terça-feira, 4 de abril de 2017

Literatura: Precisamos falar sobre o Kevin (Lionel Shriver)


                Queridos leitores, se você acompanha esse blog já deve saber que aqui nós não temos problemas em discutir nada, sempre estamos dispostos a falar tanto dos assuntos mais banais, como o filme do Sergio Mallandro, até os mais bizarros e peculiares, como sushis assassinos. Entretanto, hoje nós teremos uma conversa um pouco mais séria sobre uma obra que ainda não foi tratada aqui. Mas pode relaxar porque apesar de ser uma história nem um pouco agradável, garanto que será interessante e importante para refletirmos sobre vários assuntos. Então pegue seu Café e vamos falar sobre o Kevin.



“Franklin, eu tinha verdadeiro pavor de ter um filho. Antes de engravidar, minha visão do significava criar uma criança – ler historias sobre trens e casinhas com um sorriso no rosto, na hora de dormir, enfiar papinhas em bocas escancaradas – parecia ser a de uma outra pessoa. Eu morria de medo de um confronto com o que poderia vir a ser uma natureza fechada, pétrea, de um confronto com meu próprio egoísmo e falta de generosidade, com o poder denso e tardio do meu próprio ressentimento. Por mais intrigada que estivesse com o “virar a pagina”, sentia-me mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada na historia alheia. E creio que foi esse terror que talvez tenha me atraído, da mesma forma como um parapeito nos tenta a dar o salto. A intransponibilidade da tarefa, sua falta absoluta de atrativos, foi o que, no fim, me seduziu.”


Título original: We need to talk
 about Kevin
Autor: Lionel Shriver
Ano: 2003
Editora: Intrínseca
Páginas: 463
            Dois anos após a prisão do filho, por protagonizar um terrível evento, Eva Katchadourian continua sofrendo as consequências de tudo aquilo provocado por ele. Como forma de tentar entender melhor os motivos e, também, superar aquilo que aconteceu, seja antes ou depois da prisão de Kevin, Eva começa a escrever uma serie de cartas a seu ex-marido Franklin, repassando tudo aquilo que ela viveu desde a gravidez até o presente. Com isso ela inicia uma reflexão sobre os sinais dados por Kevin antes dele se tornar, de fato, aquilo que ele demonstrou ser a dois anos atrás.

Olá, Franklin

Precisamos falar sobre Kevin é narrado em primeira pessoa por meio de cartas que Eva manda a Franklin. Como podemos perceber logo no início, eles já não estão mais juntos desde o evento.
A história começa cerca de dois anos após Kevin ter sido preso e, por ser em formato de cartas, vamos estar em contato direto com a protagonista Eva, compreendendo sua dor e conhecendo a sua história.
Cada capitulo vai ser uma nova carta para seu ex-marido, e em cada uma delas Eva vai contar um pouco sobre como está sua vida no momento, seja sobre o novo trabalho, as constantes perseguições que ainda sofre e sobre as visitas que faz ao filho na prisão. Mas, principalmente, as cartas servem para que a protagonista possa se abrir sobre o passado, contando todos os sentimentos, duvidas e medos que ela teve sobre Kevin, desde a gravidez até sua prisão.
De uma maneira cronológica, diferente do filme que falaremos mais pra frente, Eva disseca a história de sua família para tentar entender o que de fato ocorreu.


