Você é feliz? Claro que não – está
mentindo para si: você não tem talento, não tem dinheiro, não tem beleza, seu
gato não vem quando você chama, você faz pouco sexo, satanás não atende quando você
reza. Ninguém te quer. E nem pense em reclamar porque não querem te ouvir
também.
Você quer ser feliz? É claro que
quer... Todos querem. Mas você não vai conseguir. Felizes são os outros, você
nasceu pra sofrer.
Ou vai me dizer que pessoas de
sucesso, que gozam a vida, que tem dinheiro, que fazem acontecer, que agarram o
destino pelos chifres e mudam o rumo da coisa toda, param suas noites para ler Café
com Tripas?
Título original: Happiness
Autor: Will Ferguson
Ano: 2003
Editora: Companhia das letras
Páginas: 392
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A boa
nova de hoje é que...
Edwin de Valu, um editor bunda mole
responsável pela sessão de autoajuda de sua empresa, acerta ao decidir publicar
o livro "O que aprendi na montanha", do misterioso Tupak Soirée. A obra
não só vende, gerando um lucro extraordinário, como também afeta diretamente o
modo de vida das pessoas no mundo todo, acalmando suas paixões e trazendo
soluções para seus problemas. É aí que o mundo entra em colapso.
Quem
precisa de ajuda?
A premissa de um livro de autoajuda
que funciona carrega consigo uma piada que, no fundo, qualquer pessoa de bom
senso sabe ser verdade: livros de autoajuda não funcionam. Eles prometem
melhoras substanciais em nossas vidas, como nos ajudar a combater nossos vícios
e enfrentar nossos medos, mas no fim das contas tudo o que fazem é nos consolar
por nossas existências medíocres e por nossas escolhas ruins. Uma pessoa bem
sucedida lendo um livro de autoajuda é um contrassenso, pois se a vida vai bem
não há necessidade de ajuda, então, é comum que pessoas supostamente
bem sucedidas ou escrevam autoajuda para os outros, ou que os escritores de
autoajuda aparentem ser bem sucedidos porque os outros desejam ser como eles. O
leitor cativado por esse gênero, consequentemente, acaba sendo aquele que
gostaria de não ser quem é, aquele que está descontente consigo mesmo e que,
justamente por isso, sente que precisa de uma receita para melhorar sua vida.
É aí que o mercado editorial passa a
se utilizar os anseios dessas pessoas para ganhar dinheiro. Afinal, o que querem
os descontentes de hoje? Sentir que são bons pais? Fazer mais sexo? Conseguir
mais dinheiro? Há diversas pesquisas que buscam determinar isso e vários nichos
de autoajuda direcionados para cada instância da vida em que sentimos que
fracassamos, sendo que não importa o quão looser uma pessoa seja, o
mercado sempre capitalizará sua miséria para lhe devolver um livro consolador.
Você sente que não sabe controlar suas finanças? Gostaria de ser uma pessoa
mais conectada a um deus sem no entanto se ligar a uma religião? Você quer
crescer no seu trabalho? Deseja atrair inveja? Há estantes inteiras escritas
para lidar com todos esses desejos e te dar a impressão de que, com pouco
esforço e algum pensamento positivo, você pode realizá-los.
Mas o que a autoajuda realmente
consegue? Hoje, dez anos depois do lançamento de O segredo, quantos
milionários surgiram da leitura desse livro, por exemplo? Quantas pessoas se
realizaram por terem lido tal obra?
É provável, ou melhor, é certo, que
nenhuma. O que o livro faz, o que todo livro desse tipo faz, é consolar as
pessoas por seus fracassos e barreiras mentais, dando-lhes a impressão de que
podem controlar suas vidas apenas pensando de forma ligeiramente diferente,
contudo, no mais das vezes, mudanças profundas pedem reformulações profundas da
vida e estão muito além da leitura de uma simples obra ou de uma decisão de
mudar. Com isso, o que acaba acontecendo é que o leitor é consolado pelo livro,
mas na medida em que as adversidades da vida o deprimem outra vez, esse efeito
passa e outro livro é necessário. Uma situação bem paradoxal, aliás, pois
alguém que já tenha lido mais de um livro de autoajuda comprovou que livros de
autoajuda não funcionam, ou, no mínimo, que todos os livros que leu antes do
último não funcionaram.
E assim se desmatam árvores e se
enchem prateleiras e mais prateleiras com mensagens vazias sobre como alcançar
o sucesso pessoal... As editoras acabarão com a Amazônia antes de chegarem a um
livro de autoajuda que funcione... Ou será que não?
O fim do
mundo é feliz?
Em Ser feliz, o lançamento de
“O que aprendi na montanha”, o tal livro de autoajuda que funciona, suscita uma
série de consequências sociais e políticas no mundo todo. O motivo pelo qual
tudo começa a desandar é na verdade bem simples: imagine um vício qualquer,
pornografia, violência, o que quiser, em seguida, imagine que milhares de
pessoas se libertam desse vício num passe de mágica. Desse jeito mesmo: plim!
De um dia para o outro, depois de lerem um livro mágico, as pessoas abandonariam
o consumo excessivo de carne e suas necessidades supérfluas de todo tipo, como
cosméticos ou brinquedos tecnológicos, sendo que do dia para a noite trocentos
sites de pornografia, cinemas, canais de TV e indústria de jogos vendendo
violência, perderiam seu público e seu dinheiro. Mercados inteiros deixando de
vender seu peixe só com a primeira edição de um livro.
É sobre essa premissa que se
desenvolve a trama de Ser Feliz, sobre
premissa de um fim do mundo plácido, quase bovino, em que tudo para
porque as pessoas já não tem mais a necessidade de buscar nada ou de
desperdiçar suas vidas tentando encontrar qualquer coisa. É como se o céu
bíblico descesse ao mundo trazendo harpas, canta gregoriano e tédio.
Já que o protagonista, por algum
motivo, não é afetado pelo livro do mesmo modo como as outras pessoas, temos a
possibilidade acompanhar o desenrolar do fim do mundo por meio dos olhos de
alguém que tem os mesmos vícios e as mesmas escrotices que nós. E é a partir
daí que se constrói o humor do livro: do olhar de um sujeito mal resolvido e
mal-humorado vivendo num mundo cada vez mais bem resolvido e menos engraçado.
Quer
ser feliz?
Essa discussão sobre a felicidade é
bem interessante e existe de forma semelhante em algumas outras obras, como o
magnífico RPG Paranóia, em que um computador que gerencia toda a cidade
com o objetivo de fazer as pessoas felizes simplesmente enlouquece e passa a
estipular exigências absurdas para a felicidade de cada um, ou mesmo o clássico
da sessão da tarde O demolidor, no qual (vocês devem lembrar) vigorava
um futuro insípido em que quem desejasse comer um simples rato-burguer ou
transar loucamente deveria procurar uma sociedade alternativa. Ser Feliz segue
mais ou menos essa linha de questionamento, brincando de tornar uma coisa tão
almejada quanto a felicidade num pesadelo.
No fim das contas, o livro é uma
grande piada sobre o mercado editorial e sobre esse mundo engraçado e ridículo
dos livros motivacionais Apesar de suas quase quatrocentas páginas, Ser
Feliz imita aquele estilo superficial e direto típico do jornalismo e da
própria autoajuda, podendo ser lido rapidamente e com leveza. Se não estou
enganado, acho que a concluí em quatro dias.
Assim, se você está disposto a viver
uma experiência de leitura cômica e leve que não desrespeite sua inteligência,
fica aqui a piada de pavê do Café: vá Ser Feliz.
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