Queridos leitores, se você acompanha esse
blog já deve saber que aqui nós não temos problemas em discutir nada, sempre
estamos dispostos a falar tanto dos assuntos mais banais, como o filme do
Sergio Mallandro, até os mais bizarros e peculiares, como sushis assassinos.
Entretanto, hoje nós teremos uma conversa um pouco mais séria sobre uma obra
que ainda não foi tratada aqui. Mas pode relaxar porque apesar de ser uma
história nem um pouco agradável, garanto que será interessante e importante
para refletirmos sobre vários assuntos. Então pegue seu Café e vamos falar sobre o Kevin.
“Franklin, eu tinha
verdadeiro pavor de ter um filho. Antes de engravidar, minha visão do
significava criar uma criança – ler historias sobre trens e casinhas com um
sorriso no rosto, na hora de dormir, enfiar papinhas em bocas escancaradas –
parecia ser a de uma outra pessoa. Eu morria de medo de um confronto com o que
poderia vir a ser uma natureza fechada, pétrea, de um confronto com meu próprio
egoísmo e falta de generosidade, com o poder denso e tardio do meu próprio
ressentimento. Por mais intrigada que estivesse com o “virar a pagina”,
sentia-me mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada
na historia alheia. E creio que foi esse terror que talvez tenha me atraído, da
mesma forma como um parapeito nos tenta a dar o salto. A intransponibilidade da
tarefa, sua falta absoluta de atrativos, foi o que, no fim, me seduziu.”
Título original: We need to talk
about Kevin
Autor: Lionel Shriver
Ano: 2003
Editora: Intrínseca
Páginas: 463
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Dois anos após a prisão do filho,
por protagonizar um terrível evento, Eva Katchadourian continua sofrendo as
consequências de tudo aquilo provocado por ele. Como forma de tentar entender
melhor os motivos e, também, superar aquilo que aconteceu, seja antes ou depois
da prisão de Kevin, Eva começa a escrever uma serie de cartas a seu ex-marido
Franklin, repassando tudo aquilo que ela viveu desde a gravidez até o presente.
Com isso ela inicia uma reflexão sobre os sinais dados por Kevin antes dele se
tornar, de fato, aquilo que ele demonstrou ser a dois anos atrás.
Olá, Franklin
Precisamos falar sobre Kevin é narrado em primeira pessoa por meio de
cartas que Eva manda a Franklin. Como podemos perceber logo no início, eles já
não estão mais juntos desde o evento.
A
história começa cerca de dois anos após Kevin ter sido preso e, por ser em
formato de cartas, vamos estar em contato direto com a protagonista Eva,
compreendendo sua dor e conhecendo a sua história.
Cada
capitulo vai ser uma nova carta para seu ex-marido, e em cada uma delas Eva vai
contar um pouco sobre como está sua vida no momento, seja sobre o novo
trabalho, as constantes perseguições que ainda sofre e sobre as visitas que faz
ao filho na prisão. Mas, principalmente, as cartas servem para que a
protagonista possa se abrir sobre o passado, contando todos os sentimentos,
duvidas e medos que ela teve sobre Kevin, desde a gravidez até sua prisão.
De
uma maneira cronológica, diferente do filme que falaremos mais pra frente, Eva
disseca a história de sua família para tentar entender o que de fato ocorreu.
Uma viagem sem volta
Para
compreender melhor o contexto em que Kevin nasceu, é bom responder duas
perguntas: quem é Eva? O que levou ela a ter um filho?
Eva
é uma mulher que sempre foi muito independente: ainda jovem ela abriu uma das
principais editoras de guia de viagens, se destacando por focar em um público
mais novo e com pouco dinheiro, diferente dos outros guias focados em
business. Com esse trabalho ela conseguiu transformar sua maior paixão (as
viagens) em algo lucrativo. Sendo assim, Eva não apenas administrava a editora
como também é a principal desenvolvedora de roteiros, tendo uma vida agitada
com diversas viagens, se tornando praticamente uma turista em seu próprio país.
