Para todos aqueles que já morreram
numa vida passada ou que estão pretendendo — quem sabe — morrer um dia nessa
vida, o Café com Tripas traz agora uma resenha de Confissões
do crematório, de Caitlin Doughty, fruto de nossa parceria com a Darkside
books. A obra é um prato cheio para quem tem afinidade com mundo dos
mortos, com reflexões sobre o fato de que as pessoas morrem e que seus corpos
sobram para os vivos junto com um monte de dúvidas sobre o significado disso.
“Não importa quantos álbuns de heavy metal você viu, quantas pinturas Hieronymus Bosch sobre as torturas do inferno, ou até mesmo a cena em Indiana Jones, onde o rosto do Nazi derrete, você pode não estar preparado para ver um corpo a ser cremado. Vendo um crânio humano flamejante é mais intenso, além de seus voos mais selvagens da imaginação.”
Título original: Smoke gets in your eyes
Autor: Caitlin Doughty
Ano: 2014
Editora: Darkside books
Páginas: 260
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Em
Confissões do crematório Caitlin Doughty (a própria autora) narra sua vida
a partir do momento em que passou a trabalhar no serviço funerário, contando o
que descobriu por lá.
Você
tem estômago?
Confissões do crematório é um
livro singular até mesmo para o catálogo trevoso da Darkside books. Por mais
que nós que frequentamos o Café estejamos acostumados com a
violência gráfica do cinema e com bizarrices literárias de todo o tipo, na maioria das vezes, sempre que abordamos coisas do tipo há algo que nos protege de ser
atingido por elas: sua ficção. Saber que o sangue é só suco de tomate e ketchup
nos protege de nos sentirmos muito incomodados com as coisas que o cinema trash
apresenta, pois dá a impressão de que elas nunca nos aconteceriam. Quando se
trata de Confissões do crematório, todavia, estamos diante de como as
coisas acontecem no mundo, o que retira todos aqueles nossos consolos que nos
fazem dormir bem durante a noite.
Como se trata de uma obra de
não-ficção e, mais ainda, de uma obra que não tem uma estrutura narrativa
romanceada que vá levar os personagens a uma conclusão bonitinha, o conteúdo do
livro não é exposto de maneira a nos perturbar, a nos envolver literariamente e
nos fazer passar por experiências imaginativas atemorizantes, a bem dizer, ele
é um relato de vida permeado por reflexões a respeito da morte o qual, por
descer aos detalhes de diversas práticas que a humanidade tem com os mortos e
por cutucar esse nosso tabu com a morte, acaba sendo pesado em vários pontos.
Por isso, suspeito que mesmo leitores que gostem das temáticas que o livro envolve
podem acabar preferindo outras obras a essa aqui. Não é que estejamos diante de
uma loucura literária como Panorama do inferno, de Hideshi Ino, de uma
loucura filosófica como Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, ou de
um relato escabroso como As boas mulheres da China, de Xinran, mas há
momentos de bastante peso que não oferecem nenhuma desculpa teórica ou estética
para atenuar a experiência. Para quem está acostumado com elas, eis aqui um
livrinho que pode incomodar.
Cérebro
O livro tem uma estrutura bem
própria: cada capítulo é curtinho e conta algum acontecimento pelo qual a
autora passou em seu trabalho na indústria funerária, ao mesmo tempo em que
levanta algum tipo de reflexão a respeito do modo como nós ocidentais lidamos
com a morte. Aliás, tudo é bastante interessante, pois nosso contato com a
morte tende mesmo a ser mediado pela ficção, pelo sensacionalismo dos jornais e
coisas assim, de modo que, se há alguns séculos as famílias tinham todo o
trabalho de lidar com o corpo de um falecido, banhando-o e o preparando para o
enterro, hoje temos espaços específicos para a morte, quase completamente
segregados dos espaços dos vivos, não sendo necessário que nos envolvamos muito
com a morte. Inclusive, até é possível mesmo marcar uma cremação pela internet,
pagar o serviço pelo cartão de crédito e ter o menor contato possível com quem
já morreu.
