Você
se sente sozinho? As vezes acha que não tem ninguém ao seu lado e tem que resolver
os problemas por conta própria? Você já perdeu a única pessoa que parecia ter
algum valor? Você tem amigos? Como você extravasa essas frustrações
existenciais? Você já pensou em matar algum animal ou alguma pessoa pra descontar sua
raiva? Como você lida com a solidão?
Eu
realmente espero que você lide essas questões com um psicólogo, e não com a Fábrica
de Vespas...
“Uma morte é sempre
excitante, sempre faz com que você perceba quão vivo e vulnerável está, mas
quão sortudo é. Mas a morte de alguém próximo dá uma boa desculpa para que você
fique um pouco doido por um tempo, e faça coisas que de outro modo seriam indesculpáveis.
Que maravilha seria agir feito um alucinado e ainda assim ganhar a simpatia de
todos!”
Título original: The wasp factory
Autor: Iain Banks
Ano: 1984
Editora: Darkside books
Páginas: 233
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Frank é um garoto de 16 anos que
vive junto com seu pai em um pequeno vilarejo de uma ilha escocesa. Afastado da
cidade grande, sem amigos e sem muita coisa pra fazer, ele passa seus dias,
acompanhado de seu fiel estilingue, praticando um dos seus únicos hobbies:
matar.
Filho de vespa, vespinha é
O
livro é narrado pelo próprio Frank, então conheceremos esse universo em que ele
vive a partir de seu próprio ponto de vista, o que é interessante por permitir
que o leitor tenha certa proximidade com o narrador, algo que seria difícil
caso o livro fosse narrado por terceiros, uma vez que mudaria completamente a
forma de tentar compreender o protagonista e suas atitudes.
Calma,
não estou dizendo que você vai passar a concordar com as atitudes dele nem nada
do tipo, pois e impossível defendê-lo, mas que quero apresentar aqui uma visão
mais ampla e menos determinista, para em vez de vermos apenas as suas ações,
vermos sobretudo a trajetória que o levou a ser essa criança problemática.
Mas
antes de entrar nessa questão, é preciso compreender o meio em que ele vive e
as pessoas que o cercam.
A
mãe de Frank o abandonou quando ainda era criança, sendo que desde então ele
passou a viver só com o pai e com o irmão. Seu pai é um tanto quanto
excêntrico, pra não dizer outra coisa: ele é um cientista que tem obsessão pela
forma e medida das coisas, e espera que os outros também saibam, como, por
exemplo, a medida de cada azulejo e quantos deles são utilizados para compor a
parede de casa, etc. Já o seu irmão está preso em uma clinica psiquiátrica
devido a alguns eventos que serão contados no decorrer do livro, mas teve uma
infância relativamente normal (levando em consideração a situação apresentada
da família) junto com Frank, tanto que ele até chegou a ir para a faculdade por
determinado período.
É
nesse ambiente isolado da Escócia, com a ausência da mãe e cercado por pessoas
nem um pouco comuns que Frank irá crescer. Aprendendo e conhecendo o mundo a
partir de uma perspectiva diferente das demais crianças de sua idade.
Nem
preciso dizer que o protagonista irá crescer um tanto quanto perturbado, né?
A singularidade da vespa
No
meu ponto de vista, uma das principais problemáticas suscitadas pelo livro,
dentre tantas que ele levanta, é a busca por uma identidade. Apesar de
elementos como violência, religião e conflitos familiares serem recorrentes, todos eles servem para explorar
um questionamento maior do protagonista: “quem sou eu?”. Ao longo da resenha
vamos compreendendo melhor o por quê disso.
Apesar
de viver com o pai, Frank não mantém muitas relações humanas, nem mesmo dentro
de casa, com isso, ele passa seu tempo buscando uma forma de se entreter que
dependesse somente dele mesmo. Durante a infância ele tinha certa proximidade
com o irmão Eric, mas quando Eric se muda para fazer a faculdade ele se vê
sozinho, uma vez que seu pai sempre está trancado em seu escritório ou fazendo
alguma coisa na cidade. A relação entre Frank e seu pai é totalmente rotineira:
eles se encontram nas refeições, trocam meia dúzia de palavras e assim seguem
sem que um interfira na vida do outro. Por isso, o protagonista, por meio de
seus atos de violência e reflexões sobre a vida, vai tentar descobrir quem ele
é, já que, ao interferir na vida de alguns animais e causar danos ao meio a seu
redor, ele se sente vivo. Sem esses atos ele passa a não existir nem mesmo pra
si, do mesmo modo que não existe (legalmente) para a sociedade.