Ao
conhecer Franklin, um publicitário que tira foto para campanhas, e começar a se
relacionar com ele, Eva passa a dividir sua paixão, ela continua com suas
viagens, mas também tem um motivo pra voltar pra casa. Entretanto, conforme o
tempo passa e os laços entre os dois começam a ficar mais firmes, começa a
surgir novas questões no casamento, como filhos.
No
primeiro momento Eva é contra a ideia, afinal um filho iria atrapalhar a sua
vida e seu trabalho, ela teria que deixar muitas viagens de lado, teria uma
responsabilidade na qual ela não estaria preparada e estaria rumo a um caminho
incerto e sem volta o qual iria interferir em sua vida pra sempre. Com o tempo,
no entanto, Eva acaba cedendo e engravidando, afinal, a ideia de ficar grávida
se assemelha a ideia de fazer uma viagem pra um local desconhecido, sentindo um
misto de medo e excitação. Mas vamos ver que conforme a gravidez avança, as
dúvidas e incertezas acabam fazendo com que Eva se arrependa, mas já é tarde
pra voltar atrás. Assim, ela dá a luz a Kevin.
Ser mãe é padecer no
paraíso...
Por
ser narrado em primeira pessoa, o livro apresenta exclusivamente a visão da
mãe, mas nem por isso a nossa visão sobre os fatos é problemática, pelo
contrário, além da protagonista passar verdade no seu relato, dificilmente você
desconfiará dela, isso também permite que possamos ter um contato direto com os
seus pensamentos e sentimentos, dando uma profundidade importante pra trama.
Tornando o livro muito mais sobre Eva do que sobre Kevin de fato.
A
história contada vai ser praticamente toda sobre a relação da família, as
desconfianças que Eva tem sobre Kevin e sobre a conturbada ligação entre os
dois. É aqui que vamos começar a perceber as peculiaridades de Kevin, que mesmo
antes de saber andar e falar já conseguia carregar a discórdia e perturbar
aqueles ao seu redor.
Nas
cartas Eva vai relembrar alguns eventos que marcaram a sua vida e que de certo
modo previam as atitudes mais violentas do filho no futuro, então teremos
diversas passagens da infância e adolescência que mostram sinais de que Kevin
não é uma pessoa normal. Sendo assim, veremos a constante luta de uma mãe que
está diante de um filho com um temperamento difícil, e não sabe o que fazer
para resolver a situação, vivendo em um constante desgaste físico e emocional.
Por
outro lado, Kevin tem uma postura totalmente oposta com pai, o que gera um
conflito entre o casal, porque Eva vê um filho totalmente frio e calculista
enquanto Franklin vê um filho esperto e carinhoso. Pra ela Kevin é um protótipo
de psicopata, pra ele é uma criança como todas as outras, essa situação gera um
impasse no casal, fazendo com que sigam sua vida sem procurar ajuda
profissional. E nesse constante desentendimento entre os pais, Kevin vai
manipulando a família.
Ou no inferno
O
que você faria se seu filho mostrasse tendências psicopatas desde a infância,
mas “só você” percebesse? O que você faria se as suas suspeitas se confirmassem
e seu filho fosse preso por matar pessoas?
É
sobre essas duas questões que todo o livro vai se desenvolver, porque apesar de
tudo Kevin é seu filho e ela nunca consegue deixar de lado seu papel de mãe,
independente do que ele faça. E isso é curioso porque apesar de durante a
leitura ficarmos inconformados com a situação e nos perguntarmos como eles não
tomam uma atitude, é complicado julgar, afinal estamos vendo eventos passados,
já sabemos o desfecho, não estamos inseridos naquele cotidiano e,
principalmente, não é nosso filho. Tanto que durante a leitura, mesmo ela não
falando abertamente, percebemos que muitas vezes ela questiona a própria
sanidade — será que não estou
projetando minhas frustrações nele? Será que ele realmente por maldade? Será
que não estou exagerando? E mesmo que ele realmente seja aquilo que ele
demonstra, de quem é a culpa?