Lembro do interessantíssimo A
vida e a obra de Semmelweis, que narra a trajetória de um médico húngaro do
século XIX que buscou explicações para o fato de que as grávidas de seu
hospital estavam sistematicamente morrendo de febre. Naquela situação, cada uma
daquelas mulheres tinha características diferentes e, mesmo sem ter contato
umas com as outras, elas continuavam adquirindo a doença por algum meio não
detectado. Com o tempo, depois de várias investigações fracassadas, Semmelweis
criou uma hipótese: ao notar que os médicos faziam partos e exames nas grávidas
depois que lidavam com defuntos, ele supôs que, de algum modo, a “matéria
cadavérica” (suas palavras) poderia de algum modo estar passando pelas mãos dos
médicos até o corpo daquelas mulheres e causando a doença. Em seu período
inexistiam as nomeadas “medidas profiláticas”, aquelas normas básicas de
higiene amplamente conhecidas por nós (“não ponha o dedo do nariz”, “tenha
seu próprio cachimbo de crack”, “troque de cueca pelo menos uma vez por
mês”, “lave as mãos depois de fazer xixi”, “não divida a seringa
de heroína com o coleguinha do lado”, “use meias limpas para fazer café”,
“não examine sua paciente depois de abrir o tórax de um cadáver”), além
disso, ainda não existiam instrumentos de observação que relevassem à ciência a
existência de microrganismos. Como consequência disso, quando Semmelweis propôs
aos médicos do hospital que lavassem as mãos antes de lidar com as mulheres
grávidas, ele foi tomado como um impertinente acabou sendo expulso do hospital.
Quem iria acreditar numa loucura dessas?
Do cume dos nossos olhos
“moderninhos” essa história parece estrambótica, porém as noções que temos da
morte e de nosso próprio corpo tendem a mudar de acordo com nosso lugar na
história e de acordo com nosso conhecimento a respeito daquilo que a morte
envolve. Por isso, quando toca nesse tipo de relação entre sociedade e morte, Confissões
do crematório se torna mais que um livro divertido, ele se torna também um
livro reflexivo e interessante, pois desnaturaliza um pouco o modo como vemos a
morte e mostra outras formas, geralmente mais saudáveis, como poderíamos lidar
com ela.
O movimento do livro é mais ou menos
o seguinte: enquanto a própria autora conta, numa ordem quase cronológica, o
que descobriu na indústria da morte, ela também vai discutindo seus tabus e
mostrando como eles sumiram e foram sendo substituídos por uma visão
pretensamente mais realista a respeito do assunto. Enquanto ela cresce e
aprende com o que vê, podemos também aprender e crescer com ela, com a
segurança de não precisarmos queimar cabeças humanas e corpos encontrados
boiando na praia. Evidentemente, as reflexões estão ali como um complemento de
uma narrativa que — no fundo — é entretenimento desprendido e não algo em que
vamos continuar pensando muito tempo depois de fecharmos a obra, porém, ainda
assim, elas estão lá e enriquecem nossa experiência de leitura e impedindo que a
obra seja mero aproveitamento de um tema polêmico em função de uma diversão
tola.
Carne!
Fora essa parte mitológica,
filosófica e blá blá blá, o livro aborda longamente como funcionam os trabalhos
na indústria funerária e como é o tratamento dos mortos de maneira geral.
Afinal, sobram dúvidas a esse respeito: em quanto tempo um cadáver começa a
feder? Os ossos são cremados junto com o corpo? Quais são os procedimentos da
cremação? Que tipo de morto chega normalmente a um crematório? Essas questões
geram respostas em geral bem interessantes e ocasionalmente repulsivas. A
própria autora conta um pouco de seu choque com determinadas descobertas e sua
surpresa com algumas delas. Embora ela seja uma pessoa bastante tolerante, que
consegue lidar com pedaços de corpos, cheiros nauseantes, imagens feias e
coisas que sabemos que permearão seu
trabalho, há coisas que estão além dessa expectativa inicial e que marcam sua
entrada nesse novo mundo, como a primeira vez em que tem que cremar um bebê.
