segunda-feira, 2 de maio de 2016

Resenha: A banda maldita (Black roses)


            Vocês gostam de rock? Vocês vestem preto e bebem sangue de boi em cima de uma covinha de vez em quando? Vocês já balançavam a cabeleira no “estilo Joelma” antes mesmo da Joelma surgir? Já davam umas palhetadas nervosas antes do Ximbinha?
            Então cliquem aí no link, amiguinhos rebeldes, pois vamos discutir rock, conservadorismo, contracultura e mainstream, tudo ao som do heavy metal. 





Título original: Black roses
Lançamento: 1988
Duração: 88 minutos
Direção: John Fasano





A banda maldita
Contracultura e mainstream

            A banda maldita foi uma feliz surpresa que tive dentre os últimos filmes que vi. É que embora o cinema trash seja bacana, ele frequentemente exagera na dose e gera uma experiência um pouco cansativa também; contudo, com A banda maldita eu me diverti bastante e, antes mesmo que notasse, o filme já tinha acabado.
            No geral, tive uma percepção bastante favorável do filme. Ele tem uma direção muito bem dosada e cenas que não fogem a certo equilíbrio que dá coerência ao filme, além de ter um senso de humor bem próprio que, em vez de tentar nos ofender com suas grosserias, como é comum no trash, ele tenta rir conosco das bobagens que apresenta. No fim das contas, trata-se de uma obra que explode a si mesma e deixa para trás um leve sorriso no espectador, um resto de sarcasmo que, penso, é mais que suficiente para pagar o ingresso.

Qual é o repertório?

            A banda Black Roses – que é alguma coisa entre o Judas Priest, o Guns'n Roses e o Whitesnake – decide  fazer sua primeira aparição pública justamente na cidadezinha de Mill Basin, que é uma espécie de fenda do Judas no interior dos Estados Unidos. Após o anúncio do show, entretanto, a associação local de pais, religiosos hipócritas e pessoas que não transam, decide se unir para tentar evitar o show ou, ao menos, alertar os jovens dos perigos do rock. Afinal, como todos sabem, rock é coisa do capeta. Ou será que não?

É música do demo sim

O diabo é o pai do rock. Então é very god rock
(Rock do diabo, Raul Seixas)

            Bem, pelo menos, é do demo no filme. Depois que a Black Roses se apresenta na cidade, os jovens passam a apresentar comportamentos estranhos: eles transam despojadamente, cometem atos de violência e adquirem gostos medonhos de moda, algo que, convenhamos, não é nada assim tão diferente de qualquer movimento cultural que encontramos por aí que, ao trazer inovações estéticas interessantes, traz também perversões indesejadas. Como diria o Dado Dolabella, com palavras ligeiramente diferentes das minhas, cedo ou tarde alguém trai o movimento.
            Mas há mais que isso nessa história. A Black Roses não é apenas a nova moda do verão que faz os jovens dançarem de forma ridícula e cantar canções ruins, para falar a verdade, a trilha sonora é bem bacana e os hits da Black Roses são agradáveis, contudo, a Black Roses traz um complicador: ela é mesmo do capeta. Suas canções não só influenciam os jovens como uma moda qualquer, como também os levam a cometer atos insanos e até a se transformarem em monstros de verdade. Não é metáfora. Por conta disso, o conjunto representa um perigo real à juventude à medida em que a faz colocar vidas em risco. É aí que o assunto fica interessante.
            Se pensarmos um pouco a esse respeito veremos que a sedução dos jovens pela banda explicita o quão frágil e desinteressante é o modo de vida deles. Logo depois que a banda faz o primeiro show, por exemplo, os adolescentes ficam apáticos, quase como zumbis – seria porque tiveram que voltar para suas vidinhas sem graça e nunca mais viverão nada excitante? As inquietações normais da idade parecem ter poucas respostas no filme e o destino da mocidade dentro de uma cidade no meio do nada parece claro para cada um, conquanto seus pais falem deles com esperança. Se a cidade nada tem a oferecer, porém, que futuro os pais esperam dar aos filhos? De modo geral, o conflito representado no filme é esse entre jovens e adultos: de um lado,  temos uma cidadezinha situada no nada e um bando de adolescentes buscando contra o que se revoltar, vendo num show de rock uma espécie de esperança ou luz no fim do túnel da vida insossa que levam; de outro, pais que casaram por casar, procriaram por procriar e que agora cuidam dos filhos como se cuidassem de bichos, dando um chute neles de vez em quando para que calem a boca. Nada muito inédito em nossa vizinhança, por sinal, porém basta se debruçar sobre isso um instante para encontrar bons motivos para questionar esse tipo de coisa.

