sexta-feira, 19 de maio de 2017

Literatura: Pornô (Irvine Welsh)


            Depois de falarmos sobre drogas e jovens inconseqüentes na resenha de Trainspotting, o Café retorna para falar sobre o que aconteceu com esse mesmo grupo de “amigos” alguns anos após o fatídico evento. Já adianto que, apesar das drogas ainda estarem presentes na vida dessas pessoas, eles começaram a se dedicar a um outro tipo de vicio.
            Então pega aquela revista ou fita de conteúdo adulto, separa os seus brinquedinho favoritos e se prepare pras safadezas, que hoje vamos falar de Pornô.



“- Não, amorzinho, tudo veio da pornografia. Esses filhos da puta são os legítimos pioneiros. A pornografia espirra e a cultura popular fica gripada. As pessoas querem sexo, violência, comida, animais de estimação, lazer utilitário e humilhação. Vamos dar tudo que pedem. Pensa na humilhação em programas de televisão, nos jornais e revistas, olha o sistema de classes, o ciúme, a amargura que transborda em nossa cultura: na Grã-Bretanha, queremos ver as pessoas se foderem – diz, parecendo ser por um instante um alienígena de “Contatos imediatos de terceiro grau”, iluminado, como está agora, por um raio de sol que atravessa uma fresta entre os prédios vizinhos. – Mas enfim, vamos continuar essa discussão mais tarde.”
  
           
Título original: Pornô
Autor: Irvine Welsh
Ano: 2002
Editora: Rocco
Páginas: 565
            Dez anos após Mark Renton ter roubado seus antigos companheiros de pico, ele se tornou um importante empresário no setor de casas noturna em Amsterdã, onde mantêm residência para fugir dos companheiros do passado. Em Edimburgo, Sick Boy, agora mais conhecido como Simon, vai sobrevivendo entre um golpe e outro, até ver uma grande oportunidade de negócio quando herda o bar de uma tia. Já Spud e Begbie continuam a lutar com velhos problemas do passado. Spud ainda está enfrentando o seu vicio em drogas, ao mesmo tempo em que tenta encontrar uma forma de se reconectar com sua esposa e filho. Begbie, devido a um crime que cometeu no passado, permanece na prisão, onde diariamente alimenta seu ódio por Renton, jurando-o de morte assim que for solto.
            Todos esses personagens vão se reencontrar quando Simon decide entrar pra indústria pornográfica.

Aviso

            Se você já assistiu T2 Trainspotting, mas ainda não leu Pornô, esqueça o filme antes de continuar a resenha. Falaremos disso mais pra frente.

Dez anos depois...

            Pornô segue a mesma linha narrativa de Trainspotting, mas de uma maneira menos caótica e mais fluída (pelo menos foi o que me pareceu). Assim como no primeiro livro, vamos ter uma mudança de narrativa a cada capítulo, entretanto aqui tudo é mais intuitivo, e pelo próprio título (ou logo nas primeiras linhas) já vamos saber quem é o narrador. Por exemplo: os capítulos narrados por Simon sempre tem o titulo iniciado por “Falcatrua” e os títulos da Nikki sempre estão entre aspas, os outro personagens não são identificáveis pelo titulo, mas o próprio texto, rapidamente, indica ao leitor quem está falando, coisa que as vezes demorava quase meio capitulo no livro antecessor. Apesar de gostar bastante de Trainspotting, é evidente a evolução da escrita do Irvine Welsh aqui.
            Mas não é apenas na escrita e na melhoria dessas pequenas alternância de personagens que Pornô se difere, a principal questão é a própria estrutura narrativa, que vai ser construída em uma ordem cronológica e não por capítulos soltos desconexos entre si. Se no livro anterior a história era uma compilação de diversos fragmentos que se conectavam entre si por um tema e espaço comum, neste existe uma trama central com início, meio e fim, que será mostrada a partir da perspectiva de cada um dos personagens.
            Algo que senti aqui, mas que pode ser apenas impressão, é que os personagens parecem ter uma maior importância. Em Trainspotting vamos ter uma maior quantidade de personagens, mas muitos deles não são aprofundados e não criamos nenhuma ligação com eles, ao passo que em Pornô já sentimos uma maior aproximação com cada um deles: são cinco principais e todos eles, mesmo os secundários, tem suas características próprias, sendo que todos são importantes e marcam a leitura de alguma forma.
            E, pra finalizar essa questão mais estrutural, outro ponto que difere bastante e a questão do protagonismo, algo que parece ter surgido com influência do filme. No primeiro livro não existia um protagonista, cada capítulo era narrado por um personagem sem a necessidade de destacar um em especifico, entretanto, na adaptação cinematográfica, o Mark Renton foi colocado como personagem principal e as histórias acabavam girando em torno dele. Na continuação, apesar de todos terem sua importância, toda a trama gira em torno de Simon, colocando-o, de certa forma, como protagonista.
            Cintaralhos colocados? Vamos ao que interessa.