Uma viagem sem volta

Para compreender melhor o contexto em que Kevin nasceu, é bom responder duas perguntas: quem é Eva? O que levou ela a ter um filho?
Eva é uma mulher que sempre foi muito independente: ainda jovem ela abriu uma das principais editoras de guia de viagens, se destacando por focar em um público mais novo e com pouco dinheiro, diferente dos outros guias focados em business. Com esse trabalho ela conseguiu transformar sua maior paixão (as viagens) em algo lucrativo. Sendo assim, Eva não apenas administrava a editora como também é a principal desenvolvedora de roteiros, tendo uma vida agitada com diversas viagens, se tornando praticamente uma turista em seu próprio país.
Ao conhecer Franklin, um publicitário que tira foto para campanhas, e começar a se relacionar com ele, Eva passa a dividir sua paixão, ela continua com suas viagens, mas também tem um motivo pra voltar pra casa. Entretanto, conforme o tempo passa e os laços entre os dois começam a ficar mais firmes, começa a surgir novas questões no casamento, como filhos.
No primeiro momento Eva é contra a ideia, afinal um filho iria atrapalhar a sua vida e seu trabalho, ela teria que deixar muitas viagens de lado, teria uma responsabilidade na qual ela não estaria preparada e estaria rumo a um caminho incerto e sem volta o qual iria interferir em sua vida pra sempre. Com o tempo, no entanto, Eva acaba cedendo e engravidando, afinal, a ideia de ficar grávida se assemelha a ideia de fazer uma viagem pra um local desconhecido, sentindo um misto de medo e excitação. Mas vamos ver que conforme a gravidez avança, as dúvidas e incertezas acabam fazendo com que Eva se arrependa, mas já é tarde pra voltar atrás. Assim, ela dá a luz a Kevin.

Ser mãe é padecer no paraíso...

Por ser narrado em primeira pessoa, o livro apresenta exclusivamente a visão da mãe, mas nem por isso a nossa visão sobre os fatos é problemática, pelo contrário, além da protagonista passar verdade no seu relato, dificilmente você desconfiará dela, isso também permite que possamos ter um contato direto com os seus pensamentos e sentimentos, dando uma profundidade importante pra trama. Tornando o livro muito mais sobre Eva do que sobre Kevin de fato.
A história contada vai ser praticamente toda sobre a relação da família, as desconfianças que Eva tem sobre Kevin e sobre a conturbada ligação entre os dois. É aqui que vamos começar a perceber as peculiaridades de Kevin, que mesmo antes de saber andar e falar já conseguia carregar a discórdia e perturbar aqueles ao seu redor.
Nas cartas Eva vai relembrar alguns eventos que marcaram a sua vida e que de certo modo previam as atitudes mais violentas do filho no futuro, então teremos diversas passagens da infância e adolescência que mostram sinais de que Kevin não é uma pessoa normal. Sendo assim, veremos a constante luta de uma mãe que está diante de um filho com um temperamento difícil, e não sabe o que fazer para resolver a situação, vivendo em um constante desgaste físico e emocional.
Por outro lado, Kevin tem uma postura totalmente oposta com pai, o que gera um conflito entre o casal, porque Eva vê um filho totalmente frio e calculista enquanto Franklin vê um filho esperto e carinhoso. Pra ela Kevin é um protótipo de psicopata, pra ele é uma criança como todas as outras, essa situação gera um impasse no casal, fazendo com que sigam sua vida sem procurar ajuda profissional. E nesse constante desentendimento entre os pais, Kevin vai manipulando a família.


