quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Literatura: O último adeus (Cynthia Hand)


            Quanta sofrência cabe aí dentro do seu coraçãozinho apodrecido, caro leitor do Café? Uma xícara? Duas? Um bule inteiro e umas gotinhas de adoçante? Quem sabe trezentos e cinquenta páginas de pura depressão melancólica, enegrecida, lodosa e mal cheirosa para você sair por aí atraindo morcegos e urubus com sua aura amargurada?



            “Como qualquer outro bilhete de suicídio, foi curto e direto ao ponto. Estava escrito:
            Desculpa, mãe, mas eu estava muito vazio.
            Ele não escreveu um bilhete ao nosso pai. Nem a nenhum de seus amigos. Nem a mim. Só deixou essas sete palavrinhas em um post-it amarelo, colado no espelho do quarto. Sua única explicação.
            Ainda está lá


Título original: The last time
we say goodbye
Autor: Cynthia Hand
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Páginas: 352
A superficialidade do abismo

            Depois do suicídio de seu irmão caçula, Lex aceita a recomendação de seu terapeuta de começar a escrever um diário para lidar melhor com seus sentimentos. A trama apresenta parte desse processo de cura e desenvolvimento psicológico a partir do que ela escreve nesse diário.

A superfície é supérflua?
(umas palavrinhas sobre crítica literária...)

            Existe certa vertente da crítica literária que, em linhas bem gerais, valoriza o quanto um texto se estende para além da simples literalidade ou, em outras palavras, quantas camadas de significados há nele para além daquilo que está meramente escrito.
            Por exemplo: quando um poeta como o Manuel de Barros diz algo como: “Bernardo já estava uma árvore quando eu o conheci/ Passarinhos já construíam casa na palha do seu chapéu/ Brisas carregavam borboletas para o seu paletó” podemos interpretar que esse poema diz respeito a uma pessoa – real ou fictícia – cujo nome é Bernardo. Essa é uma leitura óbvia e fácil de realizar, que toca o sentido mais literal das palavras e pode ser concluída a partir de uma única leitura do poema. E não está errada, embora se restrinja ao que está colocado mais superficialmente no texto.
            Apesar de podermos ler “Bernardo” assim, esse texto também se presta à vários tipos de aprofundamento. Caso queiramos ir além da literalidade do texto e tenhamos atenção aos verbos, à colocação dos termos, entre outras coisas, poderemos perceber que as palavras do poema foram dispostas de maneira a expressar outros significados que podem ser desvelados por essa leitura mais detida. Quando realizamos uma leitura assim, bem mais difícil e lenta, o  poema se torna outro que, aliás, é muito mais rico e complexo que aquele do começo, pois suas palavras e relações passam a suscitar diversos outros sentidos, postos para além da literalidade das palavras. Aí, o “Bernardo pessoa” pode até desaparecer e virar outra coisa, completamente diferente, sendo que a resposta para a pergunta sobre quem ou o quê é Bernardo pode depender do quão longe o leitor está disposto a ir na interpretação do poema.
            Textos como esse, “não literais”, mesmo quando apreciados logo de cara, têm muito mais a oferecer que uma única leitura possa revelar, sendo por isso que tanta gente se dedica a abordar longamente obras densas e a investigar as várias possibilidades interpretativas que elas suscitam. Por sinal, Manuel de Barros é um ótimo exemplo de escritor que permite várias leituras, já que podemos ler qualquer poema seu e o achar “gostoso” e “acessível” sem sequer notar que eles também se presta à leituras sofisticadíssimas, bem mais difíceis de realizar.
            Mas nem todos são Manuel de Barros.
            Existem (muitos) textos que não possuem toda essa densidade interpretativa e cujo sentido se encerra numa única leitura. Há textos que quando dizem Bernardo estão mesmo tratando de um rapaz chamado Bernardo e não há outro sentido a ser encontrado aí. Textos assim – “literais” – têm significados que não vão além do sentido mais imediato posto por suas palavras.
            Com isso, se para analisarmos textos profundos temos que mergulhar em sua dificuldade e passear longamente em suas cavernas obscuras, tentando iluminar o que existe lá, para analisarmos textos superficiais, temos que considerar essa mesma superfície em que eles se desenvolvem, já que nada existe para além dela. É preciso escorregar nessa superfície e ver aonde ela nos leva.



(Não) reconhecimento?