Das drogas a putaria

            Se em Trainspotting o assunto era drogas, aqui o buraco é em outro lugar.
            O livro vai começar mostrando um pouco sobre como está a vida de Simon dez anos depois de ter sido enganado por Renton. Sobrevivendo das suas falcatruas e malandragens, ele vê a oportunidade de tirar a sorte grande quando começa a administrar um velho bar em Edimburgo que ele recebeu da tia. Mesmo sendo um bar abandonado, com poucos clientes e com muito trabalho para torná-lo apresentável, surge a oportunidade de transformar o segundo andar da propriedade em um set de filme pornô, abrindo as portas para a indústria. Para ajudá-lo nessa empreitada, ele terá a ajuda de alguns amigos e estudantes de cinema, incluindo Nikki, uma universitária londrina que masturba os clientes de uma sauna para sobreviver na cidade.
            É a partir disso que toda a trama vai se desenrolar. O livro terá cinco narradores — Simon, Nikki, Renton, Begbie e Spud —, tendo foco nos três primeiros. Mesmo sendo uma personagem nova, Nikki é quase tão importante quanto o próprio Simon, o que é bem bacana porque trás não apenas uma personagem feminina, mas também diversas discussões que seriam ignoradas por homens, ainda mais quando tratamos temas como a pornografia.
            Não vou entrar em detalhes sobre os outros personagens porque eles vão surgindo aos poucos na trama e dando as suas contribuições, mas é importante ressaltar que essa alternância de narradores é bem bacana por apresentar perspectivas diferentes sobre o que está acontecendo e sobre o que cada um sente e pensa. Também permite que o leitor tenha um panorama interno e externo sobre cada um deles, criando outras tramas em torno da linha narrativa principal. Podemos citar como exemplo os arcos do Spud e do Begbie, que são bem diferentes entre si. São personagens que estão menos ligados à trama principal, mas que ganham força nos seus dramas pessoais: Spud tendo que lidar com o vicio e com problemas familiares, e Begbie com a prisão e seu desejo de se vingar de Renton, uma trama com diversas ramificações, que mostra os problemas pelos quais aqueles adolescentes viciados em heroína estão passando na vida adulta.
            Entre vinganças, dramas e putaria, Irvine Welsh esporra diversas questões sobre a indústria pornográfica e a sociedade.