Ou no inferno

O que você faria se seu filho mostrasse tendências psicopatas desde a infância, mas “só você” percebesse? O que você faria se as suas suspeitas se confirmassem e seu filho fosse preso por matar pessoas?
É sobre essas duas questões que todo o livro vai se desenvolver, porque apesar de tudo Kevin é seu filho e ela nunca consegue deixar de lado seu papel de mãe, independente do que ele faça. E isso é curioso porque apesar de durante a leitura ficarmos inconformados com a situação e nos perguntarmos como eles não tomam uma atitude, é complicado julgar, afinal estamos vendo eventos passados, já sabemos o desfecho, não estamos inseridos naquele cotidiano e, principalmente, não é nosso filho. Tanto que durante a leitura, mesmo ela não falando abertamente, percebemos que muitas vezes ela questiona a própria sanidade será que não estou projetando minhas frustrações nele? Será que ele realmente por maldade? Será que não estou exagerando? E mesmo que ele realmente seja aquilo que ele demonstra, de quem é a culpa?
Isso permeia toda a trama e percebemos que, apesar de tudo, Eva se sente culpada pelo que aconteceu. Mesmo depois da prisão do filho, em nenhum momento ela o abandona ou tenta fugir do passado; ela se mantêm na cidade e convive com a constante ameaça dos outros moradores, como se aquilo fosse uma punição que ela tem que pagar. Algo que achei bem curioso é que você sente uma mudança na visão de Eva no decorrer do tempo: parece que ela tinha muito mais problemas com as birras do Kevin quando criança do que com o Kevin assassino. Claro que o segundo é mais grave, mas parece que depois de tanta coisa que ela passou ela já estivesse anestesiada e aceitado a situação, tanto que ela parece compreender melhor o filho no presente do que no passado.
Aí entramos em outro detalhe importante: por que? Se Kevin realmente é um psicopata, o que levou ele a isso? Aqui vamos entrar em algumas discussões já levantadas em Menina Má e Fabrica de Vespas, quer dizer, será que Kevin nasceu ruim ou ele foi influenciado pelo meio? Será que é uma consequência de Eva não querer ter o filho? Essa é uma discussão que não vamos ter respostas, nem o livro se compromete a isso, mas ele levanta questões interessantes pra reflexão, porque apesar de muitas vezes entendermos que Kevin nasceu assim, afinal ele está em constante conflito com a mãe desde o nascimento, a autora também constrói um interessante panorama dos EUA na época, mostrando que a violência está enraizada na cultura e que muito do que acontece é um reflexo da própria sociedade.

Don’t feed the psychos

Algo que gostei bastante no livro é que ao mesmo tempo em que a autora trabalha bastante a questão psicológica dos personagens, principalmente a de Eva, ela também consegue desenvolver bastante a questão sócio cultural dos EUA na época, criando uma correlação entre o doméstico e o publico. Então, é perceptível que não apenas dentro de casa existe esse clima de tensão, mas o próprio país passa por algo semelhante. Um sinal claro disso é que o livro é baseado em casos reais, que serão citados ao longo da trama.
Dentre as diversas questões levantadas sobre os EUA, a violência é algo que vai ser tratada mais profundamente. Entretanto, quando falamos de violência aqui não estamos falando da criminalidade em si, porém de algo mais especifico, como a espetacularização e o mercado da violência, de como a sociedade, mesmo que inconsciente, criou um publico faminto por desgraças e tragédia, e como tudo isso acaba refletindo nas relações diárias. O livro vai abrindo varias portas e mostrando que a violência é algo enraizado e que está mesmo em coisas banais, mas nem por isso é menos perigosa.
Um exemplo disso é a cultura dos Serial Killers dos EUA, apesar de todo mundo ter medo e querer o assassino preso, ele sempre é tratado como uma celebridade, diversas noticias na TV, documentários, filmes, biografias, transmissão ao vivo do julgamento na TV, etc. Ou seja, esse tipo de criminoso nos EUA goza de uma publicidade maior que a de muitos artistas, e Charles Manson e Zodíaco estão ai como prova. Então esse enraizamento da violência acaba desencadeando diversos problemas, e transformando a violência em algo necessário para aquelas pessoas, afinal, sem ela, com o que iríamos nos preocupar? Sobre o que iríamos falar? O que iríamos assistir?
Com isso, é curioso que, seguindo essa lógica, Kevin seja ao mesmo tempo um problema e uma solução para aquela sociedade que anseia cada vez mais por violência.