            Antes que tomates voem na direção deste blogue, devo ressaltar que ao fazer essa distinção entre “textos literais”  e “não literais” (que é totalmente artificial, é bom que se diga, eu só a estou usando para vocês me entendam) eu não quero, de nenhum modo, inventar aqui uma hierarquia de valor entre o que é bom e profundo e o que é ruim e superficial, pois todos sabemos que o superficial pode ser magnífico e o profundo uma porcaria. Nem vou citar exemplos. Na verdade, ao fazer essa distinção, quero apenas ressaltar que obras diferentes pedem análises diferentes e que pretendo me adaptar a isso ao fazer esta resenha.
            Quando recebi pela parceria com a Dark Side O último adeus aqui em casa, essa questão da literalidade foi a primeira que me coloquei e, basicamente, será ela que orientará esta resenha.
            Dito isso, penso que o melhor motivo para considerarmos que essa obra não deve ser analisada como um livro que ultrapassa sua própria literalidade é bem simples: a narrativa da obra não suscita quase nada além daquilo que está em suas próprias palavras, quer dizer, quando a protagonista diz “eu amava meu irmão” ou “fui pegar um pudim na geladeira” ela só quer dizer isso mesmo, que amava o irmão e que estava com fome. A geladeira não é uma metáfora para a condição humana, nem o irmão é uma alegoria dos nosso afetos ou coisa assim. Não há grandes mistérios por detrás daquilo que a narradora diz e o livro transcorre inteiramente sobre as linhas do papel.
            Uma consequência que surge daí é que a mensagem contida na obra se torna imediata e fácil de pegar. Como não existe muito o que ponderar a respeito do livro, podemos ler O último adeus rapidamente e sem a necessidade de retomá-lo ou de repensá-lo repetidamente, além disso, também não surgem dúvidas sobre a validade das palavras da narradora (como poderia existir se ela fosse mentirosa ou confusa), e vamos vencendo páginas e mais páginas da verborragia infinita que ela mantém sobre si mesma sem nem mesmo sentirmos tédio sobre isso, pois o livro flui. Inclusive, aí está sua força, é uma obra gostosa e fácil de apreciar.
            Se num texto “não literal” nos defrontamos comumente com aquilo que é esquisito, com uma linguagem difícil ou incomum, com personagens densos que não são imediatamente compreensíveis, com tramas repletas de referências, sutilezas difíceis de pegar, e assim por diante, nesse livro existe um tremendo esforço por parte da autora em não nos demover um centímetro sequer de nossa zona de conforto. O último adeus nos dá poucos sustos. Durante as mais de trezentas e cinquenta páginas do livro não somos apresentados a muitas informações sobre assuntos que desconhecemos, não lemos sobre descrições psicológicas que sejam densas ou tão singulares que nos causem estranheza, também não acompanhamos uma história que fuja muito às nossas expectativas, e nem mesmo encontramos uma linguagem que cause qualquer surpresa – todo o livro é bastante coloquial e descomplicado.
            E digo tudo isso sem preconceito ou nariz torcido, o livro é bem gostoso.
            Essa fluidez da obra, porém, não está ligada só a sua literalidade, mas também ao esforço da autora de fazer com que exista reconhecimento entre nós leitores e a narradora. A estratégia de Cynthia Hand é atrair o leitor pela simpatia e pela compaixão, fazendo com que ele se reconheça na dor da personagem e sinta piedade dela. O formato de diário, que coloca o leitor diante dos pensamentos mais cotidianos e sinceros da personagem (sobretudo sua tristeza), funciona muito bem nesse sentido, pois a melancolia de Lex serve para nos desarmar, aproximando-nos dela e fazendo com que sejamos benevolentes para com a personagem.
            Ademais, como a literalidade da obra não permite grandes aprofundamentos ou estranhamentos, o livro transcorre nas camadas mais imediatas dos pensamentos da protagonista, colocando-nos diante das necessidades mais cotidianas da personagem. Todas as banalidades  comuns ao dia a dia dela – aliás, comuns ao dia a dia de todos – passam a ser compartilhadas conosco, e vamos entendendo a personagem e desenvolvendo certa familiaridade com ela por estarmos, de certo modo, também vivenciando sua vida.
            Aquela sensação de “ah, eu também”, “eu te entendo, amiga” é bem comum no correr da leitura e faz parte da armadilha literária de O último adeus – cuidado, leitor!



