Hoje o Café deixa de
lado os fantasminhas, as mitologias e as bizarrices de lado pra abordar uma
obra que trata de assuntos mais sérios e pesados. Temas que apesar de
inspirarem diversas produções, tanto no cinema quanto nos livros, são
infinitamente mais assustadores quando aparecem no jornal ou quando você escuta
falar que aconteceu com alguém que você está direta ou indiretamente ligado.
Então se prepare pra uma leitura nem um pouco agradável.
“Não sei de onde as pessoas
tiram essa ideia, absurdamente fraca e sem lógica, de perdoar a quem nos
maltrata. Posso estar errada e parecer anticristã, mas, Deus me perdoe, não sai
de mim nada além de pura escuridão. Quem sabe, amor e perdão funcionam em um
mundo onde homens casados e inseridos na sociedade como pessoas de bem, olham
para menininhas como se fossem suas filhas ou irmãs e não como se fossem
objetos do mais profundo desejo carnal e satânico.”
Título original: Diário de uma escrava
Autor: Rô Mierling
Ano: 2016
Editora: Darkside books
Páginas: 219
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Laura era uma garota que tinha uma
vida bem semelhante a de outras garotas da sua idade: escola, família, amigos,
a primeira paixão, etc. Tudo isso muda quando, aos quinze, é sequestrada por um
homem e jogada em um buraco onde ficará trancafiada por quatro anos. Vivendo em
situação precária e sendo abusada diariamente, a protagonista relata muito do
que sofreu nas mãos do Ogro (nome que dá ao seu abusador), tanto dentro quanto
fora do buraco.
Mais um dia...
A partir de uma narrativa em primeira pessoa, o
livro, em sua primeira metade, vai apresentar um pouco sobre o sofrimento de
Laura nos quatro anos que passou no cativeiro. Ela vai relatar as precariedades
do buraco em que vivia, os abusos que sofria diariamente do estuprador e também
um pouco dos seus sentimentos e devaneios, seja em relação ao passado com
lembranças sobre a família e amigos, seja em relação as incertezas do futuro e
como ela imagina a sua vida caso ela consiga fugir.
Em meio a torturas físicas e
psicológicas, uma vida de condições precárias e a privação de sua liberdade, a
protagonista, em diversos momentos, vai pensar em planos para escapar e, apesar
de sua fuga se mostrar cada vez mais difícil, é nas brechas dadas pelo seu
sequestrador que ela (e nós) vamos compreendendo melhor toda a situação em que
ela está inserida.
Ogro fantasiado de homem ou homem
fantasiado de ogro?
Paralelamente aos relatos de Laura,
teremos alguns capítulos, em terceira pessoa, que estão além do cativeiro, mas
diretamente ligados à trama e ao tema tratado pelo livro. Isso ajuda a dar uma
maior profundidade a questão. Alguns desses capítulos narram o sequestro de
outras garotas, mostrando e alertando como os sequestradores agem e escolhem
suas vítimas, como, por exemplo, homens que se passam por jovens pra atrair
crianças na internet ou pedindo ajuda com algo para afastar a criança de
lugares movimentados.
Entretanto, ao meu ver, um capítulo
em especial que se destaca e dá o tom a tudo que virá a seguir, tanto na
história quanto nas reflexões sociais que o livro abre, é o capítulo sobre
Estevão, o ogro. Ele é importante porque ajuda a desmistificar a ideia de que o
estuprador é um monstro, totalmente diferente das outras pessoas. Na verdade,
ele é um homem, aparentemente, como todos os outros, tendo trabalho, família,
interagindo socialmente, etc. Ou seja, você pode trabalhar ao lado de um
Estevão e nunca ter desconfiado, porque infelizmente eles estão inseridos na
sociedade e não possuem chifres ou pele verde para diferenciarmos uns dos
outros.
O estuprador, como pode ser visto em
alguns momentos da história, leva uma vida dupla. Apesar de as pessoas
estranharem um pouco alguns de seus modos – jeito de falar, o gosto por lugares
isolados, timidez – ninguém imagina que ele é um pedófilo que sequestra
garotas. Nem mesmo sua mulher, pessoa com quem ele tem um convívio quase
diário.
Outro tema que é não é trabalhado
(mas que acaba ficando implícito na trama) é a questão do olhar masculino sobre
as mulheres e como a sociedade colabora (direta ou indiretamente) pra que casos
assim sejam frequentes. Se você tem o mínimo de conhecimento da sociedade em
que vive e sabe fazer uma relação de causa e efeito, é bem obvio que existem
disparidades quando se trata de homem e mulher e que isso cria diversos
problemas, um deles é justamente essa questão do homem como predador e a mulher
como indefesa, frágil e submissa (algo que até mesmo as religiões corroboram).
A questão é que isso não se aplica apenas nas histórias da Disney em que
mulheres sonham com príncipe para serem completas, isso, também, influencia
diretamente no comportamento masculino em que não vê a mulher como igual, porém
como alguém que merece seus cuidados e proteção, ou em casos mais graves, como
na história, submissão e controle.
