altura da trama passamos a duvidar que ela vá se finalizar de
um modo satisfatório, afinal (pode-se pensar), não se trata de Charles Bronson,
mas de Santiago Segura. Todavia, inesperadamente nos deparamos com resoluções
inteligentes, perfeitamente condizentes com as ações toscas do policial. O diretor
consegue usar artificialidade na dose certa, sem desmoralizar a trama para uma sequencia
tosca de ação. Mesmo quando surgem coisas impossíveis, verdadeiras marmeladas,
elas soam condizentes com o que vem sido mostrado até então.
Assim,
Torrente não vence porque muda, porque encontra seu lugar no mundo ou se
descobre um herói, mas por sorte, pela ajuda de seus companheiros, pelo
resultado fortuito de suas ações e uma dose mínima de mérito. O personagem não transforma,
não cresce e o melhor de tudo: não pretende nos dar uma lição de moral ao fim
do filme sobre o que devemos ser.
Devo parar minha vida em nome da lei?
Sim,
não precisa ser em nome da lei, mas em nome da diversão. Deixe tudo o que está
fazendo e vá assistir o filme. “Torrente” não é profundo, não tem grandes questões por
detrás, sequer precisaria disso. É puro entretenimento burro, sujo,
politicamente incorreto e ensebado.
Num
tempo em que acreditamos menos em valores hipócritas de heróis carregando as
bandeiras de seus respectivos países, o homenzinho é um sucesso, é o pior oportunista no momento e circunstancia certa. Nada de superpoderes, nada de
coisas extraordinárias além do absurdo normal do mundo.
O filme já chegou até sua
quarta versão e vem criando uma legião de fãs (na qual eu me incluo doravante). Enquanto nós brasileiros ainda brincamos de Capitão Nascimento e os
americanos de Thor, os espanhóis amadureceram, foram à luta e viram que o mundo
é feito de “Torrentes”: pessoas pequenas com suas circunstancias pequenas,
levadas pela vida sem muito controle do rumo que, por vezes, ela toma. É quase como
se o filme nos sussurrasse a triste verdade:
-
O mundo ideal está morto, crianças, não virão salvadores - ou vingadores - para
nos redimir. Agora façam um favor a si: cresçam.
Trailer:
Nunca tinha ouvido falar, mas agora sou obrigado a dar uma olhada. Deve ser muito trash. 8)
ResponderExcluirMuito obrigado pela dica. Abração.
cara, assista sim, eu achei muito legal, quero muito ver os outros.
ResponderExcluirExcelente filme. Me surpreendeu. Uma dinâmica espetacular na ação e diálogos, que mostram o que é a arte do cinismo. Adorei.
ResponderExcluirEu curti muito quando vi, ele faz um tipo de humor bem próprio que é muito legal
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