Como
vamos descobrir logo no inicio, Frank é uma espécie de fantasma para o sistema.
Devido a uma fase Hippie do seu pai, ele decidiu que não iria registrar o filho
legalmente e que iria criá-lo a partir de métodos diferentes do convencional,
em que ele teria sua educação pautada mais na natureza que em formulas
acadêmicas. Sendo assim, Frank não pode frequentar a escola e nem mesmo outros
programas sociais, limitando a sua vida geograficamente e socialmente.
Sem
contato com pessoas diferentes, com exceção de seu único amigo – um anão com
quem ele se encontra regularmente pra beber na cidade, ele busca refugio pro
marasmo de sua vida na violência diária, porque é o único momento em que ele
sente não apenas ter controle sobre a própria vida, mas também ser capaz de
influenciar a vida do outro. No fundo, ele não tem controle sobre seu próprio
“eu”, posto que as escolhas de seu pai limitaram sua vida em diversos sentidos.
Com a falta de uma educação formal, uma limitação do ir e vir, uma criação
diferente das outras crianças, ele acaba sendo um experimento do seu próprio
progenitor. Sem todos esses elementos que lhe foram privados, sua vida está
limitada àquela ilha, já que não existe futuro em qualquer coisa que exceda
suas fronteiras. Como consequência disso, as atitudes do rapaz, de certo modo,
são um reflexo daquilo que ele inconscientemente sente em seu dia a dia, a
violência é apenas uma forma de extravasar suas frustrações, mesmo que muitas
vezes o próprio personagem não compreenda isso.
O passado e o presente obscuro
A história começa quando Frank fica
sabendo que seu irmão Eric fugiu da clínica psiquiátrica e está foragido, em
função disso, o protagonista fica um pouco perturbado com as lembranças do irmão,
uma vez que Eric foi a única pessoa com quem Frank teve certa aproximação e
admiração, tanto que ele fica chocado ao descobrir que o irmão irá sair de casa
para ir cursar uma faculdade em outra cidade. A agitação de Frank com a noticia
aumenta ainda mais quando ele começa a receber ligações estranhas de Eric, que
são sempre confusas e dão a entender que ele está se aproximando da ilha para o
encontro com o pai e o irmão.
A partir dessas lembranças do irmão
e desse desconforto causado por essas ligações, o protagonista começa a
rememorar o passado e compartilhar com o leitor algumas situações de sua vida
que contribuem para compreender cada vez mais os fatores que levaram Frank a se
tornar aquilo que ele é. Outro ponto que tem grande importância para a trama, e
que sempre despertou curiosidade no personagem, é o escritório de seu pai,
Angus. Desde o início vamos saber que o escritório é uma área proibida para
Frank, tanto que seu pai sempre deixa a porta trancada, mas sempre que ele sai,
Frank vai lá conferir se ele não esqueceu a porta destrancada para dar uma
espiada e descobrir qual é o segredo que seu pai guarda.
Assim, a história vai avançar a
partir do passado (por parte do irmão) e do presente (por parte do pai). Se por
um lado o protagonista tenta relembrar os fatos marcantes de sua vida e
compreender os mistérios que o cercam, por outro ele tenta lidar com os
segredos que seu pai esconde e com a figura do irmão que parece ter voltado
para assombrá-lo. E é nessa mistura entre passado e presente que vamos
adentrando na historia desses três personagens e percebendo que o ninho de
vespas é muito maior que aparenta.
Psicopata???
Nas resenhas que eu li sobre Fabrica de
Vespas há um tópico que é predominante em quase todas elas que é a
psicopatia do protagonista. Bem dizendo, é totalmente compreensível o porquê
disso, afinal estamos lidando com um jovem que tem como principal passatempo
matar animais e, como você vai descobrir ao longo da narrativa, ele já matou
algumas pessoas. Entretanto, particularmente, durante a leitura, não pensei em
Frank como um psicopata.
Calma lá, antes que você venha me
tacar pedras e me chamar de “anticristo comunista satanista defensor de
bandido”, não estou absolvendo o protagonista de seus crimes, pelo contrário, é
mais do que perceptível que ele não bate bem das ideias. Contudo, no meu ponto
de vista, o problema de Frank não é algo patológico, mas sim social, mais
especificamente familiar.
