Vocês gostam de rock? Vocês vestem
preto e bebem sangue de boi em cima de uma covinha de vez em quando? Vocês já
balançavam a cabeleira no “estilo Joelma” antes mesmo da Joelma surgir? Já
davam umas palhetadas nervosas antes do Ximbinha?
Então cliquem aí no link, amiguinhos
rebeldes, pois vamos discutir rock, conservadorismo, contracultura e
mainstream, tudo ao som do heavy metal.
Título original: Black
roses
Lançamento: 1988
Duração: 88
minutos
Direção: John
Fasano
A banda
maldita
Contracultura
e mainstream
A banda maldita foi
uma feliz surpresa que tive dentre os últimos filmes que vi. É que embora o
cinema trash seja bacana, ele frequentemente exagera na dose e gera uma
experiência um pouco cansativa também; contudo, com A banda maldita eu me
diverti bastante e, antes mesmo que notasse, o filme já tinha acabado.
No geral, tive uma percepção
bastante favorável do filme. Ele tem uma direção muito bem dosada e cenas que
não fogem a certo equilíbrio que dá coerência ao filme, além de ter um senso de
humor bem próprio que, em vez de tentar nos ofender com suas grosserias, como é
comum no trash, ele tenta rir conosco das bobagens que apresenta. No fim das
contas, trata-se de uma obra que explode a si mesma e deixa para trás um leve
sorriso no espectador, um resto de sarcasmo que, penso, é mais que suficiente
para pagar o ingresso.
Qual é
o repertório?
A banda Black Roses – que é alguma
coisa entre o Judas Priest, o Guns'n Roses e o Whitesnake – decide fazer sua primeira aparição pública
justamente na cidadezinha de Mill Basin, que é uma espécie de fenda do Judas no
interior dos Estados Unidos. Após o anúncio do show, entretanto, a associação
local de pais, religiosos hipócritas e pessoas que não transam, decide se unir
para tentar evitar o show ou, ao menos, alertar os jovens dos perigos do rock.
Afinal, como todos sabem, rock é coisa do capeta. Ou será que não?
É
música do demo sim
“O diabo é o pai do rock. Então é very god rock”
(Rock
do diabo, Raul Seixas)
Bem, pelo menos, é do demo no filme.
Depois que a Black Roses se apresenta na cidade, os jovens passam a apresentar
comportamentos estranhos: eles transam despojadamente, cometem atos de
violência e adquirem gostos medonhos de moda, algo que, convenhamos, não é nada
assim tão diferente de qualquer movimento cultural que encontramos por aí que,
ao trazer inovações estéticas interessantes, traz também perversões
indesejadas. Como diria o Dado Dolabella, com palavras ligeiramente diferentes
das minhas, cedo ou tarde alguém trai o movimento.
Mas há mais que isso nessa história.
A Black Roses não é apenas a nova moda do verão que faz os jovens dançarem de
forma ridícula e cantar canções ruins, para falar a verdade, a trilha sonora é bem
bacana e os hits da Black Roses são agradáveis, contudo, a Black Roses
traz um complicador: ela é mesmo do capeta. Suas canções não só influenciam os
jovens como uma moda qualquer, como também os levam a cometer atos insanos e
até a se transformarem em monstros de verdade. Não é metáfora. Por conta disso,
o conjunto representa um perigo real à juventude à medida em que a faz colocar
vidas em risco. É aí que o assunto fica interessante.
Se pensarmos um pouco a esse
respeito veremos que a sedução dos jovens pela banda explicita o quão frágil e
desinteressante é o modo de vida deles. Logo depois que a banda faz o primeiro
show, por exemplo, os adolescentes ficam apáticos, quase como zumbis – seria
porque tiveram que voltar para suas vidinhas sem graça e nunca mais viverão
nada excitante? As inquietações normais da idade parecem ter poucas respostas
no filme e o destino da mocidade dentro de uma cidade no meio do nada parece
claro para cada um, conquanto seus pais falem deles com esperança. Se a cidade
nada tem a oferecer, porém, que futuro os pais esperam dar aos filhos? De modo
geral, o conflito representado no filme é esse entre jovens e adultos: de um
lado, temos uma cidadezinha situada no
nada e um bando de adolescentes buscando contra o que se revoltar, vendo num
show de rock uma espécie de esperança ou luz no fim do túnel da vida insossa
que levam; de outro, pais que casaram por casar, procriaram por procriar e que
agora cuidam dos filhos como se cuidassem de bichos, dando um chute neles de
vez em quando para que calem a boca. Nada muito inédito em nossa vizinhança,
por sinal, porém basta se debruçar sobre isso um instante para encontrar bons
motivos para questionar esse tipo de coisa.
