quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Resenha: Encarnação do demônio


             Para você que não tinha idade para entrar no cinema na época do lançamento do filme ou que estava com medinho das unhas de Josefel e não quis pagar o ingresso, o Café com Tripas disseca hoje a última parte da trilogia Zé do caixão, queira você ou não. Clique aí no link se tiver coragem.





Título original: Encarnação do demônio
Lançamento: 2008
Duração: 93 minutos
Direção: José Mojica Marins





            Pondo fim nessa brincadeira de “O Zé além do caixão” (não sem algum atraso...), fechamos hoje nosso projeto com o fim da trilogia mais conhecida de Mojica. Obviamente, continuaremos a voltar à obra desse cineasta de forma esporádica, como sempre fizemos, mas o projeto encerra aqui, então, caso não tenha visto nada do todo poderoso Mojica, clique no link e veja que o está perdendo.
            Uma questão que eu não parei para pensar quando revi o filme e que seria bom discutir neste momento foi o quanto Encarnação do demônio seria acessível como filme isolado dos demais da trilogia. Será que dá para entender e curtir a obra mesmo sem ter visto À meia noite levarei tua alma, Esta encarnarei no teu cadáver (e o “extra” Prontuário 666)?
            Certamente, quem conhece os dois filmes anteriores entenderá um monte de referências — até básicas — que o filme coloca, como o mordomo freak Bruno, a motivação do protagonista para ter um filho, seu desprezo pela religião, suas perturbações com os fantasmas daqueles que matou, etc. Aliás, caso tudo o que eu esteja dizendo seja absolutamente estranho para você, te causando uma vontade doida de não ficar por fora do assunto, então clique nos links das resenhas aí acima e descubra tudo nos detalhes. Entretanto, mesmo que você não queira fazer isso e decida ver apenas esse filme na cara e na coragem, então também não é preciso desesperar, pois Encarnação do demônio retoma várias cenas chaves dos filmes anteriores a fim de explicar dispensar o espectador de uma “maratona Zé do Caixão”.
            Particularmente, acho que essas retomadas não contribuem com o filme e tomam um tempo desnecessário dele, inchando o roteiro, contudo, elas cumprem a função importante de apresentar ao público que nunca viu os filmes antigos (ou que já se esqueceu deles) o velho personagem. Devemos lembrar que o primeiro filme da trilogia saiu nos cinemas há mais de quarenta anos, portanto, temos gerações inteiras que de lá para cá que só ouviram falar por alto de Zé do Caixão e da filmografia de Mojica. Esse problema da distância entre o espectador e o filme realmente atrapalha o acesso do público à obra e foi sábio da parte da equipe do filme lidar com ela. 
            Apesar dessas retomadas cênicas tornarem o filme compreensível naquilo que tem de mais básico, elas ainda são insuficientes para fazer o espectador aproveitar tudo o que o filme tem a oferecer, pois seu protagonista é muito mais interessante se visto desde o começo da trilogia. Não entendam o que estou dizendo como um discurso de fã que quer fazer vocês assistirem todos os filmes do Mojica (embora, é claro, vocês devam), na verdade, tenho um motivo para dizer isso: é que em Encarnação do demônio há uma espécie de contraponto entre o mundo do qual Zé veio e o mundo que descobre do lado de fora da prisão quarenta anos depois. Com isso, quem não conheceu esse mundo precedente, o coveiro pode parecer extravagante em suas roupas pretas, suas falas em ritmo estranho e coisas assim, contudo, quando já conhecemos o mundo interiorano, rural e carola do qual o personagem veio, sua figura estranha e amedrontadora não causa esse choque, pois conseguimos entender ao que ele está reagindo, contra quem e o quê ele está se opondo ao ser essa espécie de diabo do interior do Brasil.
            Minha recomendação, portanto, é que vocês vejam ao menos o primeiro filme (tem no Youtube) antes de assistir esse aqui, pois isso vai melhorar sua experiência com a obra e diminuir o choque que existe entre o personagem e o mundo em que ele estará.

Zé, o retorno

            Depois de 40 anos preso, Zé do caixão é finalmente libertado pela lei brasileira. A partir daí, ele procura usar o tempo de vida que lhe resta para realizar seu antigo sonho de ter um filho.

Mas ele não tinha morrido?
Ou: atenção para um spoiler de cinquenta anos atrás!