Criticando

            Como já ressaltei aí atrás, a literalidade da obra está amarrada à imediaticidade dos pensamentos da personagem, à fluidez da leitura e outras coisas mais. No geral, esse nó todo funciona muito bem e me divertiu bastante, mas ele tem também algumas pontas soltas que eu gostaria de tocar.
            Uma delas é a pouca engenhosidade do livro. Não há muita inventividade nem na personalidade na protagonista, nem na forma da escrita. De um lado, Lex tem pensamentos bastante lineares os quais pouco desviam a trama para o inesperado. De outro, a autora escreve com uma linguagem restrita e que não expressa senão o mais óbvio, além de usar poucos recursos literários e gramaticais. Exceto pelo aposto. Desse recurso ela abusa. Muito.
            Sobre essa questão da linguagem, aliás, fiquei com a impressão de que a autora deve escrever todos os livros do mesmo jeito. Com alguma benevolência, talvez fosse até possível dizer que essa limitação é, na verdade, um artifício para simular as capacidades próprias de uma jovenzinha sem tino literário, entretanto, mesmo outros personagens também estão limitados da mesma forma (o irmão suicida escreve igualzinho a ela, por exemplo), o que mostra que a limitação é da autora e não da personagem.
            O outra ponta solta do livro deriva do fato de que tudo na obra conduz à interioridade da personagem. Estamos lendo o diário dela, os pensamentos imediatos dela num momento de tristeza e isolamento, e justamente no momento em que ela se afastou de todos os amigos, em que sua família está devastada e pouco se relaciona com ela, e assim por diante, sendo que esse recuo para dentro de Lex faz com que outros personagens tenham pouco peso na trama como agentes de suas circunstâncias. Eles tendem a parecer conceitos sem personalidade, como se a protagonista não conseguisse lhes dar substância, ou como se eles não fossem pessoas propriamente. De maneira geral, Lexy pouco fala dos outros com interesse; ela os descreve como se soubesse exatamente quem são e, igualmente, dá a entender que eles são menos complexos que ela e mais fáceis de entender. Em função disso, o que tais personagens dizem ou fazem na história pouco altera o modo de pensar da protagonista e não lhe abre outros pontos de vista. A trama sempre parte das ações de Lex e da imagem que ela tem dos outros, que segue inquestionável por quase toda a obra.
            A autora deixa poucas brechas para pensarmos que a protagonista pode apenas estar sendo injusta ou imatura por achar que sabe o que precisa saber dos outros e que ela mesma é super complexa e inteligente. Tudo acaba por ficar por demais “ensimesmado”, digamos assim, e, algumas vezes, entre uma página e outra, bate aquela vontade saudável dar uns tabefes nessa menina mimada e egoísta.
            Particularmente, penso que tais problemas se devem ao fato de que Cynthia Hand faz parte de um grupo de escritores – muito popular hoje em dia – que não são propriamente literatos, mas “pessoas comuns” encontrando expressão numa literatura que também não tem os requisitos daquela dos livros mais densos. Por isso, a simplicidade, a superficialidade e todas essas coisas não são só um recurso, mas também o único modo pelo qual tais autores conseguem se expressar.
            O último adeus foge de simbologias muito densas e tudo o que está nele é óbvio e explicadinho, de modo que não há perspectivas sinuosas, dúvidas, ou mesmo a necessidade de retomar o que é lido, já que sua compreensão é imediata e o livro se esgota na fruição de cada letra. Porém isso não é um problema; é apenas uma característica do tipo de literatura de que ele faz parte. Dizendo de outro modo, esse livro pretende ser tal como é, e caso você esteja em busca do tipo de experiência que ele oferece, provavelmente gostará do que irá encontrar.



A leitura vale a sofrência?

            Consideradas essas coisas todas, acho que dentro de sua proposta O último adeus é um livro bacana: ele é gostoso e fluído, atraindo-nos por meio de descrições simples de situações comuns que nós frequentemente vivenciamos. É um livro sobre o dia a dia e sobre encontrar motivos para continuar existindo. Além disso, aqueles que gostam de obras que abordem os desconfortos de todo adolescente com a própria pele ou com o lugar que ocupa no mundo, encontrarão aí um bom entretenimento também, pois a obra toda tem uma aura teen.
            Aliás, a edição da Dark Side tenta transmitir isso. Embora seja menos impressionante que outros livros do catálogo, ela combina bem com a temática do livro, tendo capa dura, diagramação azul que imita a escrita em caneta no diário, marcas de caneta em todo o interior (como se alguém tivesse rabiscando freneticamente os espaços em branco), fita de cetim para marcação de página e um bloquinho de post-it para você deixar suas próprias mensagens aterrorizantes pela casa.
            Apesar da morbidade do tema que leva toda a trama adiante, como nada é explorado com muita penetração, a leitura segue de maneira confortável e rápida, sem nos derrubar com aquela densidade toda que esse tema carrega, o que é algo bem curioso para um livro que é basicamente sobre sofrimento e suicídio. Por isso, caso você esteja aí com medinho, saiba que não estamos nem perto de um novo Werther, contudo, embora a superfície de O último adeus seja mesmo supérflua, ela não é vazia ou obtusa. Muitas coisas boas e interessantes podem ser vistas na superfície de um espelho.

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