“Somos pessoas de igreja e
respeitadoras da lei”
Quando uma banda abre as portas do
inferno, deixando escapar alguns demônios e transformando os jovens em asseclas
que obedecerão suas ordens nefastas, temos então um bom argumento para nos
opormos ao rock. É nessas horas que os pais querem levantar seus cartazes
contra a guitarra elétrica, que os filhos entram com fervor no catecismo e
assim por diante.
Bem dizendo, essa é uma reação
perfeitamente normal ao medo de que o outro traga o mal, mas ao mesmo tempo,
essa reação mostra que isso que se teme não se faz sozinho, quer dizer, o mal
não é imposto à ninguém, porém se faz a partir da conivência das pessoas. É
preciso adotá-lo para que ele se faça. O medo que os pais tem da banda e,
genericamente, de qualquer forma de contracultura, mostra que, mais que temer
um grupo de rock, eles temem os próprios filhos e aquilo que eles podem vir a
se tornar quando entrarem em contato com essa contracultura. Por isso, quando
vemos no filme que o discurso dos pais pinta o mal como se fosse algo
completamente externo ao seu modo de vida, alguma coisa trazida pelos outros
mas que não tem existência prévia dentro dessa comunidade, é simples ver que
estão mentindo ou enganados, afinal, se não existisse nenhuma sementinha de mal
no modo de vida dessas pessoas, não seria possível que a banda o influenciasse
porque ele seria inteiramente bom. Mas há espaço para o mal, há vontade de
experimentar algo diferente do que as pessoas vivem em Mill Basin, e os pais
sabem disso; eles próprios sentem ou já sentiram isso também.
A respeito disso, durante uma aula
de literatura, o professor levanta um questionamento para os alunos baseado num
poema: o mal é aquilo que consideramos ser mal? Ou há coisas que sejam
intrinsecamente más? Para os conservadores da cidade, o mal (e, consequentemente,
também o bem) existe de forma absoluta: coisas como o rock e a pornografia são
absolutamente más, sendo que o modo de vida da pequena cidade deve ser
defendido delas. De certo modo, eles tem razão, pois a Black Roses é encapetada
mesmo e está aí para bulir com a família tradicional americana, porém, o fato
de que essa banda é má e realmente problemática significa que o rock – ou mesmo
outras formas de contracultura – seja igualmente mau? E mais: mesmo que todas
essas coisas sejam más, isso significa que a cultura de Mill Basin é essa
maravilha que serve de bastião da moral? Nesse ponto, conquanto os pais pensem
que sim, é difícil concordar com eles. Ninguém mais hoje está disposto a
levantar cartazes contra guitarras ou mesmo a se fechar num mundinho isolado de
influências externas, nem a acreditar que alguma comunidade no mundo seja pura
e santificada. Todos temos as mãos sujas, ainda que seja só suor.
Esse talvez seja um dos pontos mais
interessantes do filme: os pais querem controlar os comportamentos dos jovens
para que eles vivam e adotem seu modo de vida, todavia, ao mesmo tempo, eles
pouco fazem por seus filhos. Todos não dão a mínima para as crianças, exceto na
hora de dizer o que eles não podem fazer – há vários exemplos disso no filme: o
padrasto que briga com a afilhada, mas deseja transar com ela, o pai que quer
controlar o comportamento do filho mas sequer tem interesse nele e assim por
diante. Nem um futuro de sucesso, nem um presente interessante os pais podem
garantir ao filho: os meninos trabalharão em subempregos, as meninas serão
ignorantes e fecundas, e suas crianças serão bolas de metal algemadas aos pés
dos dois, impedindo-os de crescer. Trocando em miúdos (sempre quis usar essa
expressão), esses pais querem apenas defender o modo como viveram a própria
vida e se sentir felizes e reconhecidos sendo quem são. O medo das mudanças de
comportamento podem fazer com que seus filhos descubram novas formas de vida,
aliás, com que os próprios pais descubram novas formas de vida e com que se
sintam ridículos ao perceberem que viveram de maneira banal.