            A cena é famosa: Zé do caixão é encurralado pela população e, ferido, esgotado, vai afundando num fosso sem muitas chances de escapar. É o momento final do filme e o fim do monstro ateísta. Ele afunda, afunda... Até que, de repente, começa a proferir palavras de fé, dizendo que se arrepende de seus pecados e aceita enfim Jesus no coração. O personagem morre cristão e o filme acaba aí.
            A ditadura militar brasileira e suas pieguices...
            A história é mais ou menos assim: na época das gravações, Mojica teve que se submeter à estupidez dos censores e mudar a cena final para obter a permissão de exibir o filme. A cena original, que evidentemente não era essa babaquice, acabou nunca chegando ao grande público. Salvo engano, acho que ela foi perdida e nem existe mais.
            Seja como for, esse final brega foi o único entregue ao público e, a princípio, ele torna impossível existir um terceiro filme, afinal, se Zé do Caixão morreu e está com os querubins e com o Thor lá nos Campos Elísios, então ele não pode ter ficado na cadeia por quarenta anos — há um impasse aí. A meu ver, a resposta que esse terceiro filme dá para tal impasse  é uma das melhores coisas da obra e, sinceramente, uma das melhores coisas que já vi no cinema brasileiro. Não vou entregar essa resolução aqui, pois é realmente legal de ver sem saber, porém, trocando em miúdos, o personagem sobrevive. O que importa nisso, no entanto, não é sua sobrevivência mas a forma como ela é mostrada em cena: Mojica não dá só uma explicação do que ocorreu, mas também realiza uma espécie de vingança contra aqueles que tentaram anular sua arte.
            Como é bastante incomum a cultura conseguir revidar a violência e as arbitrariedades políticas do país, considero ótimo o recado pelo filme. Apesar de todas as dificuldades que enfrentou, Mojica sobreviveu ao tempo e sua arte continuará através de nós como um símbolo de nossa cultura e da resistência digna que existe dentro dela, ao passo que esses censores só serão lembrados — se o forem — pelo mal que fizeram ao país. Vendo o filme eu me senti vingado.

Cadeia nele?

            De maneira geral, o filme se resume a mostrar como Zé retoma seu antigo plano — de procriar — desde o momento em que é libertado da prisão. Com esse ponto de partida, uma primeira questão que a obra coloca ao espectador é a própria libertação do personagem que, basta ter algum bom senso para notar, jamais deveria ter ocorrido. Zé do caixão é louco e perigoso: aqueles que o prenderam sabiam disso, os que o mantiveram preso também e aqueles que o libertaram igualmente... Bem, então por que o libertaram? A resposta é simples e frustrante: ele foi libertado porque não existem mecanismos em nossa lei para deter presos irrecuperáveis. O filme nesse ponto é apenas fiel à justiça brasileira do mundo real, já que, embora Josefel seja apenas um personagem, vemos casos como o dele acontecerem o tempo todo. Suzane Richtofen vive saindo da prisão, o “maníaco do parque” está ganhando as ruas este ano, etc. Diante de casos assim, tão comuns em nosso país, é fácil inferir que um assassino biruta como o Zé, se existisse, sairia em algum momento para aterrorizar as pessoas.
            De um lado, nossa justiça cobra de nós recursos (em forma de imposto) e submissão às suas leis, de outro, ela deveria garantir que aqueles que descumprem tais leis sejam punidos por ela, contudo, tanto quanto nós a justiça falha, o que gera certo vácuo entre o que deveria ser nossa sociedade e o que ela é . Do interior desse vazio nos perguntamos sobre como devemos agir: cumpre ignorar a lei e caçar um sujeito como Josefel para “assegurar a justiça”? É preciso reclamar (para quem?)?
            O filme não aborda tanto a maneira pela qual a soltura de Josefel repercute socialmente (do televisor para a mesa de jantar, digamos assim), mas ele apresenta grupos que estão situados dentro desse vácuo e que tem poder para fazer alguma coisa. São policiais corruptos, inimigos revanchistas e pessoas que, por um motivo ou por outro, decidem reagir à liberdade do coveiro. E sua reação, obviamente, não está dentro das linhas da lei.
            Há uma sucessão de contradições bizarras nessa situação que vão se multiplicando a cada cena, pois se tais pessoas tem sucesso em seu intento e matam Josefel ou simplesmente fazem com que, de algum modo, ele pare de fazer suas malvadezas, a sociedade estará livre de um mal, no entanto, aqueles que operam fora da lei não agem por um simples altruísmo de salvar a sociedade ou qualquer coisa assim, mas porque lucram com o vácuo onde não há lei nem justiça. Enfrentar Josefel é algo que fazem por motivos particulares e tão vis (ou quase) quanto os dele, de modo que dar poder para justiceiros, embora possa nos livrar de um ou outro criminoso, não nos livra dos próprios justiceiros. Trocamos seis por meia dúzia e continuamos a fortalecer os espaços em que a justiça está ausente e que, no entanto, são vastamente ocupados por gente que ganha com ele.