Quem não ficaria derrotado num dia desses?
O que é descoberto nesse percurso
acaba mudando um pouco a trajetória de vida da autora, que de historiadora
medievalista acaba entrando de vez nas catacumbas do Hades para vasculhar o que
tem lá dentro e perder de vez suas ilusões a esse respeito. Antes que essa
imagem surja aí na mente de vocês, devo dizer que não é tanto que Caitlin seja
uma pessoa bizarra, cheia de piercings, tatuagens de Baphomet, gatos enterrados
no quintal, movida por curiosidades mórbidas, na verdade, tirando por uma coisa
ou outra, ela aparenta ser uma pessoa bem comum e sem grande brilho cuja
convivência com aquilo que normalmente somos privados, faz com que ela perca o
medo e o nojo da morte e comece a aceitá-la com mais naturalidade, sem tantas
neuras e medo. Em alguma medida, acho que o percurso da autora poderia ser
saudável para diversas pessoas, inclusive eu mesmo, para naturalizar um pouco
mais a morte em nossa vida. Talvez isso diminua um pouco o peso que ela tem
quando aparece ou, ao menos, a torne mais fácil não de entender mas de aceitar.
Mais ou menos duas vezes por ano,
meu professor de Filosofia do Renascimento na graduação, marcava aulas no
laboratório de anatomia para explicar na prática como foram feitos os trabalhos
de Da Vinci. Sua intenção era mostrar como os corpos utilizados nos desenhos do
autor, por onde começavam as secções e, enfim, ilustrar com os cadáveres aquela
montanha de coisas interessantes que o Da Vinci produziu. Por conta de greves e
coisas assim, no entanto, essas aulas não foram dadas nos anos em que
frequentei a universidade, mas sobreviveram com carinho na memória de quem fez
parte delas, não pelos defuntos, obviamente, mas pela proposta ousada do
professor de trazer algo mais que livros e palavras para a experiência dos
alunos. Graças à Confissões do crematório, fico pensando que a ausência
dessa experiência talvez não seja uma lacuna na minha formação universitária,
mas uma pequena lacuna em minha vida.
Vale
a pena morrer?
Se vale a pena ou não, amiguinhos e
amiguinhas, acho que pouco importa, já que não temos muita escolha a esse
respeito de morrer ou não, contudo, temos a escolha de pensar se vale a pena ou
não viver e isso, a meu ver, já está de bom tamanho, pois, se não podemos mudar
nossa morte, podemos ao menos mudar nossas vidas.
Confissões do crematório é um
livro bacana e interessante, que fornece pequenas doses de indústria funerária
junto com pequenas reflexões sobre a morte, numa mistura harmônica e agradável.
Quer dizer, se você não ligar muito para aquelas descrições todas.
A edição da Darkside é primorosa
como todas as outras que tive a oportunidade de ler, seguindo sua orientação de
tornar a estética do livro tão atrativa quanto o conteúdo. A capa é pintada em
vermelho, simulando as chamas do crematório (ou seria do inferno?), com
gravuras de corpos no interior do livro. Tudo muito belo, parecendo ter sido
feito para se colecionar.
O resultado final é um livro ágil e
divertido sobre um tabu, que ao mesmo tempo não pretende uma digressão pesada a
respeito dele. Às vezes, a leveza é justamente o que é preciso para encarar
algo assim tão denso.
A cada resenha fico co mais vontade de ler esse livro! Gostei muito do blog!
ResponderExcluirAbraços!
http://leitorprolixo.blogspot.com.br/
Obrigado, João.
ExcluirÉ um livro bacana sim e tem um conteúdo que não é vazio. Foi legal ler.