Logo, eles sentem que é melhor
desligar o rádio, mudar a TV para um canal que mantenha seu nível geral de
estupidez, queimar os hereges na fogueira e torcer para que a vida continue
pobre e os filhos sejam igualmente limitados. Ou a vida pode acabar acontecendo
diante deles.
O rock
no mainstream
“Eu tava só, sozinho!
Mais
solitário que um paulistano
Que um
vilão de filme mexicano
Tava
mais bobo que banda de rock”
(Telegrama,
Zeca Baleiro)
O rock é subversão, contracultura,
uma trincheira de combate aos valores tradicionais da religião e da família
tradicional americana, certo? No mínimo, é assim que ele parece no princípio do
filme e no princípio de sua própria história como gênero musical. O rock veio
para sacudir nossos valores e subverter nosso senso estético, tal como diversos
outros movimentos culturais de bom gosto.
Por conta disso, logo depois que vão
ao primeiro show da Black Roses, os jovens de Mill Basin passam a apresentar
comportamentos inéditos, como fazer sexo adoidado, cometer atos de vandalismo,
se transformar em demônios e assassinar os próprios pais. Os jovens estão se
transformando e novidades de todo o tipo a respeito deles chocam aqueles que
estão prestando atenção na juventude.
Mas essa transformação é curiosa,
pois para exatamente aí.
A vinda da banda gera uma mudança
significativa na cidade, no entanto, logo depois dela os jovens deixam de mudar
e passam a repetir em bando os mesmos comportamentos: todos vestem preto, todos
obedecem à banda, se tornam luxuriosos, violentos, etc. Ao fim de tudo, eles se
tornaram tão quadrados quanto seus próprios pais, mas em vez de se ajoelharem
diante de uma cruz, ou de desligarem o cérebro em frente a TV, fazem isso em
frente a um bando de cabeludos vestidos em couro. Tão quadrado quanto.
Se o rock era, a princípio, a
contracultura que subverteu Mill Basin, logo depois de ser assimilado ele se
tornou apenas mais um elemento da cultura local. Todos poderiam vestir preto e
bater em velhinhas dali por diante, sendo isso o que se espera dos jovens. E
todos eles passam a fazer isso e a rebeldia se torna um padrão.
Evidentemente, cada adolescente que
decidia responder os pais, levantar a gola do casaco ou fumar um cigarro pensava
estar agindo por vontade própria e pela força de sua individualidade, mas isso
é apenas uma ingenuidade da idade... Quando menos perceberem, eles estarão
defendendo a superioridade da cultura de sua juventude sobre aquela da
juventude de seus filhos, dizendo que rock'n roll de suas mocidades era melhor
que “essas músicas de hoje em dia”. O novo jovem é tão careta quanto o antigo.
Aí está um mérito bacana do filme:
toda contracultura envelhece e vira mainstream, como uma tatuagem que é
descolada aos vinte cinco e parece um câncer de pele aos cinquenta e dois.
Alguns personagens na história até defendem a banda nesse sentido: ora, a
crítica, a subversão tem que fazer parte do imaginário das pessoas, da cultura,
e não pode ser banida. O rock, a poesia, são formas de contestação que devem
existir. É o que dizem. E devemos concordar com eles, sem, claro, esquecer de
um adendo: além da crítica há também a crítica da crítica, e a crítica dela, e
assim por diante ao infinito, de modo que jamais nos bastaremos. Enquanto há
vida, há movimento, nascimento e morte.
Não, amiguinho. O Café com
Tripas é um blogue familiar e não recomenda essas coisas. Aqui até
curtimos vísceras voando, uma ultraviolenciazinha de vez em quando, uma invasão
zumbi de fim de semana, mas só de vez em quando. Pra descontrair.
No mais, A banda maldita é um
filme leve e divertido que até dá para assistir com a vovó do lado. Ou quase.
Para o gosto dos amantes do trash, ele tem um pouco de violência, um pouco de
sangue, peitinhos, cenas de monstros hilárias, defeitos especiais engraçados e
uma trama bacana que dá para assistir rapidamente e sem pensar muito. Nada
muito exagerado, antes que vocês perguntem. É um filme soft-tripas, se é que
vocês me entendem.
Para quem gosta da cena metaleira
dos anos oitenta, com roupas colantes e rock pesado soando em guitarras
distorcidas na escala pentatonica, ou para quem simplesmente está a fim de
perder um pouco de tempo se divertindo vendo um filme incomum, apertem o play e
subam o volume.
Trailer
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