Zé with lasers


            Algo que já existia no segundo filme mas de forma bem menos nítida, é o fato de que Zé inspira outros malucos que, ao tomarem contato com sua figura e suas ideias, se aglomeram ao seu redor e estão dispostos a se sacrificarem para realizar o objetivo que ele persegue. Por algum motivo que a Psicologia está aí para explicar, é bem comum que a figura do louco se torne uma espécie de pessoa que está além das outras e pode levá-las a algo mais elevado. Muita gente, infelizmente, acredita nesse tipo de coisa, como bem sabemos. O louco, nesse sentido, é mais que uma pessoa específica com ideias próprias sobre o mundo, como todos somos, ele é um ideal elevado que ultrapassa a mediocridade geral e, como tal, pode incitar aqueles que estão ao seu redor para se sacrificarem em seu favor, desistindo de suas vidinhas particulares para fazer algo em função daquilo que ele representa.
            A relação entre o doido e seu séquito de otários não é unilateral, a multidão de bobocas ganha alguma coisa ao fazer isso. Aquele que segue o louco se sente elevado e privilegiado por estar junto de alguém incomum, como se estivesse participando de alguma coisa que é maior que sua própria vida e que a vida das demais pessoas, por isso, pode até mesmo sentir que é melhor ou mais sábio que as demais pessoas do mundo, recebendo assim uma lufada de ego que é um prêmio poderoso.
            Para quem é limítrofe a ponto de sequer ser capaz de notar a diferença entre um maluco e uma pessoa com ideias avançadas, como resistir a algo assim?
            A fim de assegurar seu controle sobre seu rebanho, ainda é possível que o louco submeta seus asseclas a prova, testando sua virtude, sua força e fazendo com que o assecla sofra profundamente. Caso ele sobreviva a essas torturas — ou “provações” — então ele será alguém que é digno daquilo que seu mestre requer. Outra lufada de ego. Obviamente, esse processo serve como uma forma de manter um domínio psicológico sobre o fiel, incitando seus sentimentos mais primitivos irracionais, assim como qualquer igreja faz ao rebaixar o fiel à figura do “pecador” e blá blá blá.
            O protagonista recorre a esse recurso algumas vezes no filme e é um dos poucos aspectos em que sua relação com seus discípulos, que não é bem explorada nem apresentada na obra, funciona muito bem. No geral, essa parte dos discípulos (e das mulheres escolhidas para procriar) não é boa, ficando subentendidas várias coisas que deveriam ser apresenta ou com tudo ficando meio mal feito mesmo, todavia, quando se trata de fazer as pessoas sofrerem... Aí, caros amigos, temos uma espécie Mojica With Lasers. As cenas mais pesadas do filme, inclusive, surgem daí. E são pesadas mesmo. Não duvide que elas vão te chocar, pois elas vão.
            Para falar a verdade, existem algumas questões “extra ficcionais” nisso tudo: nunca antes o diretor pôde contar com um orçamento tão grande quanto o desse filme, o que possibilitou que a violência fosse elevada para um outro patamar, e que fossem usados recursos gráficos que nunca existiram dessa forma nos filmes de Mojica.
            Lembro de ter lido uma entrevista na época do lançamento do filme em que o Mojica dizia que pediu auxílio ao Lula e recebeu em troca um milhão de reais, que acabou sendo todo o orçamento do filme. O que me assustou quanto a isso foram as palavras que o Mojica disse ao entrevistador: “Nunca vi tanto dinheiro”. Trocando em miúdos, até aquele momento o diretor nunca tinha feito sequer um filme com o orçamento de um milhão, um montante que na média geral de qualquer indústria cinematográfica de qualquer país, é bem pequeno. Particularmente, sinto um mal estar ao pensar nisso e nem vou me estender nesse assunto; é deprimente demais pensar na trajetória do diretor ocorrendo dessa forma.
            Apesar disso, é preciso dizer que o resultado dessa grana injetada no filme faz bastante diferença, não tanto no roteiro ou na estrutura geral da obra, mas nas possibilidades gráficas que ela levanta (sangue, sangue, sangue) e numa maior possibilidade de usar vários cenários, atores e coisa assim. Talvez o futuro possa ser um pouco mais generoso com o cinema brasileiro autêntico. Encarnação do demônio mostra algumas possibilidades disso.