Isso
permeia toda a trama e percebemos que, apesar de tudo, Eva se sente culpada
pelo que aconteceu. Mesmo depois da prisão do filho, em nenhum momento ela o
abandona ou tenta fugir do passado; ela se mantêm na cidade e convive com a
constante ameaça dos outros moradores, como se aquilo fosse uma punição que ela
tem que pagar. Algo que achei bem curioso é que você sente uma mudança na visão
de Eva no decorrer do tempo: parece que ela tinha muito mais problemas com as
birras do Kevin quando criança do que com o Kevin assassino. Claro que o
segundo é mais grave, mas parece que depois de tanta coisa que ela passou ela
já estivesse anestesiada e aceitado a situação, tanto que ela parece
compreender melhor o filho no presente do que no passado.
Aí
entramos em outro detalhe importante: por que? Se Kevin realmente é um
psicopata, o que levou ele a isso? Aqui vamos entrar em algumas discussões já
levantadas em Menina Má e Fabrica de Vespas, quer dizer, será que
Kevin nasceu ruim ou ele foi influenciado pelo meio? Será que é uma
consequência de Eva não querer ter o filho? Essa é uma discussão que não vamos
ter respostas, nem o livro se compromete a isso, mas ele levanta questões
interessantes pra reflexão, porque apesar de muitas vezes entendermos que Kevin
nasceu assim, afinal ele está em constante conflito com a mãe desde o
nascimento, a autora também constrói um interessante panorama dos EUA na época,
mostrando que a violência está enraizada na cultura e que muito do que acontece
é um reflexo da própria sociedade.
Don’t feed the psychos
Algo
que gostei bastante no livro é que ao mesmo tempo em que a autora trabalha
bastante a questão psicológica dos personagens, principalmente a de Eva, ela
também consegue desenvolver bastante a questão sócio cultural dos EUA na época,
criando uma correlação entre o doméstico e o publico. Então, é perceptível que
não apenas dentro de casa existe esse clima de tensão, mas o próprio país passa
por algo semelhante. Um sinal claro disso é que o livro é baseado em casos
reais, que serão citados ao longo da trama.
Dentre
as diversas questões levantadas sobre os EUA, a violência é algo que vai ser
tratada mais profundamente. Entretanto, quando falamos de violência aqui não
estamos falando da criminalidade em si, porém de algo mais especifico, como a
espetacularização e o mercado da violência, de como a sociedade, mesmo que
inconsciente, criou um publico faminto por desgraças e tragédia, e como tudo
isso acaba refletindo nas relações diárias. O livro vai abrindo varias portas e
mostrando que a violência é algo enraizado e que está mesmo em coisas banais,
mas nem por isso é menos perigosa.
Um
exemplo disso é a cultura dos Serial Killers dos EUA, apesar de todo mundo ter
medo e querer o assassino preso, ele sempre é tratado como uma celebridade,
diversas noticias na TV, documentários, filmes, biografias, transmissão ao vivo
do julgamento na TV, etc. Ou seja, esse tipo de criminoso nos EUA goza de uma
publicidade maior que a de muitos artistas, e Charles Manson e Zodíaco estão ai
como prova. Então esse enraizamento da violência acaba desencadeando diversos
problemas, e transformando a violência em algo necessário para aquelas pessoas,
afinal, sem ela, com o que iríamos nos preocupar? Sobre o que iríamos falar? O
que iríamos assistir?
Com
isso, é curioso que, seguindo essa lógica, Kevin seja ao mesmo tempo um
problema e uma solução para aquela sociedade que anseia cada vez mais por
violência.
Violência televisionada
Meu
primeiro contato com a historia foi pelo filme de 2011, que é bem bacana, no
entanto, apesar de a historia ser exatamente a mesma, existem algumas mudanças
narrativas esperadas por se tratar de uma adaptação cinematográfica. Por serem
plataformas diferentes, cada uma vai explorar aquilo que cabe melhor, dando
enfoques diferentes.
Tanto
no livro quanto no filme vamos ter a perspectiva de Eva, mas com algumas
diferenças.