O rock na contracultura



Somos pessoas de igreja e respeitadoras da lei

            Quando uma banda abre as portas do inferno, deixando escapar alguns demônios e transformando os jovens em asseclas que obedecerão suas ordens nefastas, temos então um bom argumento para nos opormos ao rock. É nessas horas que os pais querem levantar seus cartazes contra a guitarra elétrica, que os filhos entram com fervor no catecismo e assim por diante.
            Bem dizendo, essa é uma reação perfeitamente normal ao medo de que o outro traga o mal, mas ao mesmo tempo, essa reação mostra que isso que se teme não se faz sozinho, quer dizer, o mal não é imposto à ninguém, porém se faz a partir da conivência das pessoas. É preciso adotá-lo para que ele se faça. O medo que os pais tem da banda e, genericamente, de qualquer forma de contracultura, mostra que, mais que temer um grupo de rock, eles temem os próprios filhos e aquilo que eles podem vir a se tornar quando entrarem em contato com essa contracultura. Por isso, quando vemos no filme que o discurso dos pais pinta o mal como se fosse algo completamente externo ao seu modo de vida, alguma coisa trazida pelos outros mas que não tem existência prévia dentro dessa comunidade, é simples ver que estão mentindo ou enganados, afinal, se não existisse nenhuma sementinha de mal no modo de vida dessas pessoas, não seria possível que a banda o influenciasse porque ele seria inteiramente bom. Mas há espaço para o mal, há vontade de experimentar algo diferente do que as pessoas vivem em Mill Basin, e os pais sabem disso; eles próprios sentem ou já sentiram isso também.
            A respeito disso, durante uma aula de literatura, o professor levanta um questionamento para os alunos baseado num poema: o mal é aquilo que consideramos ser mal? Ou há coisas que sejam intrinsecamente más? Para os conservadores da cidade, o mal (e, consequentemente, também o bem) existe de forma absoluta: coisas como o rock e a pornografia são absolutamente más, sendo que o modo de vida da pequena cidade deve ser defendido delas. De certo modo, eles tem razão, pois a Black Roses é encapetada mesmo e está aí para bulir com a família tradicional americana, porém, o fato de que essa banda é má e realmente problemática significa que o rock – ou mesmo outras formas de contracultura – seja igualmente mau? E mais: mesmo que todas essas coisas sejam más, isso significa que a cultura de Mill Basin é essa maravilha que serve de bastião da moral? Nesse ponto, conquanto os pais pensem que sim, é difícil concordar com eles. Ninguém mais hoje está disposto a levantar cartazes contra guitarras ou mesmo a se fechar num mundinho isolado de influências externas, nem a acreditar que alguma comunidade no mundo seja pura e santificada. Todos temos as mãos sujas, ainda que seja só suor.
            Esse talvez seja um dos pontos mais interessantes do filme: os pais querem controlar os comportamentos dos jovens para que eles vivam e adotem seu modo de vida, todavia, ao mesmo tempo, eles pouco fazem por seus filhos. Todos não dão a mínima para as crianças, exceto na hora de dizer o que eles não podem fazer – há vários exemplos disso no filme: o padrasto que briga com a afilhada, mas deseja transar com ela, o pai que quer controlar o comportamento do filho mas sequer tem interesse nele e assim por diante. Nem um futuro de sucesso, nem um presente interessante os pais podem garantir ao filho: os meninos trabalharão em subempregos, as meninas serão ignorantes e fecundas, e suas crianças serão bolas de metal algemadas aos pés dos dois, impedindo-os de crescer. Trocando em miúdos (sempre quis usar essa expressão), esses pais querem apenas defender o modo como viveram a própria vida e se sentir felizes e reconhecidos sendo quem são. O medo das mudanças de comportamento podem fazer com que seus filhos descubram novas formas de vida, aliás, com que os próprios pais descubram novas formas de vida e com que se sintam ridículos ao perceberem que viveram de maneira banal.
            Logo, eles sentem que é melhor desligar o rádio, mudar a TV para um canal que mantenha seu nível geral de estupidez, queimar os hereges na fogueira e torcer para que a vida continue pobre e os filhos sejam igualmente limitados. Ou a vida pode acabar acontecendo diante deles.

