Bom dia! Desculpa te acordar, mas
você teria cinco minutos para escutar a palavra de Deus? Calma, Calma, não bata
a porta na nossa cara ainda, prometo que será muito mais interessante que esses
deuses que já cansamos de escutar sobre.
Abra
a porta de seu coração e escolha o deus que preferir, porque aqui no Café
somos democráticos, você pode adorar quem quiser sem ser julgado, até mesmo a Santa Cafeína ou o São Internet. Pra quem irá suas preces hoje?
“As pessoas acreditam,
pensou. É isso que as pessoas fazem: acreditam. E depois não assumem a
responsabilidade por suas crenças. Conjuram coisas e não confiam nas próprias
conjurações. As pessoas povoam a escuridão com fantasmas, deuses, elétrons,
histórias. As pessoas imaginam e acreditam: e é essa crença, essa crença
sólida, que faz tudo acontecer. ”
Título original: American gods
Autor: Neil Gaiman
Ano: 2001
Editora: Intrínseca
Páginas: 574
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Após
três anos na prisão, Shadow está a poucos dias de cumprir sua pena e retomar
sua vida ao lado de sua esposa. Liberado um dia antes do previsto, mas em uma
situação completamente adversa do esperado, o ex-presidiário, de uma hora pra outra, fica sem destino,
sem casa e sem perspectiva. Enquanto tenta processar todos os acontecimentos,
ele é abordado por um estranho homem que oferece um trabalho, que Shadow se vê,
praticamente, obrigado a aceitar.
Uma sombria quarta-feira
Narrado em terceira pessoa, o livro vai acompanhar
Shadow, um homem que, por razões não muito claras, acabou sendo preso. Devido a
seu bom comportamento, focando apenas em voltar pra casa, ele conseguiu reduzir
sua pena para três anos. Porém, um dia antes de receber sua liberdade, com tudo
pronto para retomar sua vida, ele é chamado pelo diretor do presidio, que além
de antecipar sua liberdade, também informa que na noite anterior sua mulher
sofreu um acidente e está morta.
Desestabilizado
e sem saber exatamente o que fazer, Shadow pega o primeiro avião de volta pra
casa. Durante o voo ele é abordado por um estranho senhor, apresentado como
Wednesday, que parece saber mais do que deveria sobre a vida do protagonista,
oferecendo um emprego. Incomodado com a situação Shadow tenta despistar o velho
e acaba falhando miseravelmente. Sem outra alternativa, e sem perspectiva de
conseguir retomar sua antiga vida ao lado de sua mulher, ele acaba aceitando,
sem saber exatamente qual será a sua função ao lado daquele misterioso homem.
Bom,
esse é o ponto de partida de Deuses Americanos. A história de fato
inicia com a viagem que Shadow vai fazer junto com seu novo patrão pelas estradas
dos EUA, onde, aos poucos, o protagonista vai começar a descobrir que o mundo é
muito mais complexo do que ele imagina e que algumas pessoas são muito mais do
que elas aparentam ser.
Resumindo, existem deuses vivendo entre
nós.
Quem acredita em deus?
Você já parou pra pensar em quantos deuses
existem no mundo? Já pensou em como eles seriam e se comportariam se vivessem
no mesmo espaço que nós meros mortais? É a partir dessa premissa que Deuses Americanos se desenvolve. Durante
a jornada Shadow vai acabar encontrando e conhecendo diversos deuses pelo
caminho e, consequentemente, começar a entender qual é a treta em que ele foi
envolvido. Isso basta para podermos conversar sobre o livro.
Uma
coisa bem bacana da história de Gaiman é que ele consegue criar todo o seu
universo em cima daquilo que já temos como referências, ou seja, toda a
mitologia do livro se adequa ao mundo em que vivemos sem precisar apelar para
elementos totalmente fantasiosos e criar um mundo paralelo.
Calma,
não estou dizendo que o livro é real, mas é uma história que poderia facilmente
ocorrer paralelamente as nossas vidas sem que percebêssemos. Caso ela não fosse
uma ficção, claro. Isso se dá porque boa parte da ambientação criada tem como
base lugares reais, então é muito fácil visualizar as locações em que o livro
se passa. Mesmo que você não conheça os EUA, você consegue identificar muitas
de suas características com base nas produções que você já teve contato. Ao
invés de criar uma Hogwarts, ele simplesmente pega um local conhecido por todos
e dá uma nova conotação pra ele.
Outro
ponto importante pra isso é que os próprios deuses da trama parecem pessoas
comuns, gente que você poderia cruzar na rua e simplesmente ignorar por
parecerem apenas mais um. É evidente que, apesar dessa humanização, eles não
são meros mortais, porém seres divinos que possuem suas habilidades e
peculiaridades. Mas não espere nada próximo daquilo que você imagina que um
deus pode fazer, tipo dividir o oceano, criar planetas, acabar com a fome, etc.
etc. etc.