Violência televisionada

Meu primeiro contato com a historia foi pelo filme de 2011, que é bem bacana, no entanto, apesar de a historia ser exatamente a mesma, existem algumas mudanças narrativas esperadas por se tratar de uma adaptação cinematográfica. Por serem plataformas diferentes, cada uma vai explorar aquilo que cabe melhor, dando enfoques diferentes.
Tanto no livro quanto no filme vamos ter a perspectiva de Eva, mas com algumas diferenças.
No livro, a história nos será contada através das cartas, que nos permitem estar em contato direto com a personagem, com isso, a questão psicológica é muito mais evidente e melhor desenvolvida que o filme, sendo que a protagonista ganha muito mais profundidade.
Já no filme, seguiremos a personagem, mas não teremos essa visão em primeira pessoa, sendo que são suas expressões e atos que ganham o enfoque e que, infelizmente, não dão toda a dimensão que o livro dá. Outra mudança perceptível é a linha narrativa, que no livro é bem delimitada, em cada carta ela conta um pouco da história, começando com a primeira carta sobre a pré-gravidez até a ultima carta que fala sobre os eventos mais recentes. Já o filme tem uma estrutura um pouco mais caótica, no bom sentido, que de certo modo faz mais sentido pro formato porque transmite toda a confusão de sentimentos sofrida por Eva.
Apesar de gostar bastante do filme, o livro é inegavelmente melhor, tanto por oferecer uma história mais completa e com mais profundidade quanto por levantar discussões que no filme acabam passando batidas. Muitas coisas do livro estão no filme mas não são explicadas, então pra quem não conhece a história fica meio sem entender por que elas estão lá. A despeito disso, o filme tem alguns elementos que são incríveis, como os simbolismos usados pra representar a situação que Eva está passando. Em quase todas as cenas do filme a cor vermelha está presente e destacada, como se fosse um alerta da violência que está presa naquele cenário, algo que é bem curioso, já que apesar de a violência do filme não ser explícita, desde o início ela está presente de uma maneira intimidadora. O filme nos choca muito mais com a sugestão do que com a violência de fato. Ela não é presenciada, mas ela é sentida. Aliás, outro ponto, ainda dentro do vermelho, é que em diversos momentos vamos ver Eva tentando limpar/lavar a cor vermelha (a mão de tinta, a parede pichada, a geleia de morango), mas por mais que ela limpe as coisas estão sempre sujas, refletindo muito o seu interior, como se a violência (ou o vermelho) já estivesse permanente em sua vida e não importa o quanto ela limpe, ela não vai conseguir se livrar totalmente.
Em resumo, tanto o livro quanto o filme são muito bons e ambas as experiências são legais. Se você me perguntar qual eu indico, eu diria os dois, pois são formas diferentes de contar a mesma história, e acaba que um complementa o outro, mas se for pra escolher apenas um eu ficaria com o livro porque oferece uma história mais completa e desenvolve melhor os assuntos tratados, mesmo que alguns elementos só o cinema seja capaz de oferecer.


Essa DR é realmente necessária?

Sem dúvidas, Precisamos falar sobre o Keviné um livro bem impactante e que é indicado a qualquer pessoa que se interesse por psicologia e psicopatia. Mesmo sendo uma ficção, a escrita da autora mostra que ela domina o assunto que está trabalhando e ela consegue te convencer de que aquilo que ela está contando se assemelha bastante a realidade, em nenhum momento parece exagerado ou inverossímil com os outros casos reais.
O desenvolvimento é um pouco lento, afinal o livro não deixa de ser um compilado de memorias sobre a sua relação com o filho, mas não é algo que atrapalha a leitura, pelo menos pra mim. Essa lentidão é necessária para inserir o leitor dentro daquele contexto e permitir que você se torne próximo o suficiente de Eva para que perceba tudo aquilo que está em suas cartas.
Enfim, é um livro cru e denso, que incomoda e que faz você pensar duas vezes sobre a vontade de ter filhos (se você nunca quis, depois da leitura desiste de vez), porém que traz discussões interessantes e que conta uma história que, infelizmente, está cada vez mais comum por uma perspectiva diferente, a da mãe, que independente dos caminhos tomados pelo filho, sempre haverá uma ligação.

Então sim, é necessário falarmos sobre o Kevin, sobre os garotos em que ele foi inspirado, sobre as mães e sobre o sistema que alimenta a violência.

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