O rock no mainstream

Eu tava só, sozinho!
Mais solitário que um paulistano
Que um vilão de filme mexicano
Tava mais bobo que banda de rock
(Telegrama, Zeca Baleiro)


            O rock é subversão, contracultura, uma trincheira de combate aos valores tradicionais da religião e da família tradicional americana, certo? No mínimo, é assim que ele parece no princípio do filme e no princípio de sua própria história como gênero musical. O rock veio para sacudir nossos valores e subverter nosso senso estético, tal como diversos outros movimentos culturais de bom gosto.
            Por conta disso, logo depois que vão ao primeiro show da Black Roses, os jovens de Mill Basin passam a apresentar comportamentos inéditos, como fazer sexo adoidado, cometer atos de vandalismo, se transformar em demônios e assassinar os próprios pais. Os jovens estão se transformando e novidades de todo o tipo a respeito deles chocam aqueles que estão prestando atenção na juventude.
            Mas essa transformação é curiosa, pois para exatamente aí.
            A vinda da banda gera uma mudança significativa na cidade, no entanto, logo depois dela os jovens deixam de mudar e passam a repetir em bando os mesmos comportamentos: todos vestem preto, todos obedecem à banda, se tornam luxuriosos, violentos, etc. Ao fim de tudo, eles se tornaram tão quadrados quanto seus próprios pais, mas em vez de se ajoelharem diante de uma cruz, ou de desligarem o cérebro em frente a TV, fazem isso em frente a um bando de cabeludos vestidos em couro. Tão quadrado quanto.
            Se o rock era, a princípio, a contracultura que subverteu Mill Basin, logo depois de ser assimilado ele se tornou apenas mais um elemento da cultura local. Todos poderiam vestir preto e bater em velhinhas dali por diante, sendo isso o que se espera dos jovens. E todos eles passam a fazer isso e a rebeldia se torna um padrão.
            Evidentemente, cada adolescente que decidia responder os pais, levantar a gola do casaco ou fumar um cigarro pensava estar agindo por vontade própria e pela força de sua individualidade, mas isso é apenas uma ingenuidade da idade... Quando menos perceberem, eles estarão defendendo a superioridade da cultura de sua juventude sobre aquela da juventude de seus filhos, dizendo que rock'n roll de suas mocidades era melhor que “essas músicas de hoje em dia”. O novo jovem é tão careta quanto o antigo.
            Aí está um mérito bacana do filme: toda contracultura envelhece e vira mainstream, como uma tatuagem que é descolada aos vinte cinco e parece um câncer de pele aos cinquenta e dois. Alguns personagens na história até defendem a banda nesse sentido: ora, a crítica, a subversão tem que fazer parte do imaginário das pessoas, da cultura, e não pode ser banida. O rock, a poesia, são formas de contestação que devem existir. É o que dizem. E devemos concordar com eles, sem, claro, esquecer de um adendo: além da crítica há também a crítica da crítica, e a crítica dela, e assim por diante ao infinito, de modo que jamais nos bastaremos. Enquanto há vida, há movimento, nascimento e morte.

Devo tingir a roseira da minha mamãezinha?



            Não, amiguinho. O Café com Tripas é um blogue familiar e não recomenda essas coisas. Aqui até curtimos vísceras voando, uma ultraviolenciazinha de vez em quando, uma invasão zumbi de fim de semana, mas só de vez em quando. Pra descontrair.
            No mais, A banda maldita é um filme leve e divertido que até dá para assistir com a vovó do lado. Ou quase. Para o gosto dos amantes do trash, ele tem um pouco de violência, um pouco de sangue, peitinhos, cenas de monstros hilárias, defeitos especiais engraçados e uma trama bacana que dá para assistir rapidamente e sem pensar muito. Nada muito exagerado, antes que vocês perguntem. É um filme soft-tripas, se é que vocês me entendem.
            Para quem gosta da cena metaleira dos anos oitenta, com roupas colantes e rock pesado soando em guitarras distorcidas na escala pentatonica, ou para quem simplesmente está a fim de perder um pouco de tempo se divertindo vendo um filme incomum, apertem o play e subam o volume.

Trailer

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