“A trindade contra o tridente”

            Encarnação do demônio tem uma estrutura similar a dos filmes anteriores: num primeiro momento somos apresentados à figura de Josefel e vemos como ele é gentil com as pessoas, como toca o coração delas, como ele espalha o bem e o amor aonde passa... Ou talvez a coisa seja um pouquinho diferente disso, mas pouco importa, pois logo depois da apresentação do personagem, acompanhamos como suas ações geram uma reação contrária a ele cada vez mais forte, que se acumula gradativamente até que, por fim, há um desfecho proporcional ao que o personagem causou no mundo. Em geral, Zé do Caixão “perde” em todos os filmes, algo que normalmente tornaria o filme moralista, quer dizer, faria com que o final fosse uma espécie de recado ao espectador:
            — Meninos e meninas, não sejam como Zé; olhem só o que lhe aconteceu!
            Mas não é assim que acontece, na verdade, embora os filmes tendam a fazer o protagonista pagar de algum modo pelo que faz, essa punição não parece dar razão ao contrário daquilo que Zé defende e significa. Vou explicar melhor.
            Basicamente, Zé do Caixão é uma espécie de ser humano cujos escrúpulos não são aqueles de seu mundo social em que ele está, e que se faz por si mesmo e não a partir daquilo que o circunda. No seu entender, as das pessoas são ordinárias e pobres, regidas pelo medo, pelas autoridades e pela religião, que seria uma espécie de crença que consola as pessoas das desventuras da vida e ao mesmo tempo as coloca numa posição de carência e fraqueza (afinal, se fossem fortes, não precisariam de consolo), ao passo que o protagonista viveria uma vida em teme poucas coisas e enfrenta tudo por suas próprias forças, procurando gerar um filho que dê prosseguimento a essa sua força e que gere uma verdadeira linhagem  de cabras machos.
            Como o protagonista fracassa, normalmente entenderíamos a interpretar que o filme reafirmaria que ele está errado e que corretos estão aqueles que ele combate, contudo, como disse, não é bem assim. No final de cada filme, não é como se o deus da religião existisse, a vida submissa à religião e à moral e aos bons costumes fosse a única a ser adotada, e coisa assim.
            Bem, então o que significa a derrota do monstro?
            Particularmente, acho esse um dos pontos mais difíceis de interpretar em todos os filmes e não tenho certeza do que direi, porém vou deixar aqui minha hipótese: acho que sempre que o personagem perde, o que acaba sendo afirmado no final é que existem forças contrárias ao que o protagonista propõe e que são tão vis quanto ele. Poderia ser um deus? Os espíritos de suas vítimas? A fúria de uma população lesada por um doido? Acho que nesse ponto a trilogia simplesmente deixa para o espectador decidir, ou seja, talvez exista um deus que seja mesmo mal e vingativo, talvez os espíritos estejam mesmo perseguindo o personagem ou talvez ele apenas tenha recebido o que merece da população, mas o que importa é que seja lá quem ganha no final, não é propriamente “alguém” mas “algo” que, ainda que tenha atingido Zé do Caixão, poderia atingir qualquer um que decidisse — como ele — desafiar a ordem vigente das coisas. No universo de Zé do Caixão perde quem atenta contra a ordem desse universo.

Por que assistir?

            Encarnação do demônio tem mais acertos que erros, eu acho. Creio que aquilo em que o filme falha, como certo inchaço do roteiro e incapacidade de lidar com alguns personagens  (como o padre caçador, que é meio deslocado, ou mesmo os asseclas), se dá mais pelo fato de que ele precisa ser apresentado para um público leigo ao mesmo tempo em que tem que encerrar uma trilogia carregada de coisas, e menor por uma falha na coerência da obra. Os acertos do filme são vários e poderiam ser ainda mais caso a trilogia não carregasse tanta coisa para ser resolvida de uma única vez. Algumas cenas, como a da chuva, por exemplo, são magníficas e vão ficar na sua cabeça por um bom tempo, tal como algumas ideias inusitadas que o diretor teve sobre a violência.
            Se você já viu os filmes anteriores, poderá acompanhar com mais prazer esse monstro da cidade pequena colocado agora num mundo moderno, para o qual ele é antiquado mas cheio de ideias, entretanto, ainda que você não conheça esse mundo sangrento e obscuro, fica aqui um convite não a esse filme somente, mas a toda a trilogia e ao que ela pode oferecer.

Assista aqui

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