É
legal ressaltar que os deuses que encontramos no livro são aqueles mesmo deuses
que escutamos falar diariamente (mitologia grega, nórdica, egípcia, etc). Então
da mesma forma que o autor se apropria do ambiente americano, ele também se
apropria da história e da cultura de seus imigrantes para criar seu próprio
universo, então ao mesmo tempo que é novo também é bastante concreto pro
leitor.
Você
deve estar pensando: “Ok, temos uma viagem pelos Estados Unidos, um maluco que
perdeu tudo e vários deuses fracotes que não prestam nem pra animar festa
infantil, mas e ai?”
God is dead?
O elemento que vai servir de fio
condutor pra toda a trama é o conflito entre os velhos e os novos deuses,
afinal os antigos começaram a ser esquecidos e ignorados pelas pessoas, enquanto
os novos gozam de cada vez mais popularidade. É aqui que mora a alma do livro,
porque ele consegue abordar temas não tão simples de uma maneira bem irônica e
sarcástica.
Os antigos deuses são todos aqueles
que conhecemos através das religiões e das mitologias, eles chegaram aos EUA
junto com imigrantes, isso explica o porque de haverem tantos deuses e
criaturas lendárias — nórdicos, africanos, europeus, etc. — morando na America. Mostrando que, mesmo na
migração, onde as pessoas saem da sua terra natal e vão para outra, elas levam
um pedaço de seus deuses e suas crenças com elas, plantando raízes de sua
cultura em sua nova morada. Essas raízes vão compartilhar a mesma terra e
interagir com as de outros imigrantes, que podem ter vindo da mesma região ou
não.
Por outro lado, os novos deuses são
aqueles que vão surgindo de acordo com a modernização do mundo. Os deuses que
antigamente viviam no coração das pessoas, com o tempo, foram ficando de lado.
Os imigrantes cada vez mais se adaptaram a America e pouco a pouco as raízes
com os seus países e culturas foram sendo integradas e modificadas na nova
terra, criando um novo estilo de vida. Sendo assim, as pessoas acabaram se
distanciando das religiões e dos folclores de seus antepassados e passaram a adorar
os bens materiais e tecnológicos de sua época — internet, carros, televisão — que vieram pra substituir o vazio
existencial que as religiões preenchiam.
Com isso, o autor cria uma dinâmica
bem bacana de conflito entre o antigo e o novo, entre os seres celestiais que a
cada dia se tornam mais mundanos e os produtos mundanos que se tornam cada vez
divinos, assumindo sua posição no altar das “religiões” modernas. Apesar de não
entrar muito em detalhes e grande parte da discussão ficar nas entrelinhas, não
dá pra deixar de pensar em temas como “fetiche da mercadoria”, “sociedade do
espetáculo”, etc. Afinal, no romance, fica claro que Gaiman brinca com a ideia
das religiões estarem sendo devoradas pelo moderno, e que as pessoas estão cada
vez mais dedicadas a adorar as coisas do que os deuses, então esses bens de
consumo gradualmente se humanizam, enquanto seus consumidores se tornam cada
vez mais produtos dessa grande entidade que se fortalece cada vez mais.
Então assim como os antigos, os
novos também passam a assumir formas humanas para interagir diretamente com o
meio e com os seus seguidores, mostrando que a partir do momento em que algo é
concebido e adorado, ele passa a assumir uma vida própria, ultrapassando as
barreiras do material.
Devo adorar deuses ou coisas?
Nenhum dos dois. É tudo uma ilusão.
Assim como sua vida.
O que eu mais gosto em Deuses
é como o Gaiman consegue inserir toda sua a sua fantasia de um modo orgânico,
como se tudo aquilo fosse muito natural. Em diversos momentos você se pega
pensando, como não pensei em algo assim antes. É justamente isso que torna ele
um autor tão interessante, ele cria historias originais em cima daquilo que já
existe e daquilo que parece obvio mas não é.
Apesar de ter gostado bastante do
livro eu entendo perfeitamente o motivo de existirem pessoas que odeiam. Deuses Americanos é um daqueles livros
que tem uma concepção muito boa e que poderia agradar todo mundo que se
interessa por mitologia, fantasia e derivados, mas a execução vai ser
problemática se você gosta de historias mais agitadas e com um caminho bem
definido. Algumas pessoas podem me xingar pelo que eu vou falar, mas... é uma
historia que parece nunca engatar, quando você chega no final parece que
praticamente nada aconteceu naquelas quase 550 paginas. Mas isso não significa
que seja ruim. É como uma masturbação que nunca chega ao orgasmo, é gostoso,
divertido, mas você passa o tempo todo esperando por algo que nunca se
concretiza.
Enfim, é um livro que eu recomendo
pela sua criatividade e pela sua construção de mundo, algo que consegue
sobrepor a própria historia. É muito interessante ver a interpretação do Gaiman
de como seria o mundo caso os deuses dividissem o mesmo espaço que nós
humanos. Mesmo não abrindo discussões
claras, é impossível ler e ficar indiferente a todos os detalhes e todas as
tiradas irônicas do livro sobre a modernidade em que vivemos. Como mencionado,
ele pode não agradar todos pela forma como é executado, mas é um daqueles
livros que merece uma chance, gostando ou não, é uma experiência valida.
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