Levando em consideração sua família
desfuncional (um pai excêntrico, mãe ausente e um irmão que está internado),
sua falta de interação social devido ao isolamento (em seus vários sentidos),
os traumas que ele passou na infância (abandono da mãe, afastamento do irmão,
um acidente que causou danos a seu corpo), sua maior proximidade com a natureza
do que com a sociedade e sua falta de uma identidade própria, é totalmente
compreensível esperar um “desvio” comportamental de uma pessoa que cresça
nessas condições. Não é possível querer que Frank seja um garoto assim como
todos os outros se ele não vive da mesma maneira, e nem mesmo se relaciona com
ninguém para ter uma referência em que se basear. Sua vida, seus valores e sua
educação se dão a partir de referenciais diferentes, e é impossível que se
espere dele um comportamento “normal”, provindo
de uma sociedade que ele desconhece.
Não estudo psicologia e não sou
qualificado pra falar sobre psicopatia, mas me parece que esse conceito não
pode ser aplicado a Frank porque ele está a margem disso. Seu comportamento não
está relacionado a algo psicológico (aparentemente) mas a uma criação diferente
daquilo que se é esperado. Você pode até argumentar que ele é criado com o pai,
que já recebeu visita de um familiar ou outro e visita a cidade de vez em
quando, entretanto, ele não pertence à aquele lugar e não existe ali. Frank não
tem o mesmo contato e nem a mesma sensibilidade que as outras pessoas tem o
mundo, sendo impedido a fazer qualquer coisa que esteja fora daquele microcosmo
que ele habita. Deste modo, ele acaba criando a sua própria estrutura social
(justiça, religião, cultura, arte...) dentro daquele universo que ele conhece,
que é a natureza.
Welcome to the jungle, baby
Como Frank não pertence à sociedade
e não foi criado para viver como as outras pessoas, ele busca, inconscientemente,
um lugar onde possa se sentir bem, ser relevante no meio, ter relativo poder e
não ser um simples excluído. E esse lugar é a natureza nos arredores de sua
casa.
Apesar de ele viver numa casa normal
com seu pai, com objetos do cotidiano de qualquer pessoa da época, fica claro
que ele não se enquadra naquele ambiente, ele pertence a uma estrutura que ele
mesmo criou, dando mais importância para objetos simples e rudimentares (como
seu estilingue) ou, até mesmo, coisa criadas por ele (como a máquina de vespas)
do que para os aparatos tecnológicos tão cobiçados por jovens de sua idade.
Boa parte do seu tempo é gasto numa
espécie de esconderijo criado por ele, adornado por cabeças de animais
empaladas e objetos que tenham algum significado, no qual o protagonista pensa
nas coisas do passado e planeja o que irá fazer no resto do dia. O mais
interessante é que a partir dessas coisas ele vai criando um modo de vida, que
por mais simplório que possa parecer de fora, tem sua complexidade. Da mesma
forma que a minha vida e a sua é baseada em diversos valores, a de Frank também
é.
Frank não é um garoto da cidade, mas
ele também não é um garoto selvagem. Desde criança ele foi criado dentro de uma
casa, com comodidades e artigos tecnológicos, ao mesmo tempo em que cresceu
tendo mais contato com a natureza do que com outras pessoas. E isso vai ficando
claro conforme a leitura porque ele está em um meio termo, e isso vai moldando
sua personalidade. Ele tem o conceito de certo e errado, o que é crime e o que
não é, e coisas assim, mas dentro da natureza, o local em que ele passa a maior
parte de seu tempo, esses pressupostos não fazem tanto sentido. Por isso, ele
acaba adaptando tais questões para sua própria realidade, e vivendo de acordo
com a perspectiva que ele mesmo foi criando ao longo da vida.
O curioso disso é que vez e outra
ele entra em contradições que, embora sejam notórias, dentro de seu contexto e
da sua lógica fazem total sentido. Um exemplo disso é que em determinado
momento do livro ele sente pena de um cachorro que foi maltratado, sendo que
seu principal passatempo é caçar animais. Fora de contexto pode parecer
hipócrita e sem sentido, mas dentro da cabeça do personagem é algo logico, e
você sente isso.
A grande maluquice do livro é que
somos conduzidos pela história por um protagonista totalmente fora dos padrões,
que mata animais, já cometeu assassinatos, não é das pessoas mais simpáticas, e
mesmo assim nunca estamos 100% com raiva dele. Em alguns momentos sentimos dó
ou, até mesmo, rimos de suas piadinhas sarcásticas.