O pornô nosso de cada dia

            Algo que Trainspotting fez muito bem foi utilizar aquele cenário de drogas de Edimburgo para construir uma crítica em torno da sociedade, mostrando que aquele grupo, com diversos problemas, não estavam naquela situação por que eles simplesmente queriam, existiam diversos outros fatores que contribuíam para que os jovens procurassem a heroína. Pornô faz algo semelhante, mas ao invés de desenvolver sua critica em cima das drogas, ele aborda outros fatores, principalmente a indústria do sexo.
            Mas antes de entrar nessa questão em si, eu acho bem interessante perceber a mudança de perspectiva dos protagonistas. Enquanto na adolescência eles tinham uma posição meio “foda-se o mundo e todas as suas necessidades fúteis”, quando eles se tornam adultos, tudo aquilo que eles rejeitavam passa a ter um novo sentido. Como se eles, em partes, trocassem as drogas pelo consumo. Isso fica mais perceptível no arco do Simon e do Renton, o primeiro fazendo de tudo para lucrar e tirar vantagem dos outros, e o segundo se tornando um importante empresário no ramo das casas noturnas. Dando ao dinheiro a importância que a heroína tinha na época. Os vícios continuam, as drogas mudam.
            Voltando ao sexo. Como visto anteriormente, a trama do livro vai girar em torno da produção de um filme pornô, passando pelas diversas etapas, desde o levantamento de dinheiro e escolha do elenco até a edição e distribuição. Com isso, muitas questões vão ser levantadas e discutidas ao longo do romance, englobando tanto as questões legais de se produzir um filme, quanto as discussões morais que levantamos diariamente na mesa do bar.
            Algo que gosto bastante no Irvine Welsh é que ele não se prende aos moralismos da discussão, independente de qual seja. Ele vai mostrar tudo que ele achar necessário e não vai amenizar a situação pra tornar mais digesta, então muitas das coisas que sabemos que há de podre na indústria pornográfica estão expostas ali sem maquiagens. Mas, por outro lado, em nenhum momento ele tá preocupado em ser didático ou tentar passar um ponto de vista, ele simplesmente conta aquilo que acontece, deixando a cargo do leitor compreender o que há de errado. Claro que há discussões entre os personagens, em que cada um tem uma posição sobre o assunto, mas como forma de enriquecer a trama e não para vender algo ao leitor.
            O mais interessante disso é que temos diversos personagens com concepções bem diferentes sobre o tema, então vamos ter diversas discussões entre a Nikki e a sua colega de quarto sobre a posição da mulher no pornô, uma dizendo que é empoderador e a outra dizendo que é degradante, assim como vamos ter discussões sobre como a indústria pornográfica é apenas uma extensão da sociedade, sobre quais as posições sexuais mais vendem e porque, quais os limites da arte e por que o pornô não e visto como tal e, até mesmo, a importância do cu em um filme. Então, no meio de muita crueza, sarcasmo e personagens repulsivos, o autor consegue levantar questões serias que ora vão ser tratadas de forma cômica e divertida, ora vão ser indigestas e bastante desconfortáveis. Afinal, tem temas que se tornam ainda mais pesados quando você tenta suavizar com uma piada.

Lagrimas, sangue e porra

            Como você deve ter percebido até aqui, Pornô é um livro com temática e cenas bem pesadas, algo que é potencializado pela escrita de Welsh. Então é uma leitura que desestabiliza o leitor de diversas formas, porque uma hora você se pega rindo de alguma cena cômica ou de algo que você provavelmente não deveria rir e na outra você está revoltado com aquilo que está acontecendo. Por se tratar de algo que envolve sexo, você já deve imaginar que vai haver cenas de estupro, humilhação, machismo e todas as outras coisas que rodeiam o mercado pornográfico e a sociedade. Então é um livro que causa desconforto, ainda mais que seu antecessor.
            Um exemplo claro disso são os capítulos do Begbie, que oscilam entre cenas de humor negro e cenas repulsivas. Se você já conhece o universo de Trainspotting, você sabe que ele é nitidamente um psicopata, e aqui ele está ainda pior. Ele passou anos na prisão alimentando seu ódio por Renton, por isso em sua vida não há nenhuma outra motivação a não ser matar seu antigo amigo, algo que acaba interferindo ainda mais na sua relação com as outras pessoas, principalmente mulheres. Mesmo ele não estando diretamente ligado a produção do filme pornô, é claramente possível fazer uma relação entre a indústria e o personagem, pois os dois apenas reproduzem a misoginia do ambiente em que eles foram criados, alimentando e dando suporte para que ele se mantenha assim.
            Entretanto, algo curioso é que apesar do livro ser pautado nessa crueza, discutindo de forma tão aberta esses temas que estão presentes no nosso dia a dia e que não se fala muito sobre, o livro também consegue ter sua parte sensível, tratando de assuntos mais delicados e pessoais, como é o arco do Spud, que funciona como um contraponto a trama principal. Enquanto os outros personagens estão fazendo de tudo, inclusive atos ilícitos, para obter algum tipo de sucesso ou se vingar, Spud só quer resolver seus dramas pessoais, pra melhorar tanto a sua vida quanto a das pessoas a sua volta. Todos sabemos que Spud não é um exemplo de pessoa, e que ele tem diversos problemas, mas é impossível não torcer pro personagem que, no meio de tanta sujeira, só se preocupe em se tornar alguém melhor.
           