E isso fica evidente na história por
que, apesar do sequestrador ter esses traços de psicopatia, suas ações não são
infundadas; elas possuem uma lógica (por mais absurda que ela seja). Sendo
assim não podemos simplesmente falar que ele é um doente ou que ele é um
monstro, porque as ações não surgem do acaso como um surto psicótico, todas
elas tem uma base social, mesmo que distorcidas. Não é algo que simplesmente podemos
dizer: “ele faz isso porque ele nasceu assim”. Em muitos momentos vemos em suas
falas ideias que facilmente conseguimos correlacionar com coisas que nossos
amigos falam nas redes sociais e discursos que diariamente surgem em nossas
“timelines” só que de uma maneira mais extrema e levada ao pé da letra. Tanto
que o personagem não acredita estar fazendo algo ruim, pelo contrário, ele acha
que fazendo essas coisas ele vai conseguir o amor de Laura.
E sob toda essa opressão está a
protagonista, que tem que sobreviver nas garras deste homem, tendo que retribuir essa
forma doentia de “amor” pra que não sofra ainda mais.
As grades permanecem...
Na segunda metade do livro vamos ter
uma mudança na configuração da história: Laura já não passa mais dia após dia
presa em seu cativeiro, mas também não se encontra livre do seu sequestrador.
Isso basta pra dar prosseguimento à resenha, mas caso queira saber o que
acontece e porque ela não permanece no buraco, compre o livro e leia.
A partir desse ponto da história a questão
psicológica da personagem se mostra cada vez mais complexa, pois apesar de
surgir a possibilidade de fuga, o medo prevalece e ela se vê impotente pra
tomar alguma atitude. E nesses momentos que o livro desenvolve boa parte do
suspense e da tensão, já que ao mesmo tempo em que acompanhamos os planos de
Laura, a sua vontade de fugir e suas angustia (seja de permanecer presa, seja
de fugir e não conseguir se restabelecer na sociedade), também lidamos com suas
limitações físicas e psicológicas. Então mesmo a fuga parecendo cada vez mais
necessária, o medo dela dar errado é tão forte quanto a vontade de fugir.
Constantemente a personagem se pega nesse dilema: vale a pena arriscar agora e
correr o risco de piorar ainda mais a situação ou devo esperar uma oportunidade
melhor?
*
Dito isso vamos entrar em uma
questão que me parece bem relevante discutir aqui, mesmo sem entrar em detalhes
da trama. Além desses pontos já citados, Laura tomará alguma atitudes que podem
levantar questionamento no leitor: Será que uma pessoa nessas condições faria
isso? Nossa, a escritora ta viajando, não tá? Que merda é essa que ela tá
fazendo? Etc.
“As ações de Laura não condizem com
a realidade”, essa foi uma das principais críticas ao livro que li internet
afora (as outras criticas discutiremos no próximo tópico), mas até que ponto
isso é uma critica ao livro ou um atestado de ignorância do crítico sobre o
assunto? Eu não sei responder.
Em diversos momentos eu me peguei
duvidando das ações de Laura e achando que as ações eram forçadas,
principalmente quando começa a se aproximar do final, mas existe uma questão
simples que você deve pensar antes de falar que ela está errada ou que o livro
é inverossímil: eu não sou Laura, eu não passei trancafiado em um buraco por
quatro anos sendo abusado sexualmente e vivendo em condições precárias, eu não
vi todos os meus sonhos morrerem e nem mesmo estudei psicologia pra fazer uma
analise mais profunda sobre suas condições.
Resumindo, é fácil fazer juízo de
valores e ações quando você esta confortavelmente sentado em sua cadeira e
nunca passou por nada semelhante, não fazemos a mínima ideia do que se passa na
cabeça da personagem e do quão traumatizada ela está. Me parece um tanto
arrogante julgar uma pessoa nessas condições. Essa questão não se aplica apenas
a Laura, mas até mesmo em casos reais semelhantes que as pessoas tentam
deslegitimar o depoimento da vitima por não ter feito determinada coisa ou nos
constantes casos de violência doméstica que acham que a mulher está presa
naquela situação porque ela quer.
Não estou dizendo que a situação de
Laura é algo que ocorreria de fato caso ela fosse real, afinal cada pessoa se
comporta e lida de uma forma diferente, mas em nenhum momento podemos deixar de
levar isso em consideração.
“Ain, esse livro é só pra chocar”
Outra crítica que vi bastante foi o
fato do livro ser muito forte e ter descrição de varias cenas só pra chocar o
leitor. Eu já discuti essa questão na resenha do Serbian film, mas vamos lá mais uma vez.