Isso me leva a duas suposições: ou
ele é mesmo essa pessoa perdida e acabamos nos sensibilizando apesar do seu
currículo nada amigável ou ele é, de fato esse psicopata e está manipulando
todo mundo, afinal, o livro está em primeira pessoa, e como já cansamos de
falar, o narrador nunca é confiável.
As engrenagens da fabrica
Como foi dito, o protagonista vai
construindo seus próprios valores a partir das experiências e da vida que leva,
sendo que uma das coisas mais interessante a esse respeito, que não pretendo
expôr em muitos detalhes, é a fábrica de vespas.
Angus, o pai de Frank, tem um
problema na perna que o impede de subir escadas, com isso, o protagonista se
apropriou do sótão para usar como refúgio, guardando lá as coisas que ele não
quer que seu pai encontre e utilizando o lugar para construir sua fábrica.
Desde o início da narrativa
escutaremos falar da fábrica de vespas, mas é só perto do final que vai ser
revelado a sua função e como ela trabalha, então não vou falar muito para não
dar spoiler, mas a questão central, que é muito mais importante do que
seu funcionamento, é a sua importância e o simbolismo na vida de Frank. Em
diversos momentos o protagonista irá citar a fábrica como local onde vai buscar
conselhos e respostas, ela é, de certo modo, toda a estrutura do seu modo de
vida. Sem a fábrica, a vida de Frank perde muito do seu sentido.
No início da leitura, não será muito
clara a sua importância, mas conforme você vai conhecendo o personagem e
observando suas ações, o impacto na vida do personagem fica evidente. É como se
a fábrica assumisse o papel da religião e, de certo modo, da justiça na vida de
Frank. Como ele tem maior contato com animais e insetos do que com pessoas, ele
acaba recorrendo a um artefato externo, já que animais não falam e as pessoas
que ele conhece o julgaria, para buscar as respostas ou previsões que ele não
encontra.
Então mesmo percebendo a sua
importância, é só quando ele explica o funcionamento que você vai ligando as
peças e compreendendo que a fábrica de vespas é algo muito além do que um
objeto criado por um jovem problemático.
Devo entrar nesse ninho de vespas?
Por ser narrado em primeira pessoa e
por ter um protagonista que tem uma vida e uma percepção completamente
diferente da sua (pelo menos assim eu espero), Fábrica é um livro que
vai te causar incomodo do início ao fim. Tudo nele é muito cru: o protagonista
joga coisas pesadíssimas em sua cara, como assassinatos e tortura de animais,
sem demonstrar o mínimo de remorso ou sentimento, como se ele estivesse
narrando algo completamente normal, assim como falaria sobre preparo de uma
xícara de café. E é exatamente isso que faz o livro funcionar tão bem.
Quanto à história, apesar de ter uma
premissa simples, ela está sempre te surpreendendo. A cada descoberta sobre o
passado do protagonista mais interessado você fica em querer saber o resto dos
detalhes, e é partir dessas peças que vão sendo dadas que você vai tentando
juntar para descobrir o grande mistério que permeia toda a trama. O mais
engraçado de tudo é que quando você se aproxima do final você já montou
diversos desfechos na sua cabeça (alguns até mais doentios que o do livro), aí
o autor joga na cara algo completamente diferente mas que faz todo o sentido, e
você vai lembrando de todos os momentos que ele deu “pistas” sobre essa
conclusão e se pergunta “como não pensei nisso? ”. Outro ponto quanto ao
desfecho que também me agradou foi o fato dele saber a hora de parar e não
entregar todas as respostas. Algumas questões ficam abertas, mas elas são mais
importantes e emblemáticas não sendo respondidas.
Por fim, se você leu até aqui a
única coisa que me resta a dizer é: leia. É um livro curto mas que tem bastante
personalidade, levando o leitor a refletir sobre diversas questões ao mesmo
tempo em que entretém e/ou causa repulsa naqueles que tem o mínimo de
sensibilidade.
A edição da Darkside,
recebida em parceria, está incrível como sempre: a capa é simples, porém bem
impactante (há uma vespa em baixo relevo no canto superior que dá um charme a
mais para o livro). Além dos detalhes já conhecidos e do padrão de qualidade, o
livro também traz um prefácio do próprio autor falando um pouco sobre o livro e
sobre o início dele na literatura, já que fábrica de vespas é o seu primeiro
romance publicado.
Então, caro leitor, venha visitar
esse ninho de vespas, mas não se aproxime muito...
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