Ok, vamos falar sobre T2

            Posso arrumar algumas tretas nesse tópico, mas vamos lá.
            Eu sou o tipo de pessoa que eu evito ler sobre e ver trailers daqueles filmes que eu tenho bastante expectativa, então fui assistir sem saber quase nada sobre a continuação de Trainspotting. A única coisa que decidi fazer foi ler Pornô antes da estreia. Eu terminei de ler Pornô umas duas semanas antes do filme T2 Trainspotting ser lançado, e durante toda a leitura eu ficava pensando: duvido que eles vão colocar essa cena no filme, eles não vão ter culhões pra tratar disso de forma tão aberta, será mesmo que vai ter esse monte de putaria no filme? Etc. Minhas expectativas estavam certas: praticamente nada do que está no livro está no filme; são coisas totalmente diferentes.
Mas isso é um coisa boa, não? Afinal temos duas historias diferentes sobre esses personagens que tanto gostamos, certo? Não exatamente.
            Sim, eu gostei de T2, mas não consigo me livrar da ideia de que ele é um filme covarde e cômodo. Ele é claramente uma produção que não tem intenção nenhuma de contar uma nova história ou trazer algo novo pro universo, sendo inteiramente construído em cima da nostalgia do primeiro filme. O roteiro, praticamente inexistente, está ali só pra jogar referência atrás de referência do filme anterior: vamos revisitar os cenários do filme anterior, cenas marcantes vão ser mencionadas, antigas piadas vão ser lembradas, etc. etc. etc. Ou seja, o T2 é puro fan service que tem mais cara de um especial de natal do que de um filme de fato, o que é bem triste, pois eles tinham uma puta história na mão, mas preferiram ficar no lugar seguro.
Eu entendo que um filme com o roteiro de Pornô iria ter diversos problemas pra ser lançado, por causa da violência, cenas de sexo e etc. algo que não é tão atrativo pra produtora, afinal vivemos em uma sociedade bem careta, mas quem tem Trainspotting como background, teria força de barganha suficiente para conseguir fazer algo mais digno da obra de Welsh.
            Claro que ele tem suas qualidades, é nítida a evolução quando se trata de direção, a fotografia ta bem bonita, o diretor usa vários recursos que ajudam a dar mais impacto a cena, o ritmo do filme é bom, ele sabe balancear o uso de flashbacks e referencias pra despertar nostalgia, etc. Assim como os atores que fazem um trabalho incrível ao dar vida aos personagens mesmo vinte anos depois, mostrando que mesmo depois de tanto tempo, eles ainda estão vivos e continuam importantes. Um detalhe que me deixou bem feliz foi ver o próprio Irvine Welsh aparecendo de surpresa.
            Assim, T2 é um misto de decepção e nostalgia. Emocionalmente eu gostei do filme, se você é fã do primeiro é praticamente impossível não gostar da continuação, afinal é uma forma de rever aqueles personagens e lembrar de tudo aquilo que faz de Trainspotting um filme tão legal. Mas quando paro pra pensar mais friamente sobre ele, acho um filme bem fraco, apesar de suas qualidades técnicas. Ele só é bom porque o primeiro é bom; ele não se sustenta por si só. Eu imagino que se você não conhece Trainspotting ou apenas acha um filme ok que você viu no passado, T2 não vai dizer nada pra você, pois no fundo ele não tem nada a dizer, apenas injeta mais uma dose de nostalgia na veia de seus antigos junkies.

Lembre-se, use camisinha.

            Pornô foi uma das leituras mais legais que fiz esse ano porque ele consegue condensar muitos dos temas que eu gosto em livros e filmes: sexo, violência, sarcasmo, drogas e, principalmente, tudo isso aliado a discussões sócio políticas.
O Irvine Welsh tem essa capacidade de discutir assuntos sérios de uma maneira bem urbana, crua e sem maquiagem, ao mesmo tempo em que nos conta uma história inusitada sobre um grupo de pessoas que aparentemente não tem nada a oferecer, mas que são capazes de nos puxar para um submundo que costumamos ignorar. Adentrando nos dramas de cada um desses personagens e, também, nesse mundo da indústria pornográfica e explorando aquilo que não é captado pela câmera. Algo semelhante ao que ele fez com as questões da drogas no seu antecessor.
Desculpem os saudosistas, mas acho Pornô superior a Trainspotting, por todos os motivos que citei a cima. Então se você gosta do primeiro, seja do filme ou do livro, vai com fé e leia. E por favor, POR FAVOR, não ache que T2 substitui o livro, porque o segundo filme não chega aos paus do livro.
Dito isso, dá um pause na orgia e pegue o Pornô pra ler. Daqui a um tempo voltamos para conversarmos sobre Skagboys. 

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