terça-feira, 10 de maio de 2016

Literatura: Ser feliz (Will Ferguson)


            Você é feliz? Claro que não – está mentindo para si: você não tem talento, não tem dinheiro, não tem beleza, seu gato não vem quando você chama, você faz pouco sexo, satanás não atende quando você reza. Ninguém te quer. E nem pense em reclamar porque não querem te ouvir também.
            Você quer ser feliz? É claro que quer... Todos querem. Mas você não vai conseguir. Felizes são os outros, você nasceu pra sofrer.
            Ou vai me dizer que pessoas de sucesso, que gozam a vida, que tem dinheiro, que fazem acontecer, que agarram o destino pelos chifres e mudam o rumo da coisa toda, param suas noites para ler Café com Tripas?




Título original: Happiness
Autor: Will Ferguson
Ano: 2003
Editora: Companhia das letras
Páginas: 392
A boa nova de hoje é que...

            Edwin de Valu, um editor bunda mole responsável pela sessão de autoajuda de sua empresa, acerta ao decidir publicar o livro "O que aprendi na montanha", do misterioso Tupak Soirée. A obra não só vende, gerando um lucro extraordinário, como também afeta diretamente o modo de vida das pessoas no mundo todo, acalmando suas paixões e trazendo soluções para seus problemas. É aí que o mundo entra em colapso.

Quem precisa de ajuda?

            A premissa de um livro de autoajuda que funciona carrega consigo uma piada que, no fundo, qualquer pessoa de bom senso sabe ser verdade: livros de autoajuda não funcionam. Eles prometem melhoras substanciais em nossas vidas, como nos ajudar a combater nossos vícios e enfrentar nossos medos, mas no fim das contas tudo o que fazem é nos consolar por nossas existências medíocres e por nossas escolhas ruins. Uma pessoa bem sucedida lendo um livro de autoajuda é um contrassenso, pois se a vida vai bem não há necessidade de ajuda, então, é comum que pessoas supostamente bem sucedidas ou escrevam autoajuda para os outros, ou que os escritores de autoajuda aparentem ser bem sucedidos porque os outros desejam ser como eles. O leitor cativado por esse gênero, consequentemente, acaba sendo aquele que gostaria de não ser quem é, aquele que está descontente consigo mesmo e que, justamente por isso, sente que precisa de uma receita para melhorar sua vida.
            É aí que o mercado editorial passa a se utilizar os anseios dessas pessoas para ganhar dinheiro. Afinal, o que querem os descontentes de hoje? Sentir que são bons pais? Fazer mais sexo? Conseguir mais dinheiro? Há diversas pesquisas que buscam determinar isso e vários nichos de autoajuda direcionados para cada instância da vida em que sentimos que fracassamos, sendo que não importa o quão looser uma pessoa seja, o mercado sempre capitalizará sua miséria para lhe devolver um livro consolador. Você sente que não sabe controlar suas finanças? Gostaria de ser uma pessoa mais conectada a um deus sem no entanto se ligar a uma religião? Você quer crescer no seu trabalho? Deseja atrair inveja? Há estantes inteiras escritas para lidar com todos esses desejos e te dar a impressão de que, com pouco esforço e algum pensamento positivo, você pode realizá-los.
            Mas o que a autoajuda realmente consegue? Hoje, dez anos depois do lançamento de O segredo, quantos milionários surgiram da leitura desse livro, por exemplo? Quantas pessoas se realizaram por terem lido tal obra?
            É provável, ou melhor, é certo, que nenhuma. O que o livro faz, o que todo livro desse tipo faz, é consolar as pessoas por seus fracassos e barreiras mentais, dando-lhes a impressão de que podem controlar suas vidas apenas pensando de forma ligeiramente diferente, contudo, no mais das vezes, mudanças profundas pedem reformulações profundas da vida e estão muito além da leitura de uma simples obra ou de uma decisão de mudar. Com isso, o que acaba acontecendo é que o leitor é consolado pelo livro, mas na medida em que as adversidades da vida o deprimem outra vez, esse efeito passa e outro livro é necessário. Uma situação bem paradoxal, aliás, pois alguém que já tenha lido mais de um livro de autoajuda comprovou que livros de autoajuda não funcionam, ou, no mínimo, que todos os livros que leu antes do último não funcionaram.
            E assim se desmatam árvores e se enchem prateleiras e mais prateleiras com mensagens vazias sobre como alcançar o sucesso pessoal... As editoras acabarão com a Amazônia antes de chegarem a um livro de autoajuda que funcione... Ou será que não?

O fim do mundo é feliz?

            Em Ser feliz, o lançamento de “O que aprendi na montanha”, o tal livro de autoajuda que funciona, suscita uma série de consequências sociais e políticas no mundo todo. O motivo pelo qual tudo começa a desandar é na verdade bem simples: imagine um vício qualquer, pornografia, violência, o que quiser, em seguida, imagine que milhares de pessoas se libertam desse vício num passe de mágica. Desse jeito mesmo: plim! De um dia para o outro, depois de lerem um livro mágico, as pessoas abandonariam o consumo excessivo de carne e suas necessidades supérfluas de todo tipo, como cosméticos ou brinquedos tecnológicos, sendo que do dia para a noite trocentos sites de pornografia, cinemas, canais de TV e indústria de jogos vendendo violência, perderiam seu público e seu dinheiro. Mercados inteiros deixando de vender seu peixe só com a primeira edição de um livro.
            É sobre essa premissa que se desenvolve a trama de Ser Feliz, sobre  premissa de um fim do mundo plácido, quase bovino, em que tudo para porque as pessoas já não tem mais a necessidade de buscar nada ou de desperdiçar suas vidas tentando encontrar qualquer coisa. É como se o céu bíblico descesse ao mundo trazendo harpas, canta gregoriano e tédio.
            Já que o protagonista, por algum motivo, não é afetado pelo livro do mesmo modo como as outras pessoas, temos a possibilidade acompanhar o desenrolar do fim do mundo por meio dos olhos de alguém que tem os mesmos vícios e as mesmas escrotices que nós. E é a partir daí que se constrói o humor do livro: do olhar de um sujeito mal resolvido e mal-humorado vivendo num mundo cada vez mais bem resolvido e menos engraçado.

Quer ser feliz?

            Essa discussão sobre a felicidade é bem interessante e existe de forma semelhante em algumas outras obras, como o magnífico RPG Paranóia, em que um computador que gerencia toda a cidade com o objetivo de fazer as pessoas felizes simplesmente enlouquece e passa a estipular exigências absurdas para a felicidade de cada um, ou mesmo o clássico da sessão da tarde O demolidor, no qual (vocês devem lembrar) vigorava um futuro insípido em que quem desejasse comer um simples rato-burguer ou transar loucamente deveria procurar uma sociedade alternativa. Ser Feliz segue mais ou menos essa linha de questionamento, brincando de tornar uma coisa tão almejada quanto a felicidade num pesadelo.
            No fim das contas, o livro é uma grande piada sobre o mercado editorial e sobre esse mundo engraçado e ridículo dos livros motivacionais Apesar de suas quase quatrocentas páginas, Ser Feliz imita aquele estilo superficial e direto típico do jornalismo e da própria autoajuda, podendo ser lido rapidamente e com leveza. Se não estou enganado, acho que a concluí em quatro dias.
            Assim, se você está disposto a viver uma experiência de leitura cômica e leve que não desrespeite sua inteligência, fica aqui a piada de pavê do Café:Ser Feliz.

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