No
livro, a história nos será contada através das cartas, que nos permitem estar
em contato direto com a personagem, com isso, a questão psicológica é muito
mais evidente e melhor desenvolvida que o filme, sendo que a protagonista ganha
muito mais profundidade.
Já
no filme, seguiremos a personagem, mas não teremos essa visão em primeira pessoa,
sendo que são suas expressões e atos que ganham o enfoque e que, infelizmente,
não dão toda a dimensão que o livro dá. Outra mudança perceptível é a linha
narrativa, que no livro é bem delimitada, em cada carta ela conta um pouco da
história, começando com a primeira carta sobre a pré-gravidez até a ultima
carta que fala sobre os eventos mais recentes. Já o filme tem uma estrutura um
pouco mais caótica, no bom sentido, que de certo modo faz mais sentido pro
formato porque transmite toda a confusão de sentimentos sofrida por Eva.
Apesar
de gostar bastante do filme, o livro é inegavelmente melhor, tanto por oferecer
uma história mais completa e com mais profundidade quanto por levantar
discussões que no filme acabam passando batidas. Muitas coisas do livro estão
no filme mas não são explicadas, então pra quem não conhece a história fica
meio sem entender por que elas estão lá. A despeito disso, o filme tem alguns
elementos que são incríveis, como os simbolismos usados pra representar a
situação que Eva está passando. Em quase todas as cenas do filme a cor vermelha
está presente e destacada, como se fosse um alerta da violência que está presa
naquele cenário, algo que é bem curioso, já que apesar de a violência do filme
não ser explícita, desde o início ela está presente de uma maneira
intimidadora. O filme nos choca muito mais com a sugestão do que com a
violência de fato. Ela não é presenciada, mas ela é sentida. Aliás, outro
ponto, ainda dentro do vermelho, é que em diversos momentos vamos ver Eva tentando
limpar/lavar a cor vermelha (a mão de tinta, a parede pichada, a geleia de
morango), mas por mais que ela limpe as coisas estão sempre sujas, refletindo
muito o seu interior, como se a violência (ou o vermelho) já estivesse
permanente em sua vida e não importa o quanto ela limpe, ela não vai conseguir
se livrar totalmente.
Em
resumo, tanto o livro quanto o filme são muito bons e ambas as experiências são
legais. Se você me perguntar qual eu indico, eu diria os dois, pois são formas
diferentes de contar a mesma história, e acaba que um complementa o outro, mas
se for pra escolher apenas um eu ficaria com o livro porque oferece uma
história mais completa e desenvolve melhor os assuntos tratados, mesmo que
alguns elementos só o cinema seja capaz de oferecer.
Essa DR é realmente
necessária?
Sem
dúvidas, Precisamos falar sobre o Keviné
um livro bem impactante e que é indicado a qualquer pessoa que se interesse por
psicologia e psicopatia. Mesmo sendo uma ficção, a escrita da autora mostra que
ela domina o assunto que está trabalhando e ela consegue te convencer de que
aquilo que ela está contando se assemelha bastante a realidade, em nenhum
momento parece exagerado ou inverossímil com os outros casos reais.
O
desenvolvimento é um pouco lento, afinal o livro não deixa de ser um compilado
de memorias sobre a sua relação com o filho, mas não é algo que atrapalha a
leitura, pelo menos pra mim. Essa lentidão é necessária para inserir o leitor
dentro daquele contexto e permitir que você se torne próximo o suficiente de
Eva para que perceba tudo aquilo que está em suas cartas.
Enfim,
é um livro cru e denso, que incomoda e que faz você pensar duas vezes sobre a
vontade de ter filhos (se você nunca quis, depois da leitura desiste de vez),
porém que traz discussões interessantes e que conta uma história que,
infelizmente, está cada vez mais comum por uma perspectiva diferente, a da mãe,
que independente dos caminhos tomados pelo filho, sempre haverá uma ligação.
Então
sim, é necessário falarmos sobre o Kevin, sobre os garotos em que ele foi
inspirado, sobre as mães e sobre o sistema que alimenta a violência.
Tô aplaudindo de pé essa resenha Victor! Sensacional!
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