Eu morro de preguiça de gente que
fala “mas isso é só pra chocar” então vou ser bem direto: Diario de uma escrava é um livro que vai tratar de sequestro,
estupro e pedofilia, logo, se você não quer ser chocado, vá ler outra coisa
porque talvez essa não seja uma leitura pra você. Quando vejo alguém falando
que uma obra “é só pra chocar” isso me diz mais a respeito da pessoa do que a
obra de fato, posto que muitas vezes parece que a pessoa não quer enfrentar o
peso daquilo que esta vendo/lendo e tenta justificar como se fosse um exagero
da parte do artista, e nunca como um reflexo de algo que de fato acontece.
Voltando. Independentemente do livro
ser só pra chocar ou não, não deixa de ser algo que deve ser mostrado pra que
as pessoas tomem consciência. A questão da pedofilia e da escravidão sexual tem
que ser exposta da maneira mais grotesca possível pra que as pessoas passem a
levar aquilo mais a serio, enquanto ficar dissimulando o que acontece com essas
garotas só pra não chocar o expectador, vamos continuar com essa visão
indiferente sobre o fato. Por mais que a
Rô Mierling tivesse escrito o livro só pra chocar, o que não acredito, o choque
é mais que necessário para que você mude sua percepção sobre o assunto.
E mesmo que o livro seja pesado, a
autora poderia ter sido muito mais cruel com seus leitores, pois as cenas
narradas são um tanto quanto óbvias, superficiais e sem muitas descrições. Não
digo que é um ponto negativo, porque não teria necessidade em ir além disso,
mas fica claro pra mim que nas mãos de outra pessoa o livro poderia ser
infinitamente mais indigesto e “chocante”.
Devo ler os diários de Laura?
Diário
de uma escrava independente de ser
baseado em casos reais não deixa de ser um romance de suspense, com uma
narrativa em primeira pessoa e com todos os recursos para manter o leitor preso
e surpreendê-lo. As questões sociais que ela levanta são relevantes para a
trama e vão fazer com que o leitor reflita sobre os temas, mas em nenhum
momento vai sobrepôr a ficção. Vamos ter alguns capítulos do livro funcionarão
como uma espécie de alerta ao leitor, no entanto sempre teremos plena
consciência de que é uma história fictícia, apesar de existirem casos reais
semelhantes.
É um livro interessante e que vale a
pena ser lido, não apenas pela história que prende e surpreende em alguns
momentos, mas também por denunciar uma questão que é bem presente na sociedade,
permitindo o leitor parar um pouco e pensar na condição das mulheres
sequestradas que muitas vezes é tratada de forma superficial. Entretanto não
posso deixar de citar alguns problemas bem evidentes do livro — dois principalmente: a escrita e as
conveniências. O livro não é mal
escrito, mas é fraco e possui muita coisa que não convence pela falta
consistência. Digo isso porque o livro é escrito quando Laura já é adulta, mas
tem momentos em que parece que ela é uma criança e outros em que ela parece
adulta, existindo uma indecisão sobre a posição que ela assume. Ora ela parece
muito decidida, ora parece uma criança mimada, além disso a escolha de algumas
expressões não me convenceram, como: “eu gostava de sentar no fundo da sala com
minha turminha da pesada”, se você tem menos de 70 anos não é aceitável falar
“turminha da pesada”. Então ao mesmo tempo que é um assunto muito sério, a
escrita muitas vezes tira esse peso, o que incomoda um pouco, apesar de não
atrapalhar a narrativa.
Outro ponto que me incomodou foram
as coincidências que surgem convenientemente na narrativa para fazê-la
funcionar: existem algumas passagens bem improváveis que deixam claro que estão
ali só pra dar continuidade à história, dando a sensação de que foram uma saída
preguiçosa pra avançar na narrativa. Assim como alguns personagens que aparecem
no final e ficam soltos na trama, é evidente o papel que a autora quis atribuir
a eles, e não deixa de ser uma ideia interessante, porém, do jeito que foi
colocado parece que ficou sobrando, aparecendo e surgindo do nada.
Apesar de seus defeitos, que dá para
relevar mesmo que tirem um pouco da potência da narrativa, Diário de uma escrava é uma leitura bem
interessante que tira qualquer um da zona de conforto e faz o leitor enfrentar
algumas realidades que tenta evitar. Além disso, a edição da Darkside books
(que recebemos em parceria) tá bem bonita e consegue expressar bem o conteúdo
da obra, o corte das folhas em azul e rosa mostrando uma transição e a
borboleta da capa dialogam perfeitamente com a aquilo que vamos encontrar em
suas páginas.
Caraca... que resenha! Obrigada por compartilhar suas impressões de maneira tão precisa. Gostei demais do texto <3 :)
ResponderExcluirAproveitei pra ler a sua resenha do Serbian também. Sensacional!
Brigado Raquel ;)
ExcluirEspero que a resenha tenha despertado o interesse de ver (ou rever) o serbian.
Obs.Só não vale botar a culpa em mim pelo desgraçamento que o filme pode causar haha
gostei muito e fiquei curiosa